“Frida” narra sua vida em filme que soma documentário e animação

Por Maria do Rosário Caetano

Mais um filme sobre Frida Kahlo? E o público não se cansa? Ainda há algo de novo a dizer sobre a pintora que foi companheira do muralista Diego Rivera e amante de Trotski?

Carla Gutiérrez, montadora e documentarista norte-americana, nascida e criada no Perú, acredita que sim. Há ainda muito a se mostrar (e dizer) sobre a pintora mexicana, que viveu à sombra de Rivera, mas foi, em tempos de reafirmação da mulher, redescoberta e transformada em ícone planetário. Por isso, Carla realizou “Frida”, um fascinante documentário de sintéticos 88 minutos, enriquecido pelo uso criativo do cinema de animação. O filme está disponível na Amazon Prime.

Quem assistiu aos três episódios da série “Tornando-se Frida Kahlo”, de Jane Buckwalter e Louise Lockwood, realizada pela BBC de Londres (Star+), não deve preocupar-se. A proposta de Carla Gutiérrez trilha caminhos bem diferentes.

A realizadora não está interessada em narrativa biográfica, nem em busca de fontes e documentos inéditos, como fizeram as duas inglesas, mas sim em traçar retrato íntimo da pintora mexicana, desenhado pela própria artista. E a partir de fonte subjetiva – os Diários (ilustrados) de Frida, que os escreveu até sua morte, em 1954, aos 47 anos. E também de cartas e entrevistas da artista.

Uma latino-americana, afinal Carla nasceu no Peru, busca, com sororidade, as emoções, sensações, desejos, sonhos e frustrações da pintora, que expôs suas entranhas na criação de seus quadros e na escrita de seus famosos diários. Não custa lembrar, Frida era muito espirituosa e irônica. Já no começo de sua narrativa existencial, ela lembra que a mãe era fanática religiosa, a ponto de encomendar missas na própria casa da família. O pai, fotógrafo de origem alemã, era ateu. Sob essas duas influências, ela, ainda pré-adolescente, se perguntava: “será que a Virgem Maria é mesmo virgem?” Na adolescência, Frida passou a desfrutar de dinâmica convivência com o grupo Los Cachuchas, disposto a colocar o México arcaico de pernas pro ar.

Em sintonia com nosso tempo histórico, Carla dá ênfase, em seu documentário, aos sentimentos, à postura feminista de Frida e aos traumatizantes abortos expontâneos que ela sofreu (um deles nos EUA). A cineasta – ao contrário da série britânica, que ignora o assunto – dá destaque à bissexualidade da pintora. E o faz evocando voz masculina, a de Diego Rivera, com quem Frida se casou por duas vezes.

Em carta a uma amiga, Rivera pergunta se ela sabia que Frida era homossexual. Não se sabe o que a interlocutora respondeu. Mas o documentário de Carla Gutiérrez faz coro a muitas outras narrativas (incluindo os filmes ficcionais “Frida, Natureza Viva”, de Paul Leduc, e “Frida”, de Julie Taymor).

Como Frida amou Rivera com todas as suas forças (palavras dela: “te quiero mas que mi propia pele”) e viveu experiências amorosas com muitos parceiros do sexo masculino, a ênfase em sua vida erótica acaba tomando o rumo hegemônico da heterossexualidade.

Para tornar a questão ainda mais complexa, muitas vozes se somam na farta obra editorial sobre Frida Kahlo para garantir que Rivera, um garanhão desmedido, era, contraditoriamente, ciumento. Preferia que a esposa se relacionasse com mulheres, mantendo-se distante dos homens.

O escritor francês J.M.G Le Clézio, autor do livro “Diego e Frida” (Scritta, 1993), integra o time dos que não acreditam na homoafetividade de Frida. Na página 108 dessa obra apaixonada pelo casal mais famoso da pintura mexicana, ele escreve: “Enquanto Diego vive sua vida sensual, devorando todos e todas que dele se aproximam e continua, incansavelmente, a cobrir as paredes com signos e símbolos de uma história que o arrebata, Frida sabe que, longe de seu sol, pode apenas esfriar e descer ao inferno do nada. Procura sobreviver, refugia-se com Anita Brenner, faz um mad cap flight em avião particular até Nova York, ensaia flertar com outros homens, permite que lhe atribuam uma lenda de experiência lésbica”.

Para Le Clézio, que ganharia o Prêmio Nobel de Literatura em 2008, até os amantes masculinos de Frida (Nickolas Murray, o soviético Trotski e o escultor nipo-americano Isamu Noguchi) foram “usados para despertar ciúmes em Diego”.

O romancista, que é também professor universitário e estudioso da história cultural do México, país ao qual dedicou diversas obras, defende em “Diego e Frida” que o amor dela, a frágil “paloma”, foi integralmente canalizado para o corpulento “elefante” (ou “sapo”, como ela chamava Diego em momentos lúdicos). Frida enfrentou graves problemas de saúde desde que, num acidente, uma barra de ferro rasgou suas entranhas. Ela passou um ano hospitalizada. Sua vida foi uma soma de dores martirizantes. Dores que ela recriou na obra mais confessional e corporal da arte pictórica mexicana.

Diego e Frida se comprometeram a ter vidas livres. Eram comunistas militantes e acreditavam no “homem novo”. Foram os anfitriões do líder do Exército Vermelho bolchevique, Leon Trotski, em seu exílio mexicano. Apesar de terem nascido numa sociedade patriarcal, ambos desejavam experimentar novas formas de vida. Foi o que fizeram. A prática do amor livre estava, portanto, dentro do projeto existencial dos dois, por mais machista que Diego fosse.

Para o documentário de Carla Guttiérrez (que causou sensação na última edição do Sundance Festival, nos EUA), Frida teve, sim, experiências homoafetivas. Mas esse não é o ponto central do filme. O que se busca é a subjetividade e a originalíssima obra da artista.

A cineasta escalou voz feminina quente e apaixonada – a da atriz Fernanda Echevarría del Rivero – para expressar, em espanhol, trechos dos “Diários” de Frida. E, vez ou outra, Carla introduz as vozes de Rivera (Jorge Richards), Alejandro Gómez Arias, o primeiro amor da adolescente Frida (Manuel Cruz Vivas), Lucienne Bloch (Lindsay Conklin), Jean van Heijenoort (Pablo Alarson), André Breton (Tyler Beerley), entre outros. Mas sem tirar o protagonismo absoluto de pintora.

O que encanta em “Frida” – se comparado com a série britânica, fruto de riquíssima pesquisa padrão BBC – é a beleza das imagens. Já na abertura, o documentário nos seduz com intervenção sobre a obra mais famosa da artista – “A Coluna Quebrada”, de 1944. Recursos do cinema de animação fazem ruir a coluna grega que substitui a coluna vertebral de Frida Kahlo.

O mesmo procedimento – dar movimentos às obras da artista – se repetirá ao longo do filme. E muitas fotos em preto-e-branco terão elementos colorizados. Tais intervenções, fruto das mais avançadas técnicas do cinema contemporâneo, trazem a assinatura de Ernie Schaeffer.

Carla Gutiérrez, membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood e associada da American Cinema Editors, é, também, mestre em cinema pela Universidade de Stanford. Conhece, portanto, seu ofício. Ela quis homenagear Frida com um documentário poético, delicado e moderno. E respeitando a língua materna da artista. Ao somar imagens de arquivo a técnicas do cinema de animação, ela uniu-se ao grupo de realizadores que têm gerado filmes híbridos e de imenso valor artístico.

A trilha sonora do documentário é das mais envolventes em sua busca de sonoridades e canções que ajudam a impregnar a narrativa de atmosfera essencialmente mexicana, mas sem apostar na folclorização. Carla Gutiérrez realizou um filme imperdível.

 

Frida
Documentário-animação, EUA, 2024, 88 minutos
Direção: Carla Gutiérrez
Supervisor de fluxo de imagens e colorista senior: Ernie Schaeffer
Produção: Katia Maguire, Sara Bernstein, Loren Hammondes
Onde assistir: Amazon Prime

Tornando-se Frida Kahlo
Inglaterra, 2023, série documental em três capítulos
Direção: Jane Buckwalter e Louise Lockwood
Produção: BBC de Londres
Idioma original: inglês
Duração: 52 minutos cada capítulo
Onde assistir: Star+

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