“A Filha do Pescador” registra confronto entre pai embrutecido e filha transexual

Por Maria do Rosário Caetano

“A Filha do Pescador”, drama colombiano, fruto de parceria com produtores brasileiros, dominicanos e porto-riquenhos, chega aos nossos cinemas nessa quinta-feira, 18 de julho. Trata-se da estreia no longa-metragem de Edgar De Luque Jácome, que deverá atrair espectadores interessados em novas sexualidades. Seus dois protagonistas são Samuel, um pescador que trabalha duro em ilha do Caribe colombiano, e seu filho, Samuelzinho, que sumira de casa junto com a mãe. E nunca mais dera notícias.

Até que, certo dia, o filho à casa torna, mas incorporado na pele de Priscila, transexual adulta, que levara vida dura na cidade grande, onde cuidara da mãe, já falecida, e enfrentara os mais diversos trabalhos. Incluindo a prostituição e pequeno tráfico de drogas. Ela chega com longos cabelos negros, decote que mostra os seios, unhas compridas e pintadas de vermelho, maquiagem forte. E com mala recheada de itens femininos.

O pai, um homem rude, acostumado a enfrentar as profundezas do mar em busca — artesanal e precária — do mero (daí o título original “La Estrategia del Mero”), rejeita a filha com brutalidade. Acostumado aos desafios impostos pela pesca submarina (em mergulho livre) a seu corpo já cansado, pois distante da juventude, Samuel destrata, com todas as suas forças, o filho que virou filha.

Priscila explica sua urgente necessidade de ajuda paterna, pois, para cuidar da mãe enferma, se endividara. Seus credores a buscam para a devida cobrança. Se não pagar, morrerá. O pai não quer saber. Não está em seus planos manter o filho, que virou filha, em sua casa. Tem vergonha dela. A trata com reações desmedidas.

A comunidade de pescadores na qual Samuel se insere desespera-se com o sumiço dos peixes, já que as redes estão voltando sempre vazias. Com delicadeza ímpar, diálogos precisos e narrativa enxuta (apenas 80 minutos), Edgar De Luque construirá sua história de pai e filha que se odeiam. Ele não a aceita. Ela não perdoa atos do passado paterno. E não abaixa a cabeça.

A comunidade de pescadores, isolada do mundo, estranhará ao ver o adolescente que saiu do lugarejo, 15 anos antes, regressar no vistoso corpo de uma mulher. Mas haverá matiz nas reações de cada um deles. E, nesse sentido, o irmão do pescador Samuel será o mais tolerante de todos. Se não for por largueza moral, será por espírito prático. Um adolescente também terá a cabeça aberta. Em certa medida, até o líder dos pescadores esboçará, bem mais tarde, gesto de aceitação. Também por pragmatismo.

Os mistérios do fundo do mar caribenho se somarão à beleza da praia e do casario rústico da ilha colombiana (as filmagens foram feitas na República Dominicana). A fotografia registrará com fina sensibilidade a paisagem física e humana do lugar. E, assim, nos transportará para o ambiente em que vivem aqueles modestos pescadores. Sem apelar para o cartão postal, o filme contrastará a natureza ilhenha, ora calma, ora revolta (por tempestades recorrentes), com os estados de alma de seus personagens.

A montagem (do trio formado pelos brasileiros Karen Akerman e Ricardo Pretti e pelo colombiano Nicolás Herran) terá a mesma delicadeza buscada pelo diretor-roteirista. E os atores – pelo menos os pescadores – parecem mesmo homens do mar, com seus rostos tostados de sol e sal dando consistente credibilidade à história.

Priscila, representada por Natalia Rincón, convence em cada gesto, somando feminilidade e, quando preciso, a força bruta (presente inclusive em seu vocabulário agressivo) dos que a desafiam. Em especial, o pai.

“A Filha do Pescador” é um drama social e afetivo, cujas insinuantes qualidades nos estimulam a esperar novos trabalhos de Edgar De Luque, um nome realmente promissor. Além do mais, o colombiano mostra saber trabalhar em equipe e cercar-se de ótimos profissionais.

Para nos atermos aos brasileiros que com ele colaboraram, vale citar, além das produtoras cariocas (Kromaki e Bubbles Project) e dos montadores (a pernambucana Akerman e o cearense Pretti), o som de Ricardo Cutz (“Bacurau”) e a trilha musical da dupla Pedro Sodré e Rudah Guedes.

Como o rádio traz notícias das ações de paramilitares e do Governo da Colômbia, entremeadas com números musicais, os fãs de sucessos do dolente cancioneiro popular caribenho poderão se encantar. Pela brutalidade de outra figura paterna, não poderemos fruir número dançante protagonizado pelo adolescente Miguelito (Jesús Manuel Romero). Ele tentará ouvir, no aparelho que lhe cobre os ouvidos, um reggaeton. Será impedido.

A Bubbles, coprodutora de “Puan”, dos argentinos Maria Alché e Benjamin Naishtat, espera ver mais esse filme latino-americano (“La Estrategia del Mero” – “A Estratégia da Garoupa”, em tradução literal) conquistar cinéfilos interessados em produções de outras geografias, que não a hegemônica. “Puan” alcançou relativo sucesso no mercado de arte brasileiro e, no final de agosto, concorrerá ao Troféu Grande Otelo de melhor filme ibero-americano.

Será que “A Filha do Pescador” romperá o silêncio que costuma cercar produções de nossos vizinhos, mesmo que feitas em parceria com o Brasil? Aguardemos. E lembremos que o Mero-crioulo (ou garoupa) é um peixe solitário e territorialista. Costuma dispensar a companhia de outros animais marinhos, mas, ao ver mergulhadores, acabará se aproximando para nadar ao lado deles.

O Mero — que adulto poderá medir mais de dois metros e pesar até 400 quilos — encontra-se em vias de extinção.

Um registro: a Bubbles continuará investindo em parcerias com países da América Latina. Já prepara “Muchachos Bañándose en el Lago”, do venezuelano Michael Labarca. E retoma parceria com a atriz Karine Teles, protagonista de “Benzinho” (Gustavo Pizzi, 2018), de sua carteira de produções. Só que, agora, a grande atriz brasileira fará, com “Princesa”, sua estreia como diretora de longa-metragem.

 

A Filha do Pescador | La Estrategia del Mero
Colômbia, Brasil, República Dominicana e Porto Rico, 2023, 80 minutos
Direção e roteiro: Edgar De Luque Jácome
Elenco: Roamir Pineda (Samuel), Natalia Rincón (Priscila), Modesto Lacén (Rula), Roosevelt González (Ruperto), Henry Barrios (Grimaldo), Jesús Manuel Romero (Miguelito), Carlos Hernández (Macacio), Francisco Hernández (Ben-Hur)
Montagem: Karen Akerman, Ricardo Pretti e Nicolás Herran
Trilha sonora: Pedro Sodré e Rudah Guedes
Som: Ricardo Cutz
Distribuição: Bretz Filmes

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