Tragédia de mulheres tunisianas faz de “Filhas de Olfa” forte candidato ao Oscar de melhor documentário
Por Maria do Rosário Caetano
No período de três curtos anos, a cineasta tunisiana Kaouther Ben Hania fez história. Ela conquistou duas vagas como finalista ao Oscar. Primeiro, com o longa ficcional “O Homem que Vendeu sua Pele” (2021), disputou a estatueta de melhor filme internacional. Agora, com “As 4 Filhas de Olfa” – estreia dessa quinta-feira, 7 de março, nos cinemas brasileiros – disputa o Oscar de melhor longa documental.
Para vencer a disputa, a diretora magrebiana, de 46 anos, terá que derrotar dois pesos-pesados: “A Memória Infinita”, da chilena Maite Alberdi (única sul-americana indicada duas vezes na categoria melhor documentário), e “20 Dias em Mariupol”, do ucraniano Mstyslav Chernov. E, correndo por fora, no terreno da zebra, disputam a estatueta dourada – nesse domingo, 10 de março – “Bobi Wine: O Presidente do Povo”, de Moses Bwayo e Christopher Sharp (Uganda-EUA), e o canadense “To Kill a Tiger”, de Nisha Pahuja, rodado na Índia.
“As 4 Filhas de Olfa” chega bem recomendado. Afinal, em maio do ano passado, conquistou o Olho de Ouro, troféu especial destinado ao melhor documentário exibido em Cannes (seja na disputa pela Palma de Ouro, Un Certain Régard, Quinzena dos Realizadores ou Semana da Crítica). Mês passado, conquistou o César de melhor documentário, já que o filme é uma produção franco-tunisiana. Kaouther Ben Hania, aliás, vive entre Paris e Tunis.
A cineasta já escreveu e dirigiu cinco longas documentais ou ficcionais. “As 4 Filhas de Olfa” é resultado de engenhosa mistura dos dois gêneros. Sua base é documental, pois reconstituiu a dramática história (real) de seis mulheres, de três gerações. Olfa é mãe de quatro filhas, que praticamente criou sozinha – Ghofrane e Rahma, as mais velhas, e Taysir e Eya, as mais novas. As duas primeiras, saberemos no começo do filme, estão desaparecidas. As mais jovens vivem com a mãe, na Tunísia. Há uma sexta mulher nessa família de mulheres: a pequena Fatma, neta de Olfa, que veremos bebê e até chegar aos oito anos.
Kaouther Ben Hania entra em cena para estabelecer pacto com Olfa, Taysir e Eya. E definir os procedimentos que conformarão o filme. Ela, que não estava satisfeita com o registro apenas documental de sua narrativa, avisa ao trio que duas atrizes interpretarão as filhas desaparecidas. Uma terceira interpretará Olfa, mais jovem e nos momentos mais terríveis de sua vida.
O resultado é impressionante. Tudo nos encaminhará, perigosamente, a raciocínio moral e social. Sem contar com a ajuda do marido omisso, Olfa come o pão que o diabo amassou para criar as meninas. A veremos, ao longo de 104 minutos, com suas paixões, contradições e ambiguidades.
Num dos trechos mais impressionantes do documentário, a senhora Olfa evocará a descoberta tardia do amor e da paixão carnal por um açougueiro, esse sim, um “homem de verdade”. Nada a ver com seu ex-marido, com quem se relacionava apenas para procriar.
Recém-saído da prisão, o homem com o qual Olfa viverá um louco amor, é um assassino. Mas o que fazer se ele permitia que ela se sentisse plenamente mulher? O fato de ele ser um criminoso não a incomodava de forma alguma. “Se ele cometesse outro crime de morte”, ela assegurará, “o ajudaria a enterrar o corpo”.
Os desdobramentos da história real da família de Olfa serão revelados aos poucos. Como se fossem retiradas as camadas que compõem uma cebola. Quanto mais a narrativa avança, mais acontecimentos impressionantes se acumulam.
Kaouther Ben Hania acaba por desenhar impressionante retrato da sociedade patriarcal tunisiana, que teima em manter-se retrógrada. Veremos mulheres modernas, com roupas e cabelos góticos ou azuis, em fina sintonia com as modas urbanas do Ocidente. Mas veremos também essas mesmas mulheres portando o hihab, o véu que lhes cobre os cabelos, ou o niqab (parecido com uma burca) que as esconde por inteiro.
A Tunísia que conheceremos, ao longo do filme, é uma sociedade que vive entre a modernidade e a tradição mais rigorosa. Com o triunfo do Daesh (Estado Islâmico), a trama (com muito de ficcional) percorrerá caminhos ainda mais surpreendentes. E angustiantes. O registro documental ganhará força.
Se “O Homem que Vendeu sua Pele” parecia feito para chocar, o mesmo não se dá com “As 4 Filhas de Olfa”. O dispositivo utilizado por Kaouther Ben Hania funciona muito bem. As duas atrizes, em contato direto com Olfa, Taysir e Eya, criam (ou recriam) diálogos que, no começo, parecem girar em círculo. A terceira atriz, que representa a mãe das quatro jovens nos momentos mais dolorosos da reconstrução, também enriquece o filme. E assim, à medida que os fatos vão se acumulando, a narrativa ganha ritmo vertiginoso e apaixonante.
Se, em algum momento, alimentamos a suposição que as irmãs mais velhas teriam desaparecido ao trilhar caminhos que as levaram à prostituição (prática condenada com rigor nos países muçulmanos), a parte derradeira desse ótimo doc-fic nos dará uma rasteira. Só vendo o filme (com fotografia arrebatadora e de cores intensas) para vivermos plenamente tal experiência.
Dessa vez, com “As 4 Filhas de Olfa”, a cineasta magrebiana realizou um filme notável. Que as mulheres o assistam no Oito de Março, Dia Internacional da Mulher.
As 4 Filhas de Olfa
Tunísia-França, 2023, 104 minutos
Direção e roteiro: Kaouther Ben Hania (e também montagem, em parceria com Jean-Christophe Hym e Qutaiba Barhamji)
Elenco: Nour Karoui e Ichraq Matar (as filhas desaparecidas), e Hend Sabri (Olfa, em algumas sequências do filme)
Fotografia: Farouk Laaridh
Trilha sonora: Amine Bouhafa
Edição: Jean-Christophe Hym, Qutaiba Barhamji e Kaouther Ben Hania
Distribuição: Synapse
FILMOGRAFIA
Kaouther Ben Hania (Sidi Bouzid – Tunísia, 27 de agosto de 1977)
2023 – “As 4 Filhas de Olfa” (Olho de Ouro de melhor documentário, em Cannes)
2020 – “O Homem que Vendeu sua Pele” (ficção, melhor ator no Un Certain Régard, Cannes, finalista aos Oscar 2021)
2017 – “A Bela e os Cães” (ficção)
2016 – “Zaineb N’Aime Pas la Niege” (documentário)
2013 – “Le Challat de Tunis”
OS OUTROS CONCORRENTES AO OSCAR DOCUMENTAL:
. “20 Dias em Mariupol” (Ucrânia, 2023, 95 minutos), de Mstyslav Chernov – Estreia nos cinemas, nessa quinta-feira, 7 de março, com lançamento da Synapse. O filme registra os primeiros momentos da guerra movida pela Rússia contra a Ucrânia. Durante 20 dias, equipe cinematográfica documenta, com dificuldades e risco, o sofrimento da população civil de Mariupol (cidade de 450 mil habitantes, localizada ao leste do país, na costa norte do Mar Azov). Grupo de jornalistas fica retido na cidade sitiada. À medida que os combates se intensificam, muitos moradores (e jornalistas) deixam o local. Os que permanecem (incluindo a equipe do filme) lutam para denunciar as atrocidades da guerra. Premiado como melhor documentário pelo Bafta.
. “A Memória Infinita”, de Maite Alberdi (Chile, 2023, minutos) – Disponível na Apple TV e Paramount. Com seu longa anterior, “O Agente Secreto” (El Agente Topo), Maite foi finalista ao Oscar 2020. Com humor e carinho, a cineasta infiltrava um velhinho, transformado em detetive, numa casa de idosos, para descobrir se estes eram maltratados. Agora, com “A Memória Infinita”, Grande Prêmio do Júri, no Festival Sundance, e Goya de melhor longa ibero-americano, Maite registra a história de par amoroso – a atriz e ex-ministra da Cultura do Chile Paulina Urrutia e seu marido, o escritor Augusto Góngora – abalado pelo Mal de Alzheimer.
. “To Kill a Tiger”, de Nisha Pahuja (Canadá, 2023, 127 minutos) – Não estreou nos cinemas brasileiros e ainda não está disponível em plataformas de streaming. O tema do filme é dos mais oportunos: o estupro de mulheres na Índia (vide o caso recente da turista brasileira Fernanda Santos, em Dunka). A família Ranjit, que vive numa aldeia, em Jharhand, luta por justiça depois que sua filha adolescente foi brutalmente seviciada. Quem deve julgar o crime? A própria comunidade ou tribunal judicial devidamente constituído? Os homens do lugar hostilizam, além da família Ranjit, a equipe que realiza o filme. Produção do National Film Board eleita como um dos dez melhores documentários canadenses do ano. Estreou no TIFF (Festival Internacional de Cinema de Toronto). Outro filme da seleção do Oscar dirigido por uma mulher.
. “Bobi Wine: O Presidente do Povo”, de Moses Bwayo e Christopher Sharp (Uganda-EUA, 2023, 117 minutos) – Disponível na plataforma Star Plus, o filme mostra o ator e músico pop, que lhe dá nome, em processo eleitoral, disputando a presidência do país africano. O que veremos de absurdo e inimaginável nos deixará, a todos, estarrecidos. A violência exercida pelo governo do presidente Yoweri Musenavi, que comanda o país desde 1986 (portanto há quase 40 anos), sobre seus oponentes é brutal. O dirigente altera as leis a seu bel prazer. Inclusive para permitir que se reeleja infinitamente.