Prêmio César, o Oscar francês, consagra “Anatomia de uma Queda” e a atriz alemã Sandra Hüller
Por Maria do Rosário Caetano
O Prêmio César, o “Oscar francês”, consagrou Justine Triet e seu “Anatomia de uma Queda” (foto), imenso sucesso internacional do cinema francês contemporâneo. Das onze categorias que disputou, o drama de tribunal laureado com a Palma de Ouro em Cannes, dois Globo de Ouro e cinco indicações ao Oscar de Hollywood, venceu em seis.
A trama, que começa com a morte de um homem, nos congelantes Alpes franceses (acidente, suicídio ou assassinato?), foi laureada nas categorias mais disputadas do César (melhor filme, direção, atriz, para a alemã Sandra Hüller, e roteiro original, de Justine Triet e seu marido, o também ator e diretor Arthur Harari). Mais duas categorias complementaram o triunfo (ator coadjuvante, para Swann Arlaud, que interpreta o advogado da personagem de Sandra Hüller, e montagem, para Laurent Sénèchel).
Como se vê, o filme de Triet “passou o rodo”. Transformou-se em sucesso histórico por tratar-se de longa-metragem realizado por uma mulher (a segunda laureada como melhor diretora, ao longo das 39 edições do César), por seu reconhecimento dentro e fora das fronteiras francesas e por ser ter obtido enorme sucesso de público (mais de 1,5 milhão de ingressos na França, 400 mil nos EUA e 150 mil no Brasil, onde continua em cartaz).
O êxito de “Anatomia de uma Queda” não impediu que dois outros filmes recebessem prêmios significativos – “O Reino Animal”, de Thomás Cailley, narrativa de gênero, na qual destacam-se seres mutantes ou “monstros”, e “Cão Danado”, de Jean-Baptiste Durand, drama sobre jovens perdidos e insólita amizade.
O original e criativo “O Reino Animal”, recordista de indicações (12), sucesso de crítica e de público (1.110.000 espectadores), conquistou cinco César em categorias técnicas — fotografia, música, figurino, som e, como não podia deixar de ser, efeitos especiais. Estes são essenciais à narrativa, que apresenta, de forma o mais realista possível, a transformação de seres humanos em híbridos de pássaros, rãs, macacos, etc.
Já ao envolvente “Cão Danado” (“Le Chien de la Casse”), outra realização de muitas qualidades, coube o prêmio de melhor filme de diretor estreante e o de ator revelação (Raphaël Quenard).
Quenard interpreta Mirales, jovem que vive numa pequena cidade no sul da França (Le Pouget), ao lado de dois amigos inseparáveis, um ruivo, silencioso e humano, apelidado Dog (Anthony Bajon), e o outro, seu cão Malabar. A chegada de Elsa (Galatea Bellugi), jovem de grande beleza, pós-graduada em Literatura Comparada, vai alterar profundamente a vida de Dog e Mirales.
O primeiro, frágil e travado, cairá de amores (correspondidos) por ela. O autoritário e contraditório Mirales não gostará do que vê. Ele também é culto. Cita Montaigne em diálogos cotidianos e conhece muito bem a obra de Herman Hesse. Mas tem “Dog” na conta de um segundo cão de estimação. É impressionante a relação de dominação que ele exerce sobre o amigo. Uma estreia das mais alvissareiras, que foge dos clichês de filmes de gangues de desocupados.
Outra sólida narrativa de tribunal, que faz companhia a “Anatomia de uma Queda” – “O Caso Goldman”, de Cedric Kahn — foi indicada em nove categorias. Só venceu em uma, mas por total merecimento: melhor ator, para Arieh Worthalter. Ele derrotou o protagonista de “O Reino Animal”, o “babacool” Romain Duris, um dos atores mais estimados da França.
Worthalter recria, em desempenho realmente notável, o judeu e ativista de extrema-esquerda Pierre Goldman (1944-1979), personagem que marcou a crônica político-judicial francesa nos efervescentes anos 1960. Submetido a julgamento popular, acusado de quatro assaltos à mão armada (que resultaram na morte de duas mulheres), Goldman usará sua inteligência (e irreverência) para reforçar imagem de intelectual de gauche. E tumultuar o julgamento. A mídia francesa ajudará a reafirmar a imagem (romantizada?) do ativista.
Num ano de ótimos filmes, o cinema francês pode (e deve) orgulhar-se de ter realizado dois poderosos dramas de tribunal, ambos imperdíveis. “Anatomia de uma Queda” vem recebendo consagração avassaladora do público e da crítica. Agora, resta esperar que “O Caso Goldman” chegue aos cinemas brasileiros. Ele fez jus a sessões bastante concorridas na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro do ano passado.
Detalhe digno de nota: Arthur Harari, companheiro de Justine Triet, e premiado como co-roteirista de “Anatomia”, aparece em “Caso Goldman”, como intérprete do advogado do espirituoso e desconcertante Pierre Goldman.
O filme “L’Amour et le Forêts”, que recebeu diversas indicações, destacou-se em categoria importante – melhor roteiro adaptado. A trama foi urdida pela diretora Valérie Donzelli, em parceria com Audrey Diwan. Ambas cineastas respeitadas. Donzelli dirigiu, entre outros filmes, o vibrante e obrigatório “A Guerra Está Declarada” (2011). Diwan ganhou a Palma de Ouro, em Cannes, por sua adaptação do romance “O Acontecimento”, da Prêmio Nobel de Literatura Annie Ernaux.
“Je Verai Toujours vos Visages”, de Jeanne Henry, filha da atriz Miou-Miou, levou apenas um César – o de melhor atriz coadjuvante para Adèle Exarchopoulos. A cativante atriz de “Azul é a Cor Mais Quente” (Abdellatif Kechiche, 2013, Palma de Ouro em Cannes) vem desenvolvendo carreira das mais instigantes. Ela participou do César com dois filmes, pois interpreta, também e com o frescor costumeiro, uma jovem policial em “O Reino Animal”. Seu prêmio foi merecidíssimo.
Exarchopoulos aparece luminosa em “Je Verai Toujours vos Visages”, um filme apenas mediano. Mesmo que lhe caiba interpretar jovem traumatizada pelo assédio sexual sofrido por ação do irmão, quando contava apenas 12 anos. Tornou-se atriz pornô e vagou pela vida até encontrar o amor. Mas a moça deseja passar sua dor a limpo recorrendo a mecanismo garantido pelo Judiciário francês – a Justiça Reparativa. Aquela que coloca vítima e algoz, frente à frente, em encontros mediados por psicólogos. Objetivo: buscar a reconciliação possível. Por esse longa-metragem, quatro atrizes disputaram o César de melhor coadjuvante (Miou-Miou, Leila Bekhti, Elodie Bouchez e a vencedora Adèle).
Na categoria documentário, um filme que vem causando furor (“As Filhas de Olfa”) derrotou o detentor do Urso de Ouro de Berlim, “No Adamant”, de Nicolas Philibert (sobre portadores de distúrbios mentais que praticam atividades artísticas em barco que navega pelo Rio Sena).
A tunisiana Kaouther Ben Hania, 46 anos, diretora de “As Filhas de Olfa”, iniciou sua vitoriosa trajetória conquistando o Olho de Ouro de melhor documentário no último Festival de Cannes. E foi parar entre os cinco finalistas ao Oscar 2024. Aliás, pela segunda vez, pois seu filme anterior – o estranho “O Homem que Vendeu sua Pele” – disputou a estatueta de melhor longa internacional. Dessa vez, ela é finalista na categoria melhor filme documental. “As Filhas de Olfa”, falado em árabe e com estreia garantida no Brasil, conta a história das quatro filha da Senhora Olfa, uma mãe tunisiana. As duas mais velhas desaparecem. A cineasta as substitui por duas atrizes e – em processo marcado pelo hibridismo, característica cada vez mais forte no cinema documental – constrói narrativa empenhada em questionar os alicerces estruturantes de nossas sociedades patriarcais.
O melhor filme de animação eleito pelos associados da Academia Francesa foi “Linda Veut de Poulet!” (“Linda Quer Frango”), de Chiara Malta e Sébastien Laudenbach. Ele derrotou “Interdit aux Chien e aux Italiens”, de Alain Ughetto, e “Mars Express”, de Jérémie Périn.
Quem assistiu às peripécias de “Lindá” durante a Mostra Internacional de Cinema São Paulo foi tomado pelo encantamento. O filme é de beleza plástica imensa e única (totalmente fora do padrão industrial-hollywoodiano). Trama e personagem se mostram plenos de vitalidade e muito envolventes. Tomara que consiga chegar ao circuito comercial brasileiro.
Na categoria melhor filme estrangeiro deu-se o inesperado. Venceu o canadense (do Quebec de expressão francesa) “Simple Comme Sylvain”, de Monia Chokri. Que derrotou os pesos-pesados “Rapto” (Rapito), de Marco Bellocchio (Itália), “Perfeitos Dias”, de Wim Wenders (Japão), “Oppenheimer”, de Christopher Nolan (EUA), e o fascinante (e originalíssimo) “Folhas de Outono”, de Aki Kaurismaki (Finlândia).
Aguardemos o lançamento do filme quebequoise para ver se houve justiça ou “brodagem” dos votantes. Ou seja, se puxaram a sardinha para o fogo que alimenta o cinema de expressão francófona. Afinal, “Simple Comme Sylvain” não vem causando sensação em sua trajetória, desde que estreou na mostra paralela Un Certain Régard, em Cannes.
Confira os vencedores:
. “Anatomia de uma Queda”, de Justine Triet – melhor filme, direção, atriz (Sandra Hüller), roteiro original (Justine Triet e Arthur Harari), montagem (Laurent Sénéchel), ator coadjuvante (Swann Arlaud)
. “O Reino Animal”, de Thomás Cailley – melhor fotografia (David Cailley), música (Andrea Lazlo Simone), efeitos visuais (Cyrelle Bonjean, Bruno Sommier, Jean-Louis Autret), figurino (Ariane Daurat), som (Fabrice Osinski, Raphaël Sohier, Matthieu Fichet e Nils Barletta)
. “Cão Danado”, de Jean-Baptiste Durand – melhor filme de diretor estreante, ator revelação (Raphaël Quenard)
. “O Caso Goldman”, de Cédrik Kahn – melhor ator (Arieh Worthalter)
. “L’Amour et les Forêts” – melhor roteiro adaptado (Valérie Donzelli e Audrey Diwan)
. “Je Verai Toujours vos Visages”, de Jeanne Henry – melhor atriz coadjuvante (Adèle Exarchopoulos)
. “Le Théorème de Marguerite” – atriz revelação (Ella Rumpf)
. “Os Três Mosqueteiros – Parte 1 – D’Artgnant, e Parte 2 – Milady” – melhor direção de arte (Stéphane Taillason)
. “As Filhas de Olfa”, de Kaouther Ben Hania (Tunísia França) – melhor documentário
. “Linda Veut de Poulet!” (“Linda Quer Frango”), de Chiara Malta e Sébastien Laudenbach – melhor longa de animação
. “Simple Commme Sylvain, de Monia Chokri (Canadá/Québec) – melhor filme estrangeiro
. César de honra – Christopher Nolan (por sua trajetória)