A belga Virginie Efira brilha em “Tudo ou Nada”, drama fiel ao estilo Ken Loach-Irmãos Dardenne

Foto © David Koska

Por Maria do Rosário Caetano

“Tudo ou Nada”, versão brasileira para o original “Rien à Perdre” (Nada a Perder), produção franco-belga, é um belo drama sobre a maternidade e seus desafios. Lançamento dessa quinta-feira, 28 de março, o filme marca a estreia na ficção de Delphine Deloget, vinda de premiada carreira no cinema documental.

A realizadora francesa, de 48 anos, estreia com o pé direito, escorada na garra de atriz iluminada – a fulgurante Virginie Efira – e seguindo os caminhos trilhados por Ken Loach e os Irmãos Dardenne (estes, conterrâneos da atriz, transformada em estrela com o explosivo “Benedetta”). Fiquem atentos, pois haverá momento (em “Tudo ou Nada”) em que Sylvie Paugam, a personagem de Efira, repetirá um dos possíveis gestos da freira do Setecento, Benedetta Carlini, que tanto furor causou no filme do holandês Paul Verhoeven.

A estreia ficcional de Deloget acompanha a história de uma bela mãe solteira, interpretada visceralmente por Virginie Efira, que vem – brinca a imprensa francesa – gerando o “subgênero” apelidado de “Efira movie” (tantos são os trabalhos protagonizados por ela no circuito França-Bélgica).

Sylvie trabalha no balcão de uma casa noturna das mais barulhentas, tem dois filhos, o adolescente rechonchudo J.J. (Jean-Jacques, o ótimo Félix Lefbvre) e o menino Sofiane, de seis anos (Alexis Tonetti, encantador) –, que se viram no bagunçado apartamento dos três. Um dia, o caçula, altas horas da noite, sente fome e resolve fritar batatas. Acaba sofrendo queimaduras e indo parar no hospital.

O Serviço Social francês, dedicado a zelar pelas crianças, coloca agentes no encalço de Sylvie. Mãe amantíssima, ela se nega a dar ouvidos aos chamados da “educadora social” Madame Henry (India Nair). Para complicar a vida de Sylvie, ela tem que abrigar em sua casa um dos irmãos, o malucão Hervé (Arieh Worthalter). O outro, Alain (Mathieu Demy), mais careta e organizado, embora tenha no passado vício em jogos de cassino, não mantém boas relações com ela.

Quando o Serviço Social consegue tirar Sofiane do lar materno, Sylvie vira uma loba. Tudo fará, ajudada pelo filho adolescente, para resgatar o menino. Contará com a ajuda empenhada da advogada Asma (a afro-francesa Audrey Mikondo).

Ninguém pense que verá um filme protagonizado por uma personagem louro-platinada, linda de morrer, cercada de dois filhos também lourinhos. Não. Deloget, fiel à tradição de seus documentários, que lhe renderam prêmios importantes como o Albert Londres Award, o Regard Neuf Award (Visions du Réel), o Film and Human Rights Award (Pesaro Film Festival) e o Best Documentary Award (New York City International Film Festival), mostra uma França longe dos cartões postais, povoada, como na vida real, também por franceses de origem africana e árabe.

O roteiro, que Deloget escreveu com Camille Fontaine e Olivier Demangel, é complexo e surpreendente. Não há bonzinhos (Sylvie, seus filhos, advogada e irmãos) contra os malvados do Serviço Social. Todos são seres imperfeitos. Claro que a realizadora vê a retirada do poder materno de Sylvie como um excesso, algo kafkiano. Mas teremos até de Madame Henry, que pensávamos ser uma burocrata fanática, uma visão matizada. E as pulsões de Sylvie são de tal forma vitais, instintivas, que acabamos nos questionando. Que caminho ela tomará para resgatar Sofiane? O garoto vai apegar-se ao “lar adotivo” (tema do impressionante e ainda inédito “O Rapto”, de Marco Bellocchio)? Haverá saída, se a cada passo Sylvie se enreda ainda mais por caminhos tortuosos?

Conseguirá uma mulher, uma mãe desorganizada, mas muito amorosa, vencer a luta contra o poder do Estado, cheio de boas intenções, mas de mão-pesada? E se, resistente ao lar adotivo, Sofiane se desestruturar emocionalmente? Ela deverá autorizar os “cuidadores” do Serviço Social a tratar o menino rebelde com medicamentos que o “acalmem”?

Seguindo como talentosa discípula as pegadas do cinema social de Ken Loach e dos Irmãos Dardenne, Deloget faz um filme que prende nossa atenção em tempo integral. E, além do brilho de sua impulsiva protagonista, conta com elenco de apoio de primeira linha. Nenhum deles será reconhecido por nossos espectadores, nem Félix Lefebvre, que atuou em “Verão de 85” (François Ozon, 2020).

Detalhe importante: a narrativa de “Tudo ou Nada” ambienta-se na cidade de Brest, de 150 mil habitantes, situada ao sul da Bretanha. A fotografia calorosa do filme (de Guillaume Schiffman), embalada por trilha moderna, plena de sons e fúria, nos joga no tempo presente, com seus desafios. Muito bem definido pelo cativante J.J., que, inquieto com os gestos impensados da mãe, pondera que ela parece arremessada em “areia movediça, de forma que quanto mais ela se mexe, mais afunda”.

“Tudo ou Nada” participou da mostra paralela Un Certain Regard, no Festival de Cannes, e deve render mais uma indicação aos Prêmios César para Virginie Efira, ano que vem. Ano passado, ela triunfou com “Memórias de Paris”. Este ano, concorreu ao “Oscar francês” com “L’Amour et les Fôrets”, de Valérie Donzelli. Perdeu para a gloriosa (e imbatível) Sandra Hüller, de “Anatomia de uma Queda”.

A primeira ficção de Delphine Deloget foi vista por quase 300 mil franceses. O que mostra o poder de atração dos “Efira movie”. Desde a incendiária freira Benedetta Carlini, que a França tornou-se, em definitivo, refém da encantadora star belga. Que faz um filme atrás do outro. E embora pareça uma balzaquiana, Éfira já soma 46 anos.

 

Tudo ou Nada | Rien à Perdre
França-Bélgica, 2023, 112 minutos
Direção: Delphine Deloget
Elenco: Virginie Efira, Félix Lefebvre, Arieh Worthalter, India Hair, Mathieu Demy, Alexis Tonetti, Audrey Mikondo, Oussama Kheddam, Caroline GayFatma Nenyoub, Ariane Naziri, Cédric Vieira
Roteiro: Delphine Deloget com a colaboração de Camille Fontaine e Olivier Demangel
Produção: Olivier Delbosc
Fotografia: Guillaume Schiffman
Direção de arte: Edwige Le Carquet
Música: Astrid Gomez-Montoya
Montagem: Béatrice Herminie
Figurino: Bethsabée Dreyfus, Marie Meyer
Distribuição: Imovision

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