“Tornando-se Frida Kahlo”, série da BBC, traz revelações sobre martírio e obra da grande pintora mexicana
Por Maria do Rosário Caetano
A cineasta mexicana Maria Novaro gosta de dizer que seu país tem duas padroeiras – Nossa Senhora de Guadalupe, símbolo religioso, e a pintora Frida Kahlo, ícone laico.
Depois de viver à sombra do marido, o grande muralista Diego Rivera (1886-1957), a fama da pintora, que morreu jovem, espalhou-se pelos EUA, América Hispânica e Europa. Chegou até ao Brasil, embora aqui Frida não seja tão conhecida quanto merecia (ou devia) ser.
O sucesso planetário da pintora, ainda conhecida como “a esposa de Rivera” ou a “amante de Trotski”, começou a expandir-se em 1985, quando um colega de Maria Novaro, o cineasta Paul Leduc, dirigiu “Frida, Natureza Viva”, longa-metragem protagonizado por Ofélia Medina. Oito anos depois, a atriz Salma Hayek, deu vida à conterrânea no filme “Frida”, dirigido por Julie Taymor, com Lila Down e Caetano Veloso arrasando na trilha sonora.
O longa de Taymor, falado em inglês, recebeu significativas indicações ao Oscar. A “Fridomania” foi, então, ganhando expansão à medida que o feminismo resgatava forças adormecidas. Para ampliar o interesse pela artista mexicana havia outro ingrediente: ela teria amado mulheres, e não só os varões Diego Rivera, Leon Trotski e o fotógrafo Nikolas Murray. Quem viu “Frida, Natureza Viva”, lembra-se da artista aos beijos com uma de suas namoradas.
Quem assistir – no streaming (Star+) – à série documental “Tornando-se Frida Kahlo”, produzida pela respeitada BBC de Londres, não verá nenhuma referência aos possíveis amores homoafetivos de Frida. Censura? Não se sabe. Mas pelo histórico da poderosa emissora pública britânica, faz-se necessário buscar outra razão: a falta de testemunhos fidedignos sobre os amores femininos da pintora, que viveu relação intensa e tumultuada com o marido, Diego Rivera, com quem ela se casou por duas vezes. A primeira, no México, quando tinha 24 anos, e ele 44. Anos mais tarde, ele pediria o divórcio, pois estava apaixonado pela atriz Paulette Goddard (1910-1990), protagonista, ao lado de Charles Chaplin, de “Tempos Modernos” e “O Grande Ditador”.
O inusitado casal Rivera-Goddard iria viver na Califórnia. Até porque o pintor estava na mira da polícia. Fora acusado de estar entre os que haviam concebido plano para eliminar o líder exilado. Isto, depois de romper com Trotski, pois o soviético teria afirmado que “Rivera era um grande pintor, mas no campo da política, uma criança”.
O relacionamento de Diego Rivera com Paulette Goddard deixou Frida em estado de profundo sofrimento. Mas o casal mexicano voltaria a se unir e dessa vez para sempre. Só que os anos de ventura haviam passado. Os males físicos de Frida cresciam exponencialmente. Ela morreria em 1954, aos 47 anos. Segundo a série, “recorrendo a suicídio”, que a livraria de dores terríveis. E que ela mesma pedira ao marido que a ajudasse a partir, pois eram demasiados seus sofrimentos físicos.
Rivera, que a série define como “o pintor mais conhecido do mundo, nas décadas de 1930 e 1940, ao lado de Picasso e Matisse”, morreria três anos depois, aos 70. Um não sabia viver sem o outro, embora tenham registrado dois casamentos, o primeiro, conturbadíssimo. Afinal, o muralista não podia ver um rabo de saia.
São incontáveis os relacionamentos que “o Sapo” (assim o chamava Frida na intimidade) somou ao longo da vida. Até a cunhada Cristina, irmã mais nova da esposa, ele seduziu. Frida, mulher moderna e além de seu tempo, também somou muitos amantes, entre eles, o fotógrafo húngaro-americano Nikolas Murray (1892-1965), autor de famosa série de retratos dela, editada postumamente em magnífico álbum pela Taschen germânica. A série da BBC – composta de três episódios de 52 minutos cada um – fará belo uso destas imagens.
“Tornando-se Frida Kahlo” começa com texto em off – em inglês, claro – que pode inquietar espectadores mais exigentes. As duas diretoras – Jane Buckwalter e Louise Lockwood – lançam mão de subjetividade hiperbólica para indagar por que “idolatramos” essa mulher (Frida) tão cheia de contradições?
Porém, com o avançar da narrativa, o padrão BBC de documentários – um dos mais respeitados e influentes do mundo – vai se impondo. E começam as revelações, pois muitas das biógrafas da artista, latinas ou anglo-saxãs, trarão seus depoimentos, fundamentados em documentos históricos. Para enriquecer ainda mais os três episódios, entraram em cena vozes que reproduzem os diários de Frida (por que não ditos por uma atriz mexicana?) e de Lucienne Bloch, suíça radicada nos EUA. Frida e Diego conheceram Lucienne durante os três anos vividos em Nova York, San Francisco e Detroit.
O pintor, às expensas de Nelson Rockfeller, na época, “o homem mais rico do mundo”, e Henry Ford, dono da então poderosíssima fábrica de carros, produzia murais gigantescos. Um para a Bolsa de Valores, outro para um centro cultural, um terceiro para a sede da Ford Motors. O artista servia, portanto, a duas figuras de proa do capitalismo norte-americano.
Rivera e Frida, registre-se, eram comunistas militantes. Tanto que, algum tempo depois de regressarem dos EUA, eles seriam os anfitriões, na cidade do México, do casal Leon e Natalia Trotski. O revolucionário soviético, criador do Exército Vermelho, vivia doloroso exílio e era perseguido pelos seguidores de Stálin. Tanto que, em 1940, seria assassinado por Ramón Mercader, em sua segunda morada mexicana, em Coyoácan, bairro afastado onde Frida nascera. E onde ficava a Casa Azul, até hoje berço da memória de Rivera e, principalmente, de Frida Kahlo.
Voltemos aos EUA e ao importante papel de Lucienne Bloch na vida dos dois pintores. Frida desconfiou da jovem, quando ela aproximou-se do casal, oferecendo-se para ser assistente de Diego Rivera. Decerto, mais uma mulher interessada no priápico, sedutor e corpulento muralista, imaginou Frida. Que chamou a “nova amiga” para um duro diálogo. A moça esclareceu: não tinha nenhum interesse erótico por Rivera. Ele não fazia seu tipo. Assegurou que seu interesse estava concentrado na pintura dele.
Dali em diante, Lucienne Bloch e Frida seriam grandes amigas. A jovem, além de registrar fotos de cenas da vida cotidiana do casal, viria a socorrer Frida em seus momentos mais difíceis. Como aquele em que Diego apaixonou-se, e foi correspondido, por famosa jogadora de tênis e os dois viveram tórrido romance. O sedutor nem voltava para casa para dormir. E, também, em momento ainda mais grave, Lucienne Bloch ajudou a amiga: aquele em que Frida, na industrial Detroit, sofreu aborto espontâneo (foram muitos em suas vãs tentativas de ser mãe) e ela quase morreu encharcada de sangue.
Toda a relação de Lucienne Bloch com o casal Frida e Diego está registrado nos implacáveis diários que a estadunidense, de origem suíça, foi escrevendo meses a fio. Seu caderno de relatos foi preservado com zelo de causar espanto.
A neta de Bloch, Lucienne Allen, lê ótimos trechos do testemunho da amiga suíço-americana de Frida. Além dela, há outros substantivos testemunhos espalhados ao longo dos mais de 150 minutos da narrativa. Em especial, o da escritora mexicana Elena Poniatowska, biógrafa da italiana Tina Modotti (1896-1942), que foi dar com os costados no México. E tornou-se amiga muito próxima de Frida e Diego, já que era comunista militante como eles. Elena escreveu o volumoso “Tiníssima”, vibrante biografia da aventureira ítalo-mexicana.
Jane Buckwalter e Louise Lockwood, as diretoras da série “Tornando-se Frida Kahlo”, empenharam-se em realizar ótimo trabalho de contextualização. No primeiro episódio, saberemos que Frida nasceu em 1907 e que, por sua devoção à Revolução Mexicana de 1910, comandada por Zapata e Pancho Villa, asseguraria que viera ao mundo neste ano de profundas modificações estruturais na história pátria.
A jovem nascida em distante bairro da capital mexicana (Coyacán, onde até hoje está sua Casa Azul) sofreria grave acidente em ônibus frágil, com bancos de madeira, atropelado por um bonde. Ela estava na companhia do namorado, Alejandro Gómez Arias, integrante da trupe Los Cachuchas, dedicada à poesia, saraus e festas culturais. O quadril da jovem, miúda e muito magra, foi atravessado por barra de ferro que saiu pela vagina. Frida ficou entre a vida e a morte. E teve sua coluna avariada pelo resto da vida. Ficou tanto tempo hospitalizada, que ganhou um cavalete adaptado para iniciar-se na pintura.
Tina Modotti, ao chegar ao México, se engajará no febril movimento esquerdista do país. A série dirá que o país latino-americano era um dos lugares mais fascinantes e revolucionários do mundo, naquele período, em especial da década de 1920 até os anos 1940. Diego Rivera, “uma espécie de astro de rock”, a todos atraía, a todos fascinava. Inclusive à jovem Frida, que, depois de assistir a algumas de suas palestras, foi procurá-lo enquanto ele pintava as paredes da Secretaria de Educação Pública.
Os dois se aproximaram para sempre. Vinte anos mais velho que Frida, Rivera já vivera casamentos informais, era pai de duas filhas e tivera muitos relacionamentos. Mas nunca se casara em termos legais. Acabou casando-se com Frida, depois que o pai, Guillermo Kahlo, de origem alemã, avisou que ela “era o demônio”. A Senhora Kahlo, muito católica, nem compareceu à cerimônia, pois desaprovava a união da filha com um comunista. E, ainda por cima, bem mais velho e com fama de sátiro.
Diego, encantado com a jovem e vibrante Frida, registraria a imagem dela num de seus murais no Palácio Nacional, no Zocalo, coração da capital azteca. Ela é mostrada no fragmento “No Arsenal”, que representa unidade fabril do “México que caminhava para o socialismo”.
No segundo episódio, o casal vai para os EUA. Diego Rivera é festejado como Picasso o era nas rodas europeias. Seu corpanzil perde boa quantidade de quilos e o fauno, que trabalha muito, diverte-se com total liberdade. Frida, vista apenas como a esposa do grande astro, ganha um pequeno estúdio para exercitar-se na pintura.
A amiga Lucienne Bloch se desdobra para ajudá-la. A jovem esposa do muralista tem encantos e decepções com o grande país do Norte. Morena e envolta em vestidos étnicos, ela é vista como excêntrica. Nos luxuosos hotéis onde se hospeda, o casal é aceito, mas olhado como estrangeiros de pele escura. Em San Francisco, na Califórnia – mostrará a série documental – há cartazes em salões e pontos comerciais que avisam: “Não aceitamos cachorros, mexicanos e negros”. A discriminação era, ao menos parcialmente, explícita.
A derradeira aventura de Rivera nos EUA acabará mal, muito mal. Depois de ser acusado de prestar serviços a capitães das finanças e da indústria (responsáveis pela repressão e morte de quatro trabalhadores em greve pacífica), o muralista teve um rompante e desenhou o líder da Revolução Bolchevique, Vladimir Lênin, num de seus imensos painéis. A obra foi destruída, à picaretadas, por empregados do magnata, que a encomendara. Isto aconteceu dois anos depois do Crash da Bolsa, que jogou os EUA em terrível recessão econômica. E que faz parte da contextualização do tempo histórico vivido por Frida e Diego.
No último capítulo da série, Frida Kahlo é vista já como pintora única, capaz de revelar temas e subjetividade jamais vistos na criação pictórica feminina. Ela pinta a si mesma, em situações as mais impressionantes. Banhada em sangue numa cama do Hospital Ford, após aborto ocorrido depois de quatro meses de difícil gestação. Ou com a enorme cabeça do filho morto saindo de sua vagina. Enfim, obras nas quais ela expõe as dores dilacerantes que enfrentava (e enfrentaria cada vez mais) em sua vida cotidiana. E que a levariam a amputar uma perna e locomover-se em cadeira de rodas. Episódio que a marcaria até o fim de seus dias.
O documentário dá imenso destaque à obra da artista, analisada por muitos especialistas. A descrição de quadro que ela pintou sobre o suicídio da atriz hollywoodiana Dorothy Hale, a pedido da editora da revista Vanity Fair, é arrebatadora. Sua crivação mais famosa, bela e importante (“A Coluna Quebrada”, 1944) ganha o relevo merecido. Assim como “Auto-Retrato com Diego” (1931), “Umas Facadinhas de Nada” (“Unos Quantos Piquetitos”), “Entre Cortinas – Auto-Retrato para Trotski”, 1937), “As Duas Fridas” (1939) e “Diego e Eu” (1949).
Ao morrer, Frida teria seu velório no belíssimo Palácio de Belas Artes, no centro histórico da Cidade do México. E uma multidão para velá-la. Diego Rivera seria o primeiro a carregar o caixão da companheira. Estava abatido, com câncer, e partiria três anos depois. Deixaram, ambos, acervo pictórico dos mais notáveis e impressionantes.
A obra dele – épica e politizada – domina as paredes do Palácio Nacional, da Secretaria de Educação Pública e do Palácio de Belas Artes. A dela, mais subjetiva e ligada a imensas dores impressas em seu corpo frágil – é também política. Vide o quadro que pintou nos EUA – “Auto-Retrato na Fronteira” (1931-1932). Nele, vemos Frida com um elegante vestido cor-de-rosa, de luvas e segurando a bandeira do México. De um lado, ela pintou os poderosos Estados Unidos da América, país industrializado, com enormes edifícios e fábrica dominada por várias chaminés que cospem fumaça. Do outro, vemos uma imensa pirâmide azteca, sólido símbolo cultural deste país situado abaixo do Rio Grande. Aquele do qual se diz, em tom de pilhéria: “Pobre Mexico, tan lejos de Diós e tan próximo de los Estados Unidos”.
Tornando-se Frida Kahlo
Inglaterra, 2023, série documental em três capítulos
Direção: Jane Buckwalter e Louise Lockwood
Onde assistir: Star+
Produção: BBC de Londres
Idioma original: inglês (algumas inserções em espanhol), com legendas em português
Duração: 52 minutos cada capítulo
O que ver e ler sobre Frida Kahlo:
FILMES
. “Frida, Natureza Viva” (México, 1985). De Paul Leduc. Com Ofélia Medina (Frida), Juan José Currola (Diego Rivera), Salvador Sanchez (David Alfaro Siqueros), Max Kerlow (Leon Trotski), Claudio Brook, Cecília Toussaint, Ziwta Kerlow, Valentina Leduc, Lolita Cortés, Gina Morett, Margarita Sanz, Odiseo Bichir, Bruno Bichir. Roteiro: José Joaquin Blanco e Paul Leduc. Fotografia de Angel Goded. Trilha sonora: de Rafael Castanedo. Figurinos: Luz María Rodriguez. Produção: Manuel Ponce. Falado em espanhol. Vencedor do Grande Prêmio Coral no Festival do Novo Cinema Latino-Americano de Havana (1985), ex-aqueo com “Tangos, o Exílio de Gardel”, de Fernando Solanas. Duração: 108 minutos.
. “Frida” (EUA, 2003). De Julie Taymor. Com Salma Hayeck (Frida), Alfredo Molina (Diego Rivera), Antonio Banderas (Siqueros), Edward Norton (Nelson Rockfeller), Ashey Judd (Tina Modotti), Mia Maestro (Cristina Kahlo), Diego Luna (Alejando Gonzalez), Geoffrey Rush (Trotski), Valeria Golino (Lupe Marin), Ellito Goldenthal (repórter), Roger Rees (Guillermo Kahlo, o pai de Frida), Margarita Sanz (Natália Trotski), Karine Plantadit (Josephine Baker). Participação especial da cantora Chavela Vargas. Roteiro: Gregory Nava. Fotografia: Rodrigo Prieto. Trilha sonora: Elliot Goldenthal (premiada com o Oscar). Produção: Salma Hayek e parceiros (para a Miramax). Falado em inglês. Duração: 123 minutos.
LIVROS
. “Viva!” – Livro definido como “romance sem ficção” do francês de Patrick Deville (Editora 34) – Frida Kahlo e Diego Rivera se somam a personagens como o enigmático escritor B. Traven, André Breton, Malcolm Lowry, Victor Serge, Leon Trotski, Siqueros, Paulette Godard, Ramon Mercader. A edição brasileira (2016) tem apresentação de Alberto Manguel.
. “O Diário de Frida Kahlo – Um Auto-Retrato”
. “O Diário de Frida Kahlo – Um Novo Olhar”
. “Frida Kahlo: A Biografia”, de Hayden Herrera
. “Frida Kahlo. Suas Fotos”
. “Kahlo”, de Andrea Kettenmann
. “Frida e Trotski – A História de Uma Paixão Secreta”, romance de Gérard de Cortanze
. “Frida Kahlo – Pinto a Minha Casa”, de Christina Burrus
. “Frida Kahlo – Conexões Entre Mulheres Surrealistas no México”
. “Os Segredos de Frida Kahlo”, de F.G. Haghenbeck
. “Frida Kahlo”, de Daniel Balmacega e Pablo Bernasconi
. “O Coração – Frida Kahlo em Paris”, de Marc Petijean
. “Frida Kahlo”, de Rauda Jamis
. “Frida Kahlo e as Cores da Vida – Uma História de Arte, Amores e Revolucões”, de Caroline Bernard
. “O Que Faria Frida? – Um Guia Para Uma Vida Plena, Criativa e Ousada”, de Arianna Davis
. “A Cozinheira de Frida – Um Romance”, de Florencia Etcheves
. “Frida Kahlo e Seus Animalitos”, de Monica Brown e John Parra
. “Frida Kahlo para Meninos e Meninas”, de Nadia Finki e Pitu Saa