CineBH apresenta filmes sobre trabalhadoras do sexo, memória Wayúu, adolescentes do deserto e rebelião indígena dos “Dules”

Foto: Laura Donoso, diretora de “Sariri” © Leo Fontes/Universo Produção

Por Maria do Rosário Caetano, de Belo Horizonte (MG)

Realizadoras latino-americanas dão as cartas na principal mostra da CineBH (Festival de Cinema de Belo Horizonte), a Território, que reúne oito filmes de diretores iniciantes (até dois longa-metragens) e é competitiva. Na noite desse domingo, 29 de setembro, serão entregues os Troféus Horizonte aos eleitos.

Com a intenção de dar visibilidade ao novo cinema da América Latina, a CineBH conta ainda com a mostra Continente, que exibe mais 12 longas hispano-e-luso-americanos. No total, são vinte produções. Por isso, o festival mineiro tornou-se a maior vitrine do audiovisual do subcontinente em território brasileiro.

Nomes femininos são maioria (ou metade) dos selecionados para estas duas mostras da CineBH. São cinco longas femininos (e três comandados por diretores) na Território. E seis a seis na Continente.

Até agora, foram exibidos em competição quatro longas — dois femininos e dois masculinos. O primeiro deles, o uruguaio “Má Reputação”, traz as assinaturas de Sol Infante & Marta García. E protagonista das mais carismáticas, a “prostituta” Karina Nuñez, de 45 anos. Ela parece saída de um filme de Federico Fellini. Depois explicaremos as aspas que cercam seu ofício.

O segundo foi o colombiano “Carropasajero”, de Juan Pablo Polanco e Cesar Alejandro Jaimes. O terceiro, o chileno “Sariri”, de Laura Donoso, o único ficcional dessa etapa inicial. Os outros são documentários de alma híbrida. Caso do quarto concorrente, o panamenho “Bila Burba” (“alma revolucionária”), do cineasta Duiren Wagua, de origem indígena. Ele mostra rebelião de seu povo, ocorrida em 1925, contada por netos dos revoltosos.

A curadoria das mostras latino-americanas da CineBH, comandada pelo crítico e pesquisador Cléber Eduardo, baseia-se na intenção de mostrar “filmes com força cênica, social, expressiva e visual”. E tais características se fazem notar em safra que processa “desdobramentos do campo documental latino-americano, ao incorporar a ficção como parte do documentário, sem destruir suas bases nas experiências concretas das vidas em sociedades”. E, também, “incorporando os indícios documentais à ficção e encontrando nesse amálgama seus caminhos de elaboração”.

Ainda não apareceu (estamos na metade da competição) um filme com a força do vencedor do ano passado — o paraguaio “Guapo’y”, de Sofía Paoli Thorne. A jovem realizadora conseguiu somar tema dos mais relevantes (a trajetória da presa política Celsa Ramirez Roda) a instigante inquietação formal.

Os colombianos Polanco & Jaimes bem que tentaram. “Carropasajero” nos joga na aridez do deserto de Guajira, onde vivem os Wayúu, grupo étnico que povoou a eletrizante ficção “Pássaros de Verão” (Ciro Guerra e Cristina Gallegos), cinco anos atrás.

No documentário, a dupla colombiana aposta tudo na busca de atmosfera sensorial e fantasmagórica. A velha camionete (o ‘carropasajero’), que transporta os Wayúu, carrega uma idosa. Ela traz memórias de massacre promovido em seu território por forças paramilitares. Pouco saberemos do episódio. E também da tragédia que envolveu o povo Wayúu no tráfico de drogas, tema central do épico de Guerra & Gallegos.

Os 103 minutos  de “Carropasajero”, essa aventura existencial produzida em parceria com a Alemanha, ganhariam muito se equilibrassem sua ousadia formal à complexa história do Wayúu.

“Mala Reputación” cativa o espectador por sua personagem “prostituta”. As aspas se devem a explicação da própria protagonista do filme,  a volumosa, louríssima, despachada e desiniba Karina Nuñez. Ela diz que foi puta até os 26 anos. Depois, conscientizou-se e transformou-se em trabalhadora do sexo, dona de seu destino e organizadora do coletivo OTRAS (Organización de Trabajadoras Sexuales).

No Uruguai, existe legislação que protege as praticantes da mais antiga das profissões humanas. E a OTRAS combate o tráfico de mulheres, a prostituição de menores e a exploração de corpos femininos por proxenetas e outros aproveitadores.

Nos melhores momentos de “Má Reputação”, Karina evocará os tempos em que fazia sexo pago com homens sujos, despreocupados da higiene, já que remuneravam a parceira. Quando tornou-se uma profissional do sexo, ela passou a exigir que eles se banhassem. Livrou-se dos sovacos fedidos, do chulé e de outros odores indesejados.

O carisma de Karina joga a favor, mas também contra o filme. Ela é esfuziante demais, fala muito bem, encanta com seu jeito felliniano. Mas impede que o filme se aprofunde nas nuances do tema retratado. Temas como as relações das “profissionais do sexo” com suas famílias, os ganhos reduzidos daquelas que vivem nas ruas em busca de clientes e, principalmente, a violência de parceiros brutos, acabam em segundo ou terceiro plano. Mas, registremos, as “prostitutas” uruguaias têm muito a ensinar às brasileiras.

A ficção chilena “Sariri” chegou cercada de expectativas. Sua diretora, a jovem Laura Donoso, chamou atenção em debate sobre os “Estados do Cinema Latino-Americano: As Mulheres no Comando”, promovido pela CineBH. Enquanto suas colegas (Laura Basombrio, da Argentina; Sol Infante, do Uruguai; Ana Carolina Soares e a mediadora Mariana Queen Nwabasili, ambas de MG), lançavam mão de preocupantes estatísticas e questionavam políticas públicas (pouco efetivas no fomento ao audiovisual assinado por mulheres, negros e indígenas), ela destoava.

Laura Donoso deixou as estatísticas de lado e contou que cresceu no seio de família de mulheres, que sempre a estimularam a fazer o que desejasse. Foi estudar Cinema na Universidad del Desarrollo (instituição privada de Santiago) e realizou, como trabalho final de curso, seu primeiro longa-metragem. Uma ficção filmada em micropovoado no deserto chileno (apenas 7 habitantes). O fez aos 24 anos. Cabelos negros, arrematados em vistosas pontas vermelhas, emolduram seu rosto muito branco e ela segue trilhando sua promissora estrada.

“Sariri” vem obtendo boa repercussão internacional. Estreou no Festival de Miami, nos EUA, seguiu para o Cine Latino (Toulouse-França) e causou boa impressão no Festival de Santiago do Chile. A revista Variety, poderoso veículo cinematográfico dos EUA, a elegeu como “nome promissor, a caminho da glória”.

A trama de “Sariri” sustenta-se em história das mais curiosas. Duas jovens, a pré-adolescente Sariri, de origem indígena, e Dina, de 17 anos, vivem no minúsculo e estagnado povoado de Las Lágrimas. O lugar fôra, outrora, próspero, pois vivia da fartura gerada pela mineração. Mas a diminuição dos recursos minerais tornou-se palpável. A modorra domina o local.

Dina, grávida do companheiro, lê revistas de variedades e sonha com a cidade grande. Quer partir, livre da incômoda gestação, para viver outros sonhos. O problema de Sariri é ainda mais grave e desafiador. Ao menstruar, ela terá que ser afastada das cercanias da mina (e do povoado), pois, já fértil, acabará objeto do desejo daqueles homens, os donos do lugar. Será, portanto, abandonada à própria sorte. E no deserto ermo.

Dina promete livrar-se dos laços que a prendem ao povoado e traça minucioso plano para resgatar Sariri. Ela conseguirá, sem dinheiro, sair de Las Lágrimas e, ainda por cima, livrar Sariri das agruras dos caminhos desérticos em que foi jogada?

A estranha ideia de abandonar uma menina no deserto, pós-primeira menstruação, não é comum no Chile. Nem entre grupos isolados. No debate do filme, Laura Donoso confessou ter se deparado com situação tão rara em livro sobre mulheres indianas (oriundas, portanto, da imensa Índia, país de mais de um bilhão de habitantes).

Com a liberdade permitida pela ficção, Laura Donoso engendrou a trama, ajudada por três colegas (Sofía Pavesi, Carolina Merinó e Javi de Miguel). O resultado, mesmo que o filme recorra a ingredientes algo fantasmagóricos, às vezes, soa inverossímil. Ou pouco desenvolvido.

Mas causa surpresa a manufatura do filme, fruto de TCC (trabalho de conclusão de curso). O elenco, com atores profissionais e remanescentes do povoado, rende bem, a fotografia capta a beleza da paisagem desértica e o ritmo da narrativa (sintetizada em 77 minutos) prende a atenção. A cineasta já está preparando seu segundo longa, “Por que no la Miran”, sobre jovem nicaraguense, que trabalha como diarista na Costa Rica. Ao ganhar na loteria, ela resolve regressar ao país natal.

O panamenho “Bila Burba” evoca episódio que marcou a história do Panamá. Em 1925 (ano que vem, portanto, será comemorado seu centenário), o povo Guanadule, os “Dules”, habitantes do Norte do país centro-americano, promoveram bem-sucedida rebelião indígena. Eles viviam em complexo de pequenas ilhas. Em defesa de suas terras, enfrentaram forças militares do governo autoritário de então. Os governantes e seu braço armado queriam integrá-los ao novo país que nascia, depois de desmembrado da Colômbia. Não aceitavam que cultivassem língua e costumes próprios. Exigiam que fossem panamenhos, falassem a língua oficial e adotassem os costumes da nova federação.

O projeto do filme foi premiado pelo ImCine (Instituto Mexicano de Cinema) com o Prêmio Gabriel García Márquez. E, ao ser concluído, iniciou carreira na mostra “Frontlight” do IDFA, o poderoso Festival Internacional de Documentários de Amsterdã (Holanda). Seguindo, depois, para festivais em diversos países latino-americanos.

Duiren Wagua e seu irmão, Orgun Wagua, orgulham-se de sua origem “Dules” e de serem produtores do “terceiro longa-metragem panamenho realizado por cineastas indígenas”. Para evocar a memória da rebelião centenária, o filme recorreu a testemunhos de descendentes dos protagonistas do sangrento conflito. E, em especial, de recorrente encenação teatral realizada por eles, para homenagear os antepassados guerreiros. E, também, estimular as novas gerações a não esquecê-los.

Na gênese do longa “Bila Burba” está um brasileiro — o antropólogo Diego Madias. Ele conheceu Duiren Waga, quando o panamenho mostrava, no Brasil, curta-metragem sobre a mesma rebelião “Dule”. Fascinado pela história, o antropólogo sugeriu que o panamenho se aprofundasse no assunto e fizesse o longa documental que, agora, chega à competição pelo Troféu Horizonte.

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