Prêmios Platino consagram “A Sociedade da Neve”, “Abelhas”, “Robot Dreams” e “Memória Infinita”
Por Maria do Rosário Caetano
Em cerimônia realizada na Riviera Maya, no México, os Prêmios Platino consagraram o cinema espanhol, que vive fase vibrante e substantiva. Seis troféus foram dedicados ao grande vencedor da noite, o épico “A Sociedade da Neve” (foto), de Juan Antonio Bayona, que representara a Espanha no Oscar de melhor filme internacional.
Outro filme da terra de Buñuel, Saura e Almodóvar — o simpático “Robot Dreams”, de Pablo Berger — também fora lembrado pela Academia de Hollywood (com duas indicações — melhor longa de animação e melhor trilha sonora). Não ganhou em solo estadunidense. Mas foi laureado pelo Platino em ambas. O seu mais forte concorrente — “Atiraram no Pianista”, de Fernando Trueba e Javier Mariscal, sobre o assassinato do pianista brasileiro Tenório Jr — também era uma produção espanhola.
Mais um filme da Espanha foi ampla e merecidamente premiado – “20 Mil Espécies de Abelhas”, da estreante basca Estibaliz Urresola Solaguren. Ganhou, claro, o Platino de melhor “opera prima” (filme de diretor estreante, pois a língua espanhola usa conceito quantitativo, não qualitativo, como a portuguesa). Ganhou, também, o Educação em Valores, para filmes de empenho humanista, roteiro, da própria Estibaliz, e atriz coadjuvante, para a formidável Ane Gabarain, da série “Pátria”. “Abelhas”, em cartaz nos cinemas brasileiros, constrói-se como narrativa vigorosa, de temática identitária, mas realizado com pegada documental e complexidade narrativa.
O cinema espanhol ainda somou prêmios em outras categorias. A começar pela melhor comédia — “Bajo Terapia”, de Gerardo Herrera, — que não é lá grandes coisas, mas sua rival era outra produção espanhola, “Te Estoy Amando Locamente”, de Alejandro Marin, esta mais divertida e interessante (sobre a comunidade gay da Sevilha andaluza, em tempos em que “sair do armário” constituía-se em ato de coragem).
Completaram o placar espanhol, que triunfou em 14 das 17 categorias cinematográficas, “Un Amor”, de Isabel Coixet, cuja atriz Laia Costa foi eleita a melhor protagonista, e “Cerrar los Ojos”, do mestre Victor Erice, reduzido a um único reconhecimento, o do trabalho de José Coronado como melhor coadjuvante.
Os jurados dos Prêmios Platino perderam a chance de atribuir ao realizador de filmes da grandeza de “O Espírito da Colmeia”, que soma 83 anos, o troféu de melhor diretor. Seria um prêmio consolação? De forma alguma.
“Cerrar los Ojos” mostra que o octogenário Victor Erice continua realizando um cinema poético e contra a corrente, inventivo e ousado. Pena que a intenção dos jurados platinos tenha caminhado para a consagração total (e desmedida) de “A Sociedade da Neve”, que é um ótimo filme sobre a tragédia dos jogadores de rugby uruguaios, vítimas de acidente aéreo nos Andes (1972). Mas, vale repetir, o filme de Bayona foi superestimado.
O Brasil padeceu de ausência completa (e injusta) na disputa pelos troféus Platino, sejam cinematográficos, sejam televisivos. Algo está errado nessa equação. Como pode o maior produtor audiovisual da América Latina ser ignorado por anos seguidos e, em onze edições, nunca ter vencido na categoria principal?
A Egeda (Entidade de Gestão de Direitos dos Produtores Audiovisuais) e a Fipca (Federação Ibero-Americana de Produtores Cinematográficos e Audiovisuais), junto às Academia associadas, devem refletir sobre o assunto e detectar as causas de tamanha incompreensão (ou rejeição!) com o audiovisual brasileiro.
Para atenuar o equívoco, que vem tornando-se rotineiro, dois atores brasileiros com carreira internacional consolidada (Alice Braga) e ascendente (Gabriel Leone, que em breve será visto na pele de Ayrton Senna, na Netflix) subiram ao palco para entregar prêmios importantes. Mas foi só.
Se a Espanha arrasou no campo cinematográfico, a Argentina quase passou o rodo nas categorias televisivas: ganhou três dos seis troféus em disputa. Como melhor série foi eleita “Barrabrava”. O melhor criador de narrativa seriada foi Daniel Burman (por “Yosi, o Espião Arrependido”). O melhor coadjuvante coube, merecidamente, a Andy Chango, que interpreta o roqueiro Charly García no melodrama rebelde protagonizado por Iván Hochman, intérprete de outro roqueiro-trovador, Fito Paes. Disponível na Netflix, a série “El Amor Después del Amor” foi rebatizada por aqui com o genérico título de “Amor e Música”.
A Espanha ficou com dois Platino destinados a séries, no caso “La Mesías”: melhores atrizes (protagonista para Lola Dueñas, e coadjuvante para Carmen Machi).
O Chile — que nas categorias cinematográficas triunfou com o belíssimo “A Memória Infinita”, de Maite Alberdi (outro indicado ao Oscar) — conquistou mais um troféu para o premiadíssimo Alfredo Castro, irreconhecível atrás de pesada caracterização que o transformou no presidente Salvador Allende (1908-1973). Sua série (“Os Mil Dias de Allende”) conta a trágica história do líder da Unidade Popular, vista pelos olhos de um de seus assessores, o espanhol Joán Garcez. E, mais uma vez, Alfredo Castro dá um show.
A série “Barrabrava”, a eleita platina, lembra filmes ambientados em grandes periferias urbanas, como o brasileiro “Cidade de Deus”. Ela se passa em bairro pobre de Buenos Aires, onde vivem os irmãos César (Gastão Pauls, de “Nove Rainhas”) e Polaco (Matías Meyer). Os dois torcem para o Libertad, time que lembra o Boca Juniors e equipes assemelhadas, aquelas que mobilizam torcidas fanáticas. Praticantes de devoção desmedida e atos impensados.
Os “Barrabrava” são barra pesada, pesadíssima. Com a morte do líder da facção que os tem como integrantes, los hermanos acabam sendo expulsos (por facção rival) da torcida organizada. Que, aliás, está metida em práticas ilegais como roubos, tráfico de drogas etc., etc. Ninguém pense na Argentina de Borges, Piazzola e de bairros chiques como a Recoleta. Tudo se passa nas arquibancadas do estádio do Libertad ou nas “villas” habitadas pelos deserdados (que seriam nossas favelas, embora com construções menos precárias).
O ritmo da narrativa é contagiante e o perfil dos dois irmãos antagônicos: Cesar é violento, mas contido e cerebral. Polaco é violentíssimo, instintivo, age, não pensa. Buscando comparação (preservadas as diferenças), o primeiro se parece com Bené (Phellipe Haagensen) e o segundo com Zé Pequeno (Leandro Firmino da Hora), no já lembrado “Cidade de Deus”.
A Argentina foi assunto recorrente nos discursos da cerimônia de entrega da décima-primeira edição dos troféus Platino, destinados, anualmente, aos melhores filmes e séries ibero-americanos. Tudo começou com o músico (e agora ator) Andy Chango. Ao receber o primeiro prêmio da noite, ele mandou bala. Esculhambou o governo atual (sem citar o presidente Javier Milei), que está perseguindo (asfixiando) a criação cultural e cinematográfica de seu país. E de forma insana.
Outros premiados tocaram no preocupante assunto do apoio público ao audiovisual argentino, incluindo o cineasta espanhol José Antonio Bayona. Todos lamentaram o empenho do governo recém-empossado em destruir produção cinematográfica detentora de dois Oscar e uma das mais vigorosas do mundo ibérico.
Até a atriz Cecília Roth, em discurso memorialista (e sem o élan daquele arrebatador pronunciado por Antonio Banderas, nos Platino de Málaga) falou das dificuldades enfrentadas pelo cinema de seu país. Ela empalmou o Platino de Honor, láurea já conquistada por seu ilustre conterrâneo, Ricardo Darín, pela brasileira Sônia Braga, pela portorriquenha Rita Moreno, pelos mexicanos Adriana Barraza e Diego Luna.
“Chica” de Almodóvar (inclusive no exuberante “Tudo sobre minha Mãe”), Cecília Roth poderia ter contado ao público que participava de duas séries presentes na competição do Platino — como atriz (em “La Mesías”) e como personagem (na série “El Amor Desoués del Amor”, pois foi companheira de Fito Paes, com quem tem um filho).
A décima-segunda edição dos Prêmios Platino acontecerá em Madri, capital espanhola, no primeiro semestre de 2025. Será que, mais uma vez, o audiovisual brasileiro será solenemente ignorado?
Confira os vencedores:
CINEMA
. “A Sociedade da Neve”, de Juan Antonio Bajon (Espanha) – melhor filme, diretor, ator (Enzo Vogrincic), fotografia (Pedro Luque), montagem (Jaumo Marí), som (Marc Orts)
. “20 Mil Espécies de Abelha”, de Estibaliz Urresola Solaguren (Espanha) – melhor filme de diretor estreante, Prêmio Educação em Valores, roteiro (Estibaliz Urresola Solaguren), atriz coadjuvante (Ane Gabarian)
. “Robot Dreams”, de Pablo Berger (Espanha” – melhor filme de animação, melhor trilha sonora (Alfonso Vilallarga)
. “A Memória Infinita”, de Maite Alberdi (Chile) – melhor documentário
. “Un Amor”, de Isabel Coixet — melhor atriz (Laia Costa)
. “Bajo Terapia”, de Gerardo Herrero (Espanha) – melhor comédia
. “Cerrar los Ojos”, de Victor Erice (Espanha) — melhor ator coadjuvante (José Coronado)
. “O Conde”, de Pablo Larraín (Chile) – melhor direção de arte (Rodrigo Baezan)
TELEVISÃO (SÉRIES)
. “Barrabrava” (Argentina) – melhor série (disponível no Amazon Prime)
. “La Mesías” (Espanha) – melhor atriz (Lola Dueñas) e melhor coadjuvante (Carmen Machi)
. “Os Mil Dias de Allende” (Chile) – melhor ator (Alfredo Castro)
. “Yosi, o Espião Arrependido“ (Argentina) — melhor criador de série (Daniel Burman) – disponível na Amazon
. “El Amor Después del Amor” (“Fito Paes – Amor e Música”, Argentina) – melhor ator coadjuvante (Andy Chango) – disponível na Netflix