Gauchão reúne sua melhor safra de longas-metragens para disputar Troféus Iecine e EBC
Foto: “Um Corpo Só”, de Cacá Nazario
Por Maria do Rosário Caetano
O Festival de Cinema de Gramado apresentará, este ano — o de sua quinquagésima-segunda edição —, a melhor safra de longas-metragens de sua competição regional, chamada carinhosamente de Gauchão.
Os cinco filmes escolhidos vão disputar troféus artísticos e técnicos distribuídos pela Secretaria de Cultura do Estado e o Troféu Aquisição EBC (Empresa Brasileira de Comunicação), este no valor de R$50 mil.
Entre os selecionados – duas ficções e três documentários híbridos – estão dois títulos premiados. Um internacionalmente, “A Transformação de Canuto”, de Ariel Kuaray Ortega e Ernesto Carvalho (no IDFA, o poderoso Festival de Documentários de Amsterdã) e outro no Brasil, “Memórias de um Esclerosado”, de Thais Fernandes e Rafael Corrêa, melhor filme no Cine PE recifense. Completam a safra “Até que a Música Pare”, de Cristiane Oliveira, “Um Corpo Só”, de Cacá Nazario, e “Infinimundo”, de Bruno Martins e Diego Muller.
Pioneiro na abertura de espaço para competição de filmes realizados no Estado, o festival encontrou apoio decisivo na Assembleia Legislativa, que, desde o boom do cinema gaúcho, advindo do fenômeno “Ilha das Flores” (Jorge Furtado, 1989), entendeu que era chegada a hora de criar una vitrine para o CineGauTchê.
Tudo começou pelo curta-metragem (a mostra regional mais longeva do país). Mas, nos últimos anos, a produção de longas-metragens foi crescendo e a Secretaria de Cultura, através do Iecine (Instituto de Cinema do Rio Grande do Sul), passou a realizar, em parceria com o festival, a competição também no formato de longa duração.
Não há exigência de ineditismo, já que a intenção do Gauchão é servir de vitrine ao que o Estado está produzindo de melhor no campo do audiovisual. Por isso, de segunda-feira, 11, até sexta, 15, os longas serão exibidos no Palácio do Festivais, em horário ingrato (14h). Mas as sessões deverão estar abarrotadas, pois os filmes representam, além da cosmopolita Porto Alegre, municípios do interior. Que costumam trazer caravanas para se ver na tela.
E, este ano, com a tragédia das chuvas, a cidades gaúchas querem mostrar fraternidade e, palavra da moda, resiliência. Portanto, equipes enormes subirão ao palco, muitos (às vezes todos) vão querer usar da palavra e o debate que se seguirá (na Sociedade Recreio Gramadense, às 16h) deve atrasar.
O atraso será ainda maior no dia do longa “A Transformação de Canuto”, que representa a região Missioneira (a brasileira e a argentina) na competição. Afinal, será a primeira vez que o Coletivo Mbyá-Guarani, formado por cineastas indígenas, pisará no palco nobre do badalado festival gaúcho. E o fará com um filme que dura 2h10′. Deverá, portanto, estourar os tempos do relógio festivaleiro.
A Revista de CINEMA assistiu aos cinco longas gaúchos. Por isso, chama a atenção dos leitores (os que estiverem na Serra Gaúcha): acompanhem a competição local inteira.
“Um Corpo Só”, de Cacá Nazario, é uma grata surpresa da seleção. O filme, um documentário com elementos de ficção, acompanha a trajetória da Tribo de Atuadores Oi Nóis Aqui Traveiz, criada em 1978. Trata-se de coletivo teatral portalegrense, assemelhado ao sexagenário Teatro Oficina e com parentesco com a Companhia do Latão, bem mais nova, mas igualmente apaixonada pelo Construtivismo Russo. E por Bertoldt Brecht.
No altar de Paulo Flores, alma do grupo (ou Tribo de Atuadores), e de sua companheira de vida e ofício, Tânia Farias, está o grande encenador russo Vsevolod Meyerhold (1874-1941). O filme somará, em 113 minutos, com imagens arrebatadoras de Bruno Polidoro, teatro e delírio, experiências íntimas e políticas (o coletivo nasceu politizadíssimo e assim prossegue), afeto e transgressão.
Imagens de arquivo (o que seria da memória do grupo se a TVE gaúcha não existisse?) evocam os anos de ditadura civil-militar, das apresentações na rua, dos confrontos com o poder autoritário.
Ao longo de sua elaborada narrativa, o filme envolve, afetiva e intelectualmente, o espectador com a tumultuada vida de um coletivo teatral que tem suas bases fincadas na imaginação, reflexão e transgressão. Tudo banhado com doses de anarquismo e a compreensão de que o teatro vai além, muito além, do entretenimento. Os “atuadores” não querem dar conforto ao público. Querem, isto sim, instigá-lo.
Temas de nossa atualidade são abordados com coragem e entrega dos dois protagonistas – Paulo e Tânia – que reencenam sua dolorosa separação matrimonial, se desdobram na luta pela defesa da sede do terreiro da tribo e ganham imenso impacto com o espetáculo “Kassandra in Progress”, que coloca Tânia, nua em cena, como alvo de obscurantistas morais, os mesmos que fizeram encurtar duração de exposição de artes visuais em Porto Alegre, acusaram performer de “pedofilia” (em São Paulo) etc., etc.
E, com coragem rara, Tânia relembrará o momento em que, numa madrugada portalegrense, regressando de ensaios, foi violentada por quatro jovens. Ela mesma elaborou a terrível experiência no palco, em “Desmontagem”.
Tudo que está no filme, foi ali colocado com a devida autorização da atriz. Aliás, a cumplicidade de Paulo e Tânia com Cacá Nazario é imensa. Uma viagem a três.
Além dos dois atores, “Um Corpo Só” conta com participação de Keter Velho, Clelio Cardoso, Aline Ferraz, Roberto Combo e Lucas Gheler. E registra encontro de Paulo Flores com Sérgio de Carvalho, da Cia do Latão.
“Infinimundo”, o representante de Lajeado, Santa Cruz do Sul e Sinimbu — belíssimas regiões gaúchas integradas a importante circuito turístico — pode ser definido como um filme de alma saltimbanca, uma celebração à vida, à música, ao teatro. Nesse sentido, tem parentesco como “Um Corpo Só”.
Bruno Martins e Diego Müller, os criadores de “Infinimundo”, apostam, porém, em caminho narrativo menos arriscado. A dupla (escorada na cativante fotografia de Bruno Polidoro, o “remador de Ben-Hur” das plagas gaúchas), opta por trilha fabular para mostrar, jocosamente, o que se passa no fictício vilarejo de Bons Costumes.
No colorido local, um jovem contador de histórias, o Astuto (Vitor Novello), se apaixonará pela compositora da banda de música local (a jovem luso-brasileira Laura Dutra), mas na hora de declarar seu amor à moça, filha do Coronel Perigoso (Nelson Freitas), a cidade será invadida por forasteiros. Astuto terá, com ajuda do amigo Arteiro Conselheiro (Nicolas Vargas), que utilizar de sua destreza e sabedoria para impedir que “gente desabitada de amor” transforme o cotidiano do lugar.
As locações são belíssimas (muitas delas foram destruídas pelas enchentes), as canções (o filme é também um musical), envolventes e os atores se equilibram bem nessa trama que soma ingenuidade e amor à arte. Mesmo o protagonista, que tem falas enormes para enunciar, consegue dar conta do recado. Talvez diálogos mais curtos e doses maiores de humor fizessem de “Infinimundo” um parente próximo de “O Auto da Compadecida” suassúnico.
Além do quarteto de maior destaque, o numeroso elenco do longa gaúcho soma Juliane Araújo, Edu Mendas, Denizelli Cardoso, Catharina Conte, Thiago Machado L. “Vermelho”, Pilly Calvin, Cina Guterres, Rogério Beretta, Pingo Alabarce, Rafael Tombini, Marcus Vinícius Moraes, Dig Verardi, Cássio do Nascimento, Davi Rosário Jardim Alves, Anderson Vieira e Shana Müller. Como dá para prever, a sessão deve gerar “palco” com dezenas e dezenas de participantes. Sorte que o filme dura apenas 85 minutos.
O selecionado a seguir constituirá mais um “programa de índio”?
A expressão preconceituosa deve passar longe do representante de São Miguel das Missões: “A Transformação de Canuto”. Depois de ser lançado (e reconhecido) no Festival de Amsterdã, o documentário (na verdade um filme de risco, que confronta todos os limites do gênero) fez sua estreia nacional no Festival de Brasília. Que premiou seus dois diretores (Ariel Kuaray Ortega e Ernesto de Carvalho, este um dos esteios do projeto pernambucano Vídeo nas Aldeias) e sua diretora de fotografia, Camila Freitas. Ela, há que se registrar, é diretora do longa-metragem “Chão”, mergulho na luta de militantes do MST em pleno Centro-Oeste do agronegócio. Filme de grande força poético-política, muito bem recebido no Olhar de Cinema, festival curitibano, poucos anos atrás.
Em Brasília, “A Transformação de Canuto” foi apresentado como um filme pernambucano. Mas quem conhece a trajetória de Ariel, de sua companheira Patrícia Yxapy Ferreira e do coletivo Mbyá-Guarani, sabia tratar-se de produção que uniu a região missioneira do Brasil e da Argentina ao seminal trabalho do Vídeo nas Aldeias. Afinal, foi o coletivo de Vincent Carelli que formou, com suas oficinas itinerantes, a trupe de Ariel e Patrícia.
O filme resulta, portanto, da soma de forças criativas do Rio Grande do Sul, da Argentina (Lucrécia Martel aparece como consultora de montagem) e de Pernambuco.
O que vemos na tela exige olhos renovados. O ritmo nada tem a ver com a pressa contemporânea. Trata-se de filme-processo, que consumiu quase 15 anos de trabalho de sua equipe. Tudo começa em 2010, quando Ariel, então um oficineiro do Vídeo nas Aldeias, registrou depoimento de seu avô, Dionísio Duarte Verá Guazu. Para, depois, prosseguir com a encenação de fato que povoara o imaginário dos meninos das aldeias da região missioneira: a história de um homem indígena, que, muitos anos antes, sofrera temida transformação. Transmutara-se em uma onça. Depois, teria morte trágica.
Tal “acontecido” correra de boca em boca pela pequena comunidade Mbyá-Guarani, situada entre o Brasil e a Argentina. Ariel a escutou muitas vezes. Resolveu recriar tal história num filme realizado em parceria com Ernesto Carvalho.
Depois de muita estrada e muito trabalho, “A Transformação de Canuto”, que dura 130 minutos, encenou — com todas as liberdades permitidas pelo cinema — a história dessa transformação que intrigou o médico Alba Posse (encarnado por um arrumadinho e divertido Ernesto Carvalho), que exigia a exumação do corpo do morto-onça, para estudá-lo cientificamente. A tradição indígena não permite tal procedimento. Não se mexe em corpo enterrado.
Depois de sermos inseridos no mundo dos Guarani da região missioneira, vamos nos familiarizando com seus integrantes, tão diversos, e com seus falares nativos. E com o espanhol, língua que ali soma-se ao português.
E é chegada a hora da escolha de elenco para o filme dentro do filme. Quem fará o Canuto na infância caçadora, quando, exímio montador de armadilhas, abastecia a cozinha da avó com muitas aves?
O que veremos evoca o mais encantador dos filmes do Coletivo Mybiá-Guarani, “Bicicletas de Nhanderú” (2011). O menino-escolhido será Álvaro Benítez, exímio caçador como o personagem que lhe caberá interpretar. Caberá a Thiny Karai Ramirez e Carla Benitez interpretar Canuto e sua mulher Kerechu. E ao próprio Ariel dar um verdadeiro show como ator, ao assumir a fase mais difícil da vida do homem que virou onça. Aquela em que ele pedia mais um trago e era instado a entregar suas esculturas felinas, feitas em madeira, como “pagamento”.
Um filme para se ver e rever, pois sua riqueza e complexidade artístico-temática é das mais instigantes. Trata-se de narrativa em que a metalinguagem é algo orgânico e nada exibicionista. O espectador sente que todos que integraram suas equipes técnica e artística estavam apaixonados pelo que faziam. Registre-se que o longa gaúcho-argentino-pernambucano foi premiado no Festival da Fronteira, realizado em Bagé e Santana do Livramento (RS), e em Rivera (Uruguai), sob o comando do cineasta e gestor cultural Zeca Brito.
“Até que a Música Pare”, terceiro longa-metragem de Cristiane Oliveira, representa os municípios de Antônio Prado, Nova Roma do Sul, Nova Bassano e Veranópolis, onde foi filmado. Com seu estilo delicado e minimalista, a cineasta que estreou com o belo “Mulher do Pai” (Brasil-Uruguai, 2016), registra os desafios que se impõem à vida cotidiana de Chiara (a ótima Cibele Tedesco), quando seu último filho, já homem maduro, sai de casa.
A matriarca, descendente de italianos, decide enfrentar a solidão da velhice acompanhando o marido em suas viagens como vendedor-ambulante, que negocia produtos diversos com donos de botecos da Serra Gaúcha. E eis que, então, uma tartaruga e baralhos de carta colocarão à prova mais de 50 anos de vida a dois.
Que ninguém espere grandes reviravoltas, pois o cinema de Cristiane se apega aos afetos e às coisas miúdas da vida. A fotografia é feminina (da cineasta Julia Zakia), a montagem (Tula Agnastopoulos) e produção (Aletéia Selonk), idem.
No elenco, estão ainda Nicolas Vaporidis, Elisa Volpatto, Teti Tedesco, Tamara Zanotto, Jonas Piccoli, Cleri Pelizza, Magali Quadros, Guilherme Rachel, Eduardo Luís Segabinazzi, Valderes Antônio Formigheri, Alexandre Lazzari e Luiza Helena Dias. Nomes, em maioria, oriundos da comunidade ítalo-gaúcha. Que deve, como outros filmes do Gauchão, abarrotar o palco do Palácio dos Festivais.
O quinto concorrente da Mostra Gaúcha é o documentário, com inserções oníricas, “Memórias de um Esclerosado”, de Thais Fernandes e Rafael Corrêa. Rafa, cartunista e artista gráfico portalegrense e também o protagonista do filme.
O personagem real (e agora cineasta) deparou-se, aos 34 anos, com perturbador diagnóstico: era portador de esclerose múltipla. Isso aconteceu em 2010. Hoje, passados 14 anos, Rafa vive preso a uma cadeira de rodas e dependente da ajuda de um cuidador.
O filme poderia ser mais um documentário sobre os sofrimentos de um jovem, belo e cheio de vida, que foi pego, a contrapelo, por doença inesperada. Mas o que se vê está bem longe dessa vereda. Com agudo senso de humor e zero de autopiedade, a narrativa encadeia fragmentos da vida do cartunista, unindo-os em sintética narrativa (apenas 75 minutos).
Rafa busca resposta para questão intrigante: será que a morte de um sapo é a origem de sua doença degenerativa?
Na infância, ele matara o batráquio, esmagando-o pelo lado esquerdo. Quando sentiu os primeiros sintomas da esclerose múltipla, viu que sua mão esquerda (com a qual exercia e continua exercendo seu ofício de desenhista) fôra a primeira a ser afetada pela paralisia. Estamos diante da maldição do sapo?
Na tela, presenças fundamentais na vida do artista: sua ex-namorada e grande amiga Ma Villa Real (diretora de fotografia, co-roteirista e personagem de “Esclerosado”) que se soma ao pai e a um irmão de Rafa. Este representa o mano em dança onírica. Cabe, afinal, a Lucas Bittencourt Corrêa ser o dublê de corpo de Rafa, imobilizado em seus movimentos, mas com a cabeça, a irreverência e o humor ferino a mil.
Confira a programação:
Segunda-feira, 11 (14h): “Até que a Música Pare, de Cristiane Oliveira (debate às 16h)
Terça-feira, 12 (14h): “Memórias de um Esclerosado”, de Thais Fernandes e Rafael Corrêa (debate às 16h)
Quarta-feira, 13 (14h): “A Transformação de Canuto”, de Ariel Kuaray Ortega e Ernesto Carvalho (debate às 16h20)
Quinta-feira, 14 (14h): “Um Corpo Só”, de Cacá Nazário (debate às 16h)
Sexta-feira, 15 (14h): “Infinimundo”, de Bruno Martins e Diego Muller (debate às 16h)