Ugo Giorgetti e Souza Martins contam história do Brasil pelas lápides dos cemitérios de SP

Por Maria do Rosário Caetano

O cineasta Ugo Giorgetti, como Adoniran Barbosa, fez de São Paulo sua principal fonte de inspiração. E locação de todos os seus filmes – dos curtas, como “Edifício Martinelli”, aos longas-metragens “Festa”, “Sábado”, “Boleiros”, “O Príncipe” e “Uma Noite em Sampa”.

O mais recente trabalho documental de Giorgetti, a série “Vestígios da Eternidade” (SescTV), o levou a locação inusitada – o Cemitério da Consolação. E ele chegou ao cenário fúnebre na companhia de parceiro inseparável, o diretor de fotografia Walter Carvalho (o paulista, não o homônimo paraibano). E agregou-se a novo parceiro de trabalho, o sociólogo e professor da USP José de Souza Martins.

O professor, de 85 anos, estudioso apaixonado dos movimentos operários, da religião e da história do Brasil, sempre viu nos três cemitérios paulistanos (o do Araçá, o São Paulo e o já citado Consolação, o mais antigo da metrópole) pródigo manancial de revelações sobre nossa vida social, política e econômica.

Por isso, costumava levar seus alunos uspianos para aprendizado no, digamos, macabro cenário. Mas, claro, em horário diurno, sob sol aprazível. Ao final, os alunos teriam a impressão de ter ido a uma “biblioteca” diferenciada. Textos, datas e imagens estariam impressos em lápides, não em folhas de livros.

Em 2011, portanto há mais de uma década, o professor nascido no ABC Paulista ligou para o cineasta e o convidou a acompanhar uma de suas aulas ambientadas na “biblioteca tumular” do Cemitério da Consolação. Claro, reafirmou a Giorgetti que não fariam necroturismo. Mas, sim, trabalho pedagógico que trocava livros e outros materiais didáticos por campas e mausoléus.

Ugo aceitou o inusitado convite e convocou Walter Carvalho para documentar a aula uspiana. Guardou o material cinematográfico por mais de uma década. Tentou encontrar recursos para levar o projeto adiante, mas não conseguiu. Finalmente, em parceria com o canal SescTV, sua produtora (a SP Filmes) conseguiu transformar o material, enriquecido com imagens de arquivo, fotografias e outros recursos visuais, na série que pode ser vista às terças-feiras, no SescTV. Os cinco capítulos (com 27 minutos cada um) exibidos no canal (a série estreou em 20 de agosto), também está disponível no streaming da obrigatória emissora mantida pelo Sesc SP.

A série que conta nossa história pelo ponto-de-vista, digamos, “funerário” começa pela Independência do Brasil. Túmulos de pessoas muito próximas ao Príncipe Pedro serão visitados pelo professor e seus alunos. Destaque especial para os padres Ildefonso Xavier Ferreira (1795-1871) e Amaral Gurgel (1797-1864).

Martins, com sua poderosa oratória, irá mostrar que a imagem épica do “Grito do Ipiranga”, pintada por Pedro Américo, nada teve de heróica. O filho de Dom João VI viajava numa mula e não num fogoso cavalo branco. E ia em lombo de mula por razão prática. Este era o animal que aguentava o tranco em caminhos montanhosos e pedregosos. Como a Serra do Mar.

O professor pontua que há documentos comprobatórios de fato capaz de desmoralizar qualquer epopeia: o futuro imperador do Brasil (Pedro I) estava realmente com diarréia e precisou aliviar-se no mato. E que a frase “Independência ou Morte” não foi proferida por ele. Depois de um mês de reuniões, convocadas para se definir o que se passara às margens do Ipiranga, criou-se a narrativa de que a frase saíra da boca do Príncipe Pedro.

Há uma curiosa observação do Prof. Martins que serve de metáfora à juventude de seus alunos, moças e rapazes uspianos, a maioria de vinte e pouquinhos anos. Ele lembra que a turma do (riacho) do Ipiranga, a que proclamou a independência do Brasil, era bem jovem. O mais entrado nos anos somava 27. O Príncipe Pedro tinha 24.

No segundo episódio, dedicado às mulheres e aos papeis que elas desempenhavam no Século XIX (e começo do XX), o professor e a série de Giorgetti enaltecem duas figuras, ambas enterradas no Cemitério da Consolação: a Marquesa de Santos (1797-1867), que muitos teimam em reduzir à condição de amante do Imperador Dom Pedro I, e a integrante da elite paulista, Veridiana Valéria da Silva Prado (1825-1910).

José de Souza Martins vai mostrar, em sua aula “fúnebre”, que estas duas mulheres foram muito importantes, pois “ajudaram a civilizar” uma São Paulo ainda profundamente atrasada. De Domitila de Castro, a marquesa, ele contará que ela foi uma mulher muito inteligente, que sofreu muito, criou muitos filhos e estimulou reuniões culturais, tendo o poeta Álvares de Azevedo (1831-1852), como um dos frequentadores.

E mais: a Marquesa foi importante doadora dos recursos financeiros que bancaram a construção da Capela do Cemitério da Consolação e lutou de forma significativa para acabar com a prática de enterrar os mortos em torno dos templos católicos.

Quem visitar Ouro Preto verá os campos santos que circundam as belas (e barrocas) igrejas construídas no Brasil do ciclo do ouro. Os fieis faziam questão de ser enterrados nos espaços religiosos mantidos pela poderosa Igreja Católica. Quanto mais próximo da obra arquitetônica, mais próximos de Deus e da salvação estariam suas almas. Só que a putrefação dos corpos começou a constituir ameaça sanitária. E os (maus) odores, ou miasmas, a incomodar o olfato dos fieis. O jeito foi criar cemitérios municipais, afastados das igrejas e dos espaços de convivência diária das pessoas.

O terceiro episódio da série vai destacar a importância de Luiz Gama (1830-1882), o rábula que salvou muitos afro-brasileiros da sanha escravagista de seus senhores. Ele tornou-se tão popular, que ao morrer teve um dos mais concorridos enterros da história paulista (o mais concorrido até então).

Outro nome em relevo, no terceiro episódio é o advogado, agricultor, político e empresário Antônio da Silva Prado, o Conselheiro Antônio Prado (1840-1929). O político, que seria o primeiro prefeito de São Paulo, foi influente ministro dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas e, depois, ministro das Relações Exteriores. Coube a ele maquinar a engenhosa negociação para que os negros escravizados fossem libertados, sem causar prejuízo a seus patrões. Ou seja, no lugar dos afro-brasileiros seria alocada mão-de-obra imigrante. Em especial, italianos vindos das regiões mais pobres da península. O Prof. Martins detalhará o engenhoso (e senhorial) plano do milionário fazendeiro.

No quarto episódio, veremos túmulos de outros integrantes da aristocrática família Prado: Eduardo Paulo da Silva Prado (1860-1901) e Caio Prado Júnior (1907-1990). Nestas alturas, estes dois personagens estarão mais ligados à literatura e à cultura, que à agricultura e ao comércio. O primeiro, jornalista e escritor monarquista, escreveria livros como “A Ilusão Americana”, sobre o qual Martins tecerá importantes considerações.

Se Eduardo era monarquista, Caio Prado Jr, sociólogo, historiador, geógrafo e filósofo, era republicano e faria do marxismo o caminho norteador de seus estudos. Depois de participar da Revolução de 30, ele decepcionou-se com seus rumos e filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro. Seu filho, Caio Graco, nascido em 1931, sequenciaria, na Editora Brasiliense, trabalho iniciado pelo pai. Entre os livros de Caio Prado Jr destaca-se “Formação do Brasil Contemporâneo – Colônia”, considerado um marco, verdadeiro divisor de águas, na historiografia brasileira.

O quinto e último capítulo de “Vestígios da Eternidade” (título poderoso e sintético) traz o projeto de industrialização de São Paulo, que no século XX, transformaria o estado bandeirante na propalada “locomotiva do desenvolvimento brasileiro”. Este momento será evocado pela família Matarazzo, cujo patriarca começaria seu império como vendedor de banha de porco, e também pelos Jaffé, Crespi e Simonsen.

Aliás, no primeiro episódio, o Prof. Martins lembrará que os túmulos mais majestosos, rebuscados e enfeitados dos cemitérios paulistanos não são os dos fazendeiros e empresários pátrios. Mas, sim, os dos “imigrantes que aqui enriqueceram, em especial, os italianos e árabes”.

Claro que nenhum tema abordado em “Vestígios da Eternidade” será aprofundado (em episódios de apenas 27 minutos) por um professor que leva seus alunos a visitar mausoléus da elite paulista. Afinal, trabalhadores e gente pobre eram (e continuam sendo) enterrados em covas rasas. Quem teria dinheiro para pagar um túmulo com escultura criada por artista da estatura de Victor Brecheret?

O que Martins faz, com rara habilidade, é instigar seus discípulos a ver que a história está, sim, impressa nos livros, mas que há outras fontes de saber, também muito ricas. E Ugo Giorgetti e Walter Carvalho dão ao material leveza e beleza plástica.

Tudo começa com uma apresentação do próprio cineasta, que enuncia o que veremos. Depois, a câmara passeará por alameda muito arborizada e ladeada por túmulos e mausoléus. Alunas e alunos, jovens e muito bonitos, prestam bastante atenção no que diz o Prof. Martins. Depois da “aula funerária”, Giorgetti lembra que o aprendizado não se dá “somente em salas de aula e anfiteatros”. Por acreditar nisso, ele levou sua pequena equipe ao Cemitério da Consolação. E fez essa série de 135 minutos, que nos estimulará a revisitar personagens e livros citados (e grafados, com destaque, na telinha da TV) com imenso interesse.

O amor do professor e do cineasta por fontes bibliográficas é notável. Por isso, aos mais estudiosos e curiosos, recomenda-se que assistam à série com caneta e papel ao alcance da mão.

 

Vestígios da Eternidade
Brasil-SP, 2024, 135 min. divididos em 5 episódios de 27 min.
Direção e roteiro: Ugo Giorgetti
Texto: José de Souza Martins
Fotografia: Walter Carvalho e Paola Prestes
Montagem: Marc de Rossi
Produção e pesquisa: Cassio Giorgetti
Onde assistir: SescTV, todas as terças-feiras, e no streaming da SescTV

 

FILMOGRAFIA
Ugo Giorgetti (São Paulo-SP, 1942)

1985 – “Jogo Duro”
1986 – “Quebrando a Cara” (doc)
1989 – “Festa” – vencedor do Festival de Gramado
1995 – “Sábado”
1998 – “Boleiros – Era Uma Vez no Futebol”
2000 – “Uma Outra Cidade”
2002 – “O Príncipe”
2004 – “Boleiros 2 – Vencedores e Vencidos”
2009 – “Paredes Nuas”
2010 – “Solo”
2012 – “Cara ou Coroa”
2015 – “Uma Noite em Sampa”
2020 – “Dora e Gabriel”
2021 – “Paul Singer – Uma Utopia Militante” (doc)

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