“Clube da Esquina” tem sua trajetória resgatada em filme que revela usina sonora do coletivo mineiro

Por Maria do Rosário Caetano

“Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina”, longa documental de Ana Rieper, chega aos cinemas nessa quinta-feira, 28 de março, portanto na véspera da Sexta-Feira Santa. O dia santificado poderá servir de motivação ao público para que reveja, num filme generoso e coletivo, a trajetória do mais famoso grupo da MPB criado em Minas Gerais. Que nasceu e cresceu num pouco aprazível cruzamento das ruas Divinópolis com Paraisópolis, no bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte.

Já houve série de TV sobre o Clube da Esquina, documentário sobre Cafi, o fotógrafo e artista gráfico que criou a memorável capa do mais badalado disco da trupe esquineira (um menino branco de pés descalços e seu amigo, preto, de tênis, numa beira de estrada de terra, zona rural de Nova Friburgo). Houve, também, um longa-metragem dedicado por inteiro a Lô Borges, o mais jovem, irreverente e apaixonado propagador do movimento (“Lô Borges – Toda essa Água”, de Rodrigo Oliveira e Vânia Catani). Este, ainda por estrear.

“Nada Será Como Antes” se organiza como projeto abrangente. Ana Rieper saiu atrás de grande parte dos integrantes do Clube da Esquina. Os mais famosos (como o astro Milton Nascimento, o Bituca), os grandes músicos (Wagner Tiso, Nivaldo Ornellas, Nelson Angelo, Toninho Horta), os compositores (Márcio e Lô Borges, este o caçula da trupe, pois despontou com 16 anos, Beto Guedes, Tavinho Moura, Flávio Venturini, Ronaldo Bastos) e, claro, evocou a memória de Fernando Brant (1946-2015). E também registrou músicos e compositores que participaram, de alguma forma, dos discos “Clube da Esquina” original (1972) e o “Clube da Esquina 2” (1978), como Robertinho Silva, Luiz Alves, Murilo Antunes, Novelli, Duca Leal, Telo Borges, Marilton Borges, Paulinho Saturnino, Beto Lopes, Paulo Vilara.

Um verdadeiro Clube do Bolinha, temos que constatar. Um só nome feminino – o de Alaíde Costa – poderia ter sido convocado, já que a cantora fez dueto com Milton Nascimento em “Me Deixa em Paz” (no “Clube da Esquina” de 1972). Mas não há como negar que as mulheres tiveram papel secundaríssimo na história do coletivo mineiro.

Os dois álbuns do Clube da Esquina são considerados marcos da Música Popular Brasileira. O primeiro chegou a ser eleito como “o mais importante disco brasileiro de todos os tempos”. Escolha difícil, se evocarmos “Chega de Saudade”, “Tropicália”, “Construção”, de Chico Buarque, “Acabou Chorare”, dos Novos Baianos, entre muitos outros. Mas que ele tem presença entre os dez mais, disso não há dúvida possível.

O Clube da Esquina foi um movimento da grandeza da Bossa Nova, de sua segunda manifestação (a MPB de Chico Buarque, Edu Lobo, Sidney Miller, do próprio Milton Nascimento e outros mais), da Tropicália de Caetano Veloso, Gilberto Gil e companhia, e do Pessoal do Ceará. Quando Milton gravou o primeiro “Clube da Esquina” com os colegas de BH, ele era já um artista consagrado. Havia causado comoção num Festival de MPB com “Travessia”. E já tinha quatro discos editados.

O “Clube da Esquina” seria o primeiro elepê dos jovens da capital mineira e o quinto de Bituca. Aliás, foi ele quem convenceu a recalcitrante Odeon a gravar o disco coletivo. E quem alugou uma casa de praia em Piratininga, na região de Niterói, para que lá fossem compostas as músicas do seminal disco dos mineiros (ele vindo de Três Pontas, embora nascido no Rio, dos belorizontinos e oriundos de outras cidades do estado do Sudeste). Três composições estouraram nas paradas de sucesso: “Nada Será Como Antes”, “Trem Azul” e “Tudo que Você Podia Ser”.

Ao buscar 21 vozes para rememorar a história do Clube da Esquina, a documentarista Ana Rieper correu o risco de gerar um típico “cabeças-falantes”. Mas isso não acontece, porque o filme é mais vivencial que declaratório. Para reviver, por exemplo, a militância política de parte do núcleo duro do movimento, alguns deles revisitarão espaço da universidade onde atuaram no movimento estudantil.

A Família Borges, dedicada à música, aparece em sua casa, em torno do piano. Depois, claro, de Lô lembrar o sempre relembrado encontro do adolescente que era com Milton Nascimento. Tudo aconteceu numa escada do Edifício Levy, na altura do quinto andar, quando Lô, que ia comprar pão, encontrou Bituca cantando. Ali nasceria amizade profunda. Veremos o mesmo Lô, com os irmãos Márcio, Telo e Marilton, cantando “Para Lennon e McCartney”.

Milton Nascimento não deu seu testemunho ao filme, mas permitiu abundante uso de imagens de arquivo e de suas canções e voz única. Rico acervo de época foi utilizado (com pesquisa do craque Antonio Venancio). E, sendo um documentário musical, há muita música na narrativa. Aliás, a melhor parte do filme é aquela dedicada às matrizes do som (dos sons) que embalaram o Clube da Esquina.

A galera era onívora. Absorvia as mais diversas influências, promovendo a soma de Bossa Nova, MPB, jazz, música folclórica negra (e religiosa) das Minas Gerais profundas, sem esquecer a música hispânica (fonte para Wagner Tiso) e a música erudita. Tudo embalado com devoção e assumida influência dos Beatles, a quem direcionaram os versos “Por que vocês não sabem do lixo ocidental?/ Não precisam mais temer/ Não precisam da solidão/ Todo dia é dia de viver // Eu sou da América do Sul/ Sei, vocês não vão saber/ Mas agora sou cowboy/ Sou do ouro, eu sou vocês/ Sou o mundo, sou Minas Gerais” (“Para Lennon e MCartney”).

Quem assistir aos três filmes – “Nada Será como Antes”, “Lô Borges – Toda essa Água” e “Cafi” – terá um rico painel das vivências e musicalidade do coletivo mineiro. Com o filme de Ana Rieper, terá visão panorâmica (mas não superficial) do movimento pela voz de seus principais artífices. Com “Lô Borges”, poderá divertir-se com o artista, que, se não fosse músico, decerto seria comediante, tamanhos são seu talento de contador de histórias e sua franqueza. E, com “Cafi”, o espectador receberá elementos para compreender um tempo em que a MPB era poderosa a ponto de uma grande gravadora permitir que um disco, cuja capa foi feita por um fotógrafo e capista dos mais atrevidos, não tivesse nome, nem dissesse quem era o artista (ou artistas) registrado na bolacha de 33 polegadas. Sim, a capa do “Clube da Esquina” original se resume à foto dos meninos Cacau (Antônio Carlos Rosa Oliveira) e Tonho (José Antônio Rimes). Que, 40 anos depois, processaram Milton e Lô por direitos de imagem. E perderam na Justiça. Mas essa é outra história.

 

Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina
Brasil, 2023, 79 min
Direção e roteiro: Ana Rieper
Fotografia: Jacques Cheuiche
Montagem: Pedro Asbeg e André Sampaio
Consultor musical: Charles Gavin
Produção artística: José Roberto Borges
Pesquisa de imagem: Antonio Venancio
Produção executiva: Suzana Amado
Colaboração de roteiro: Marcio Borges
Edição de Som: Maria Muricy
Participação: Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes, Wagner Tiso, Toninho Horta, Ronaldo Bastos, Flavio Venturini, Marcio Borges, Murilo Antunes, Tavinho Moura, Nivaldo Ornellas, Robertinho Silva, Novelli, Nelson Ângelo, Luiz Alves, Duca Leal, Telo Borges, Marilton Borges, Paulinho Saturnino, Beto Lopes, Paulo Vilara
Distribuição: Lira Filmes e Vitrine Filmes (Sessão Vitrine Petrobras)
Pré-estreia: 27 de março, às 20h, no Espaço Itaú de Cinema – Frei Caneca (Rua Frei Caneca, 569 – 3º piso), com sessão seguida de debate com a diretora Ana Rieper e o músico Toninho Horta
Estreia em 19 cidades: Aracaju, Belém, Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Goiânia, João Pessoa, Maceió, Manaus, Niterói, Palmas, Porto Alegre, Recife, Rio Branco, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Vitória

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