“As Bestas”, que estreou em Cannes e conquistou nove Goya, chega aos cinemas brasileiros

Por Maria do Rosário Caetano

Na sequência mais impressionante de “As Bestas”, filme de Rodrigo Sorogoyen – estreia dessa quinta-feira, 25 de janeiro –, vemos um balé equino. E humano. Camponeses da Galícia espanhola agarram cavalos selvagens em duelo de corpos. Imagens de beleza arrebatadora.

Eles, cavalos e homens, são as bestas que dão título ao filme e participam de celebração muito popular naquela região interiorana – a “raspagem das crinas”. Os animais não-domesticados são submetidos, antes de voltarem à montanha, a corte de pelos destinado a livrá-los de parasitas.

Sorogoyen, em seu sexto longa-metragem – exibido em Cannes Première e laureado com nove troféus Goya, além do César francês de melhor filme estrangeiro – não poderia ter escolhido imagens mais poderosas, tamanho é o impacto causado pelo raro balé equestre. O trabalho do fotógrafo Álex de Pablo, epidérmico e, às vezes, sombrio, será fundamental para que o cineasta componha sua apaixonante narrativa.

“As Bestas”, o trabalho que colocou o diretor madrilenho, de 42 anos, na linha de frente do cinema espanhol, nasceu de roteiro escrito por ele, em parceria com Isabel Peña. Os dois recriaram, com a liberdade permitida pela ficção, uma história real. Em 2010, um holandês, Martin Verfondern, denunciou, em testemunho ao jornal El País, que vinha sendo vítima do que denominou de “terrorismo rural”.

Após muitos desentendimentos, uma família, os Rodríguez, moradores do povoado de Santoalla do Monte, no município galego de Petín, matariam o estrangeiro, fixado na região 13 anos antes. Ele sonhava, ao lado da mulher, respirar ar puro e viver experiência ecologicamente recompensadora, plantando e colhendo em seu sítio.

O crime foi executado por dois irmãos, um deles com perturbações mentais decorrentes de grave queda de um cavalo. O casal vindo de fora reivindicava direito de posse de parte que lhes caberia no monte comunal. Fato que contrariava interesses do velho patriarca dos Rodríguez e de seus dois filhos, atados a código moral em tudo oposto ao dos Verfondern. Para esconder o corpo (e o carro) do morto, os assassinos contaram com a cumplicidade do prefeito municipal. E os restos mortais da vítima só seriam encontrados quatro anos depois (2014).

Rodrigo Sorogoyen e Isabel Peña decidiram mudar os nomes, as idades e a nacionalidade do casal forasteiro (franceses ao invés de holandeses) e acrescentar uma nova personagem, a jovem filha deles, que seguia em sua França natal e temia pelo destino dos pais naquela parte da Galícia, de hábitos tão arraigados.

A partir do “balé equino” e de precisa ambientação da trama, conheceremos os protagonistas de “As Bestas”: Denis Ménochet e Marina Foïs, que interpretam o casal ecologista Antoine e Olga, e Luis Zahera e Diego Anido, responsáveis pelos irmãos Anta (Xan, o mais velho, e Lorenzo, o portador de distúrbios mentais). Marie Colomb fará a filha do casal que escolhera o povoado por seu ar puro e tranquilidade (mesmo que aparente).

O desempenho do francês Ménochet nem é muito extenso, mas é tão forte, que ele venceu o Goya de melhor ator, derrotando quatro concorrentes… espanhóis. O ator de formas volumosas protagonizou “Peter von Kant”, a envolvente releitura de François Ozon para as fassbenderianas “Lágrimas Amargas de Petra von Kant”.

O teimoso Xan (de Luís Zahera) também brilha. Brilha tanto que o papel lhe rendeu o Goya de melhor coadjuvante. Se tivesse sido premiado como protagonista, junto com Ménochet, o “Oscar espanhol” teria cometido um ato de justiça.

Sorogoyen, que quis somar em drama realista atores profissionais e naturais, construiu seu drama criminal salpicado de ingredientes de suspense com perícia de mestre. Seus diálogos são duros e sintéticos. Os homens do lugar, em especial os dois irmãos da família Anta, não são de muito discurso verbal.

Os estrangeiros ganham desenho complexo, assim como os camponeses galegos. O filme não deixa de notar que há muito de sonho no projeto ecológico de Antoine e Olga. A dupla, que cultiva a terra com as próprias mãos, se dispõe a restaurar (de graça) casas semi-abandonadas do vilarejo, pois planeja vocacionar o local a serviços de aluguel temporário destinado ao turismo rural. Mas o projeto do francês está impregnado de tamanho idealismo, que ele não percebe o quanto é odiado pelos vizinhos.

Quando Antoine decide não vender sua propriedade ecológica a uma empresa de energia eólica, o que parecia estar circunscrito a uma questão de identidade – camponeses desconfiados de estranhos que não comungam de suas ideias — ganha contornos financeiros. A propriedade de um único casal de forasteiros, sem ligação ancestral com aquela terra, não poderia impedir a negociação em curso. Os dois lados têm seus argumentos.

O crime da Galícia já havia gerado um documentário (“Santoalla”) em 2016. Ao abordar o mesmo tema, Sorogoyen construiu um filme de grande originalidade. Empenhou-se em criar atmosferas que impregnam em nossos sentidos e nos levam à reflexão sobre a natureza humana.

O filme é falado em galego (idioma que nos parece muito familiar) e em francês. Não se trata da primeira incursão de Sorogoyen no universo do país vizinho. Em 2019, ele realizou curta-metragem de 19 minutos, “Madre”, sobre mãe espanhola que descobre, pelo telefone, que o filho de seis anos, em férias com o pai numa praia francesa, está perdido, portanto, sozinho, e que vê um estranho aproximar-se. Tomada pelo pavor, derivado da complexa situação, e pela imensa distância que os separa, ela nada pode fazer.

O filme, protagonizado por Marta Nieto, companheira de Sorogoyen, concorreu ao Oscar de melhor curta-metragem e deu origem a longa de mesmo nome, enriquecido com novos desdobramentos para a mesma história. Decorridos dez anos do desaparecimento do menino, a mãe emprega-se numa lanchonete em praia francesa onde se dera a tragédia. E começa a identificar-se com Jean, garoto com a mesma idade que teria seu filho perdido. Um belo trabalho, que prenunciava a maturidade plena do diretor madrilenho, conquistada – e reconhecida – com “As Bestas”.

O cinema espanhol vive fase de ouro. Produções recentes como “El Patrón”, de Fernando Léon de Aranoa, “Alcarràs”, de Carla Simón”, vencedor do Festival Berlim, “20.000 Espécies de Abelhas”, de Estibaliz Urresola Solaguren (melhor atriz, também em Berlim) e “As Bestas” chegam para somar-se aos melhores filmes de Pedro Almodóvar e, agora, ao obrigatório “Cerrar los Ojos”, do bissexto mestre Victor Erice.

 

As Bestas
Espanha-França, 2022, 137 minutos
Gênero: drama, suspense
Direção: Rodrigo Sorogoyen
Roteiro: Rodrigo Sorogoyen e Isabel Peña
Elenco: Denis Ménochet (Antoine), Marina Foïs (Olga), Luis Zahera (Xan Anta), Diego Anido (Lorenzo Anta), Marie Colomb (Marie), José Antonio Fernández (Paulino), Mercedes Samprón Pérez (Aurora) e José Manuel Fernandez Blanco (Pepino)
Fotografia: Álex de Pablo
Trilha Sonora: Olivier Arson
Montagem: Alberto del Campo
Distribuição: Pandora

 

FILMOGRAFIA
Rodrigo Sorogoyen (Madri, 16/09/1981)

2008 – “8 Citas”, parceria com Peris Romand
2013 – “Stockholm”
2016 – “Que Diós nos Perdone”
2018 – “O Candidato”
2019 – “Madre”
2020 -“Antidistúrbio” (série)
2022 – “As Bestas”

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