Testemunho de Cristina Pereira, atriz de “Clube das Mulheres de Negócios” emociona público do Festival de Gramado
Foto: Equipe de “O Clube das Mulheres de Negócios” © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)
A atriz Cristina Pereira, que marcou época como a voluntariosa Fedora da telenovela “Sassaricando” e desdobrou-se em diversos personagens no humorístico “TV Pirata”, mudou os rumos do debate do filme “O Clube das Mulheres de Negócios”, sétimo longa de Anna Muylaert e primeiro concorrente ao prêmio máximo, o Troféu Kikito, da quinquagésima-segunda edição do Festival de Cinema de Gramado. Ela revelou ao público, provocando choro em muitos dos presentes, que foi violentada por um desconhecido, aos 12 anos, quando ia para a escola de freiras, onde estudava.
“O Clube das Mulheres de Negócios” foi exibido, na noite de sábado, 10 de agosto, para um Palácio dos Festivais lotado. Depois da sessão, o ator Matheus Nachtergaele recebeu o Troféu Oscarito por sua trajetória artística, com discurso emocionado sobre seu ofício. Ele comparou cinemas e festivais a igrejas que difundem o fruto da criação de tantos artistas. Para o Festival de Gramado, do qual participou muitas vezes (inclusive com seu único longa como diretor, “A Festa da Menina Morta”), o ator buscou a forma arquitetônica da mais bela das igrejas — uma catedral. A catedral do cinema.
A noite encerrou-se com a exibição do primeiro capítulo da série “Cidade de Deus – A Luta Continua”, que será mostrada pela HBO Max a partir do próximo dia 25. No palco estavam o diretor Aly Muritiba, com suas atrizes e atores, muitos deles oriundos do filme que Fernando Meirelles lançou em 2002. Caso de Roberta Rodrigues, a Berenice; Sabrina Rosa, a Cíntia; Alexandre Rodrigues, o Buscapé, Edson Ferreira, o Barbantinho, e Kiko Marques, o Cabeção.
Na manhã desse domingo, 11 de agosto, o elenco, majoritariamente feminino de “O Clube das Mulheres de Negócios” somou-se a Anna Muylaert e aos atores Luis Miranda e Tales Ordajki, para debater o filme. O salão do Clube Sociedade Recreio Gramadense estava lotado (com todas as cadeiras ocupadas, havia gente de pé, posicionada em qualquer espaço vago que aparecesse).
Além de Cristina Pereira, intérprete de Cesária, a poderosa matriarca-comandante do imenso Clube das Mulheres de Negócios, estavam presentes Itala Nandi, Louise Cardoso, Grace Gianoukas, Polly Marinho, Shirley Cruz, Helena Albergaria, Katiuscia Canoro, Maria Bopp e Veronica Debom. Só faltou Irene Ravache, ocupada com compromisso teatral. Rafa Vitti, que faz Candinho, neto da poderosa Cesária, subiu ao palco do Palácio dos Festivais com o elenco, mas não pôde ficar para o debate.
Anna Muylaert se expressou com clareza e invejável poder de síntese sobre sua “chanchada macabra”. Que, aliás, deixou boa parte do público gramadense em estado de perplexidade. Se, por um lado, os espectadores se mostraram plugados nas provocações do roteiro (tanto que ninguém deixou o cinema), por outro sentiram-se sem chão. Como decifrar a alegoria urdida pela roteirista-diretora, que inicia-se como comédia farsesca e, nos mesmos moldes de “Durval Discos”, assume diálogo com o cinema de horror?
Registre-se que “Durval Discos” (2002) era uma deliciosa comédia que, mesmo assumindo um lado B, encantava um Brasil entusiasmado com governos democráticos e revelava diretora (e roteirista) de muitos talentos. Tudo no embalo de clássicos de nossa MPB.
“O Clube das Mulheres de Negócios” é o filme mais politizado de Anna Muylaert. As mulheres que frequentam o referido Clube são, na verdade, representações farsescas de homens poderosos (agropecuaristas, industriais, milicianos que treinam a população para o uso indiscriminado de armas, líder religioso-pop etc.).
A fotógrafa uruguaio-brasileira Bárbara Álvarez capta poderosas imagens do imenso clube campestre liderado pela ambiciosa e corrupta matriarca (patriarca) Cesária. Além de sua sede social sofisticada e imponente, o espaço dispõe de aprazível lago cercado de muito verde e de um zoológico, onde estão enjaulados muitos animais. Inclusive três tigres.
Um jovem jornalista (Rafa Vitti) chega junto com o fotógrafo Jongo (Luís Miranda) para cobrir reunião especial do Clube das poderosas mulheres de negócios. Mas, em breve, perceberão que os três jaguares fugiram de suas jaulas e já fizeram suas vítimas.
Em busca do corpo de uma delas e dos subterrâneos do Clube que, na superfície, simboliza riqueza e sedução, o fotógrafo vai deparar-se com o subsolo infernal da Casa Grande. E os três tigres (perfeitas recriações digitais de Alceu Batistão, colega de Anna Muylaert dos tempos de ECA-USP) vão prosseguir em sua caçada campestre.
Anna e suas atrizes tiveram que lidar (contracenar) com sapos, urubu e muitos outros bichos, além dos tigrões. E uma cantora, interpretada por Polly Marinho, terá como principal parceiro um “lulu” a quem devota imensa afeição.
Até chegar a seu desfecho inesperado, o debate do filme corria animado. As atrizes relatavam experiências vividas nos ensaios e durante as filmagens; Luís Miranda, sempre exuberante e bem-humorado, aproveitou para desconstruir figuras masculinas branco-heterossexuais.
Louise Cardoso relembrou dificuldades verificadas em cena protagonizada por ela, Cristina Pereira é uma arara azul treinada. A arara se afeiçoara a ela e não queria mudar para as mãos da colega.
A própria Cristina Pereira relembrou fato divertido: tendo que contracenar com um Urubu-Rei, percebeu que “ele era adolescente” e estava mais interessado em brincar, que em “atuar”.
Anna Muylaert contou que “O Clube das Mulheres de Negócios” foi rodado ao longo de seis semanas, em ano pandêmico e integralmente em São Paulo. Que o clube campestre é uma soma de diversos espaços (locações), transformados em unidade arquitetônica pelas magias do cinema. E que ouviu de um espectador o seguinte comentário: “mais que um filme sobre tensões e questões de gênero, ela realizara um filme sobre as entranhas do poder”.
A cineasta-roteirista vê “Clube das Mulheres” como o fruto de muitas de suas inquietações desde 2015. Época em que a luta contra o assédio e outros tipos de violência impostos secularmente às mulheres ganhava relevo. O Brasil mergulhava em período de muita conturbação política. Veio o impeachment de Dilma Roussef (tema do documentário “Alvorada”, da própria Anna, em parceria com Lô Politi). O Me Too nascia nos EUA e suas reivindicações se multiplicavam pelo mundo.
Em 2018, Jair Bolsonaro se elegia presidente da República e a extrema-direita ganhava o proscênio. E vinha a pandemia do Coronavírus, que se espalharia pelos cinco continentes e causaria a morte de 700 mil brasileiros.
Anna sentiu que devia enriquecer as tensões de gênero, seu tema originário, com tintas (pinceladas) sobre a estrutura do poder político-e-econômico. Retomou o roteiro, que ela escrevera sozinha, fez leituras de “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, e mergulhou na história de Pindorama, esse espaço mítico-tropical onde convivem, há séculos, brutais desigualdades de gênero e de raça. Tudo sob autoritarismo que nos impede de aprofundar o processo democrático.
A diretora diz que não estará equivocado quem reconhecer nos infernais porões do clube campestre, liderado pela matriarca Cesária, os porões do Doi-Codi, instituição policial-militar que serviu à ditadura brasileira. E admitiu que fez “O Clube das Mulheres de Negócios” — um filme de inversões (de papéis) — “com sangue nos olhos”. Ela se empenhou em mexer (remexer) no “nosso tecido social”. Às vezes — admitiu —, de forma agressiva.
Ao falar de seu trabalho como diretora e de seu elenco, no concorrido palco do Palácio dos Festivais, Anna evocara suas passagens por Gramado e a urgente necessidade de reconquistar o público para nossas salas de cinema. Constatara que grupos internacionais de streaming estão “fomentando projetos pré-formatados” e defendeu a Ancine e mecanismos capazes de fomentar produção criativa e livre de fôrmas. Ao festejar seu numeroso elenco, a cineasta contou que ele resultara de feliz soma de talentos da “TV Pirata” e da “Escolinha do Professor Raimundo”. Alguém do elenco a corrigiu: “a soma era, na verdade, da “TV Pirata “com o “Zorra Total”.
No debate, Anna lembrou que cena protagonizada pela gaúcha Itala Nandi, oriunda do elenco do “Rei da Vela” (Teatro Oficina, 1968), contava com participação de um grupo de atores pornôs. Afinal, a atriz interpreta integrante do Clube de Mulheres devotada à prática de alucinantes surubas com homens jovens.
Em conversa prévia, com a qual formalizou o convite a Itala Nandi (para que desempenhasse papel fundamentado na heterodoxa prática sexual coletiva, Anna Muylaert perguntou: “você já fez suruba?”.
Itala, hoje com 82 anos, responsável pelo “primeiro nu do teatro brasileiro”, respondeu: “Nunca participei de nenhuma suruba”. Aliás, acrescentou, “deixei o Teatro Oficina quando tais práticas começaram a fazer parte da vida coletiva de seus integrantes”. Mas, como atriz, entregou-se de corpo e alma à orgia realizada em instalações de “O Clube das Mulheres de Negócios”. Anna fez questão de deixar claro que os rapazes, mesmo sendo atores pornô, foram orientados a realizar seu trabalho com total carinho e respeito pela oswaldiana Itala Nandi.
O tema do assédio, já abordado por Grace Gianoukas (no filme, sua personagem, uma agropecuarista abraçada a bibelô-boi, assedia o jornalista Candinho), voltaria à tona naquele que seria o momento culminante do debate.
A atriz Cristina Pereira, de 75 anos, contou que fora violentada por um desconhecido, quando tinha 12 anos e se dirigia ao colégio de freiras onde estudava. Chegou com as roupas rasgadas, apavorada com o que acontecera, ao educandário religioso. Nem a Igreja, representada pela freiras, fez nada por ela. Quando contou para mãe que fora violentada por um desconhecido, adveio o pavor: e se ela engravidasse de um ato de estupro?
“Eu nem chegara à puberdade, ainda não tinha menstruado”, arrematou a atriz. Quando Cristina terminou seu relato aos prantos, as lágrimas brotaram abundantes dos olhos de Shirley Cruz, intérprete da Bispa, e de Grace Gianoukas, a “mulher dos negócios agropecuários”.
Todas as atrizes (e os dois atores) se levantaram para abraçar Cristina Pereira. E o moderador Roger Lerina perguntou se davam o debate por encerrado. Afinal, não havia mais clima para prosseguir na discussão do filme.
Registre-se, porém, que o final da “comédia macabra” de Anna Muylaert dá ao espectador o “raio de sol” que os produtores de Federico Fellini tanto rogavam a ele. Tudo termina ao som caliente e vibrante de Tim Maia. Como um raio visual e sonoro. Um prenúncio de um tempo de esperança que se anuncia.
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