FAM mostra que Caymmi, “galã rústico”, fracassou na ficção, mas tornou-se astro de filmes documentais
Por Maria do Rosário Caetano, de Florianópolis (SC)
Jorge Amado definia o amigo Dorival Caymmi como um “galã rústico”. O genial compositor baiano, afinal, ensaiara algumas aventuras no cinema de ficção. Atuou em “Estrela da Manhã”, filme de Jonald, realizado em 1948, tendo Paulo Gracindo e Dulce Bressane como protagonistas. O argumento era de Jorge Amado e, além de coadjuvante, Caymmi participou com suas canções.
Vinte e três anos depois, o autor de “Suite dos Pescadores” desempenharia mais um papel, agora numa produção internacional — “The Sandpit Generals” (“Capitães da Areia”), de Hall Bartlett, vencedor do Festival de Moscou. Circunstância que faria dele um blockbuster da era soviética.
No Brasil, porém, o longa, protagonizado por Kent Lane (Bullet, o Pedro Bala) e Tisha Sterling (Dora), não aconteceu junto ao público. Nem tendo Rhonda Fleming, a “rainha do technicolor” e esposa de Bartlett, no elenco. E mesmo escorado em nomes brasileiros de grande notoriedade à época como Eliana Pittman, Marisa Urban, Guilherme Lamounier e o atleta Adhemar Ferreira da Silva.
Se a carreira de ator de obras ficcionais de Caymmi foi um retumbante fracasso, o mesmo não se pode dizer de seu resgate pelo cinema documental. O Festival Florianópolis Audiovisual Mercosul, o FAM, acaba de promover sessão e debate dos mais concorridos de “Nas Ondas de Dorival Caymmi”, de Locca Faria, produção de Hélio Pitanga.
Muitos espectadores, cinéfilos de carteirinha, foram ao Cine Show Beiramar Shopping assistir ao filme com uma pulga atrás da orelha. Afinal, o que o diretor Locca Faria teria a acrescentar aos três documentários sobre o incontornável Caymmi, realizados antes dele?
Tudo começou no Festival de Brasília, em 1999, quando Aluísio Didier lançou “Um Certo Dorival Caymmi”, longa-metragem que trazia, pela primeira vez, a saborosa participação do compositor baiano no Programa de Andy Williams, famoso apresentador de TV nos EUA. Por causa do estrondoso sucesso de Carmen Miranda em solo norte-americano, o autor de “O que é que a Baiana Tem?” tornou-se objeto da curiosidade do público da potência cultural planetária. Aliás, saberemos pelo filme de Locca, que Caymmi atuou como uma espécie de coach da “Brazilian bombshell”. Foi ele quem ensinou a ela o gestual, marca registrada da luso-brasileira, detalhando todos os dengos que uma “baiana” deveria usar para seduzir seus fãs.
Depois de Didier, mais dois realizadores se envolveram com a trajetória do grande criador de canções praieiras e de sucessos como “Maracangalha”, “Só Louco” e “Samba da minha Terra”: o baiano Henrique Dantas e a carioca Daniela Broitman. E ambos conseguiram revelar novas facetas do sestroso e aliciante artista baiano.
Dantas, jovem conterrâneo de Dorival Caymmi (1914-2008), lançou, no mesmo Festival de Brasília, o documentário dedicado ao compositor e batizado com o mais belo dos títulos: “Dorivando Saravá, o Preto que Virou Mar” (2019). E primou pela originalidade, pois buscou na obra do artista a sua profunda relação com matrizes negras, em especial, o candomblé.
Ao lançar o filme, Henrique Dantas, diretor de outro delicioso documentário musical soteropolitano — “Filhos de João – Admirável Mundo Novo Baiano” (sobre a trupe Novos Baianos), destacou sua prioridade: “mostrar o preto, Obá no candomblé, um homem que virou mar, pois fôra o primeiro a cantar os orixás e a introduzir o ‘tempo do candomblé’ na música popular brasileira”.
O documentarista assegurou que ao criar o neologismo “dorivar”, desejava sugerir ao povo brasileiro que conjugasse esse verbo por seu poder de evocar “uma maneira de ser, de existir, de pensar”. Sem pressa, com profunda ligação com a natureza (o mar) e com sua gente.
Daniela Broitman concluiu seu “Dorival Caymmi, um Homem de Afetos” no mesmo ano do “Dorivando Saravá”. Mas só lançou o filme, por causa da pandemia, recentemente. Quem o viu nos cinemas e nos festivais, pôde concluir que não se tratava de mais do mesmo.
A realizadora conseguiu imprimir enfoque original à sua narrativa. E traçou, com delicadeza feminina, rico perfil do artista baiano, sem deixar de registrar que ele era um mulherengo. Causou muitos ciúmes em sua companheira, a cantora Stella, que abandonara sua própria carreira para dedicar-se ao marido e aos filhos (Nana, Dori e Danilo).
Nana Caymmi, língua solta como ela só, trouxe à tona, em “Um Homem de Afetos”, o lado machista do pai, que ficou, por anos, de mal com a filha. Sim, sem falar com ela. E por que?
Porque a filha resolveu abandonar o marido, um bem situado médico venezuelano, para, no Brasil, dedicar-se a novos amores e à sua vida de cantora.
A base do filme de Daniela concentra-se em entrevista concedida por Caymmi a amigos, quando ele contava 84 anos (portanto, em 1998). Em tom descontraído e com seu inigualável senso de sedução, o baiano aborda os mais diversos temas de sua vida musical (e, até, privada). Conta, com seu jeito sestroso, a história de traição conjugal que lhe renderia alguns dissabores. E até risco de ser apanhado (e apanhar de marido ciumento).
Agora, chega a hora e vez de “Nas Ondas de Dorival Caymmi”, que vem fazendo boa carreira no circuito de festivais. E, se não bastasse, mês que vem — na Première Brasil do Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro — Dorival Caymmi voltará às telas, dessa vez num filme de outro conterrâneo, Sérgio Machado – “Os 3 Obás de Xangô”. O projeto nasceu com o outro nome, “Sal da Vida”, para celebrar a amizade que uniu os baianos Jorge Amado, Caymmi e Carybé, este, o argentino mais baiano do Brasil.
Há que se lembrar que Sergio “Cidade Baixa” Machado teve em Jorge Amado seu “padrinho cinematográfico”. Quando o estudante da UFBa realizou seu primeiro curta — “Troca de Cabeça” (1996), protagonizado por Grande Otelo — o filme chegou às mãos de Jorge Amado. Que o encaminhou ao cineasta Walter Salles. Nascia ali parceria entre o jovem baiano e a Videofilmes, que produziria “Onde a Terra Acaba” (2002), sobre Mário Peixoto e sua acidentada vida cinematográfica.
Pois o Festival do Rio vai mostrar, com “Os 3 Obás de Xangô”, que fraternidade maior não houve. Jorge, o escritor, Caymmi, o compositor e “galã rústico”, e Carybé, artista plástico, eram carne e unha. Quem viu a série “Amados Encontros” sabe que Carybé aprontava poucas e boas com Jorge. E vice-versa. O baiano-argentino chegava a “furtar” esculturas em igrejas interioranas da Bahia, para desespero do escritor. Certa vez, descoberto, embrulhou-se num lençol, com a intenção de passar por um fantasma e ganhar tempo para devolver o objeto furtado.
Depois de tantos filmes, o que fez Locca Faria para não chover no molhado?
Fez do processo criativo de Dorival Caymmi a razão de ser de seu documentário. Realizador ligado à música brasileira, seja como capista de discos (entre eles o “Clube da Esquina 2”) e produtor de shows, Locca, que dirige o Festival de Alter do Chão, no Pará, tem atuação como diretor de fotografia para cinema e TV. Com Hélio Pitanga (“Som, Sol, Surf, Saquarema”) na produção e em parceria com o Canal Brasil, a dupla colocou o pé na estrada. E mobilizou as mais importantes vozes criativas da MPB para tentar decifrar os mistérios do violão e das composições sintéticas e aliciantes de Caymmi. A tarefa cabe a João Bosco, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tarik de Souza, Hermínio Bello de Carvalho, Ricardo Cravo Albin, Paulo César Pinheiro e Nelson Motta.
Chico Buarque constitui caso à parte no documentário. É um astro coadjuvante com brilho nos olhos ao falar do mestre, por quem nutre imensa paixão e reverência. Os dois serão vistos em maravilhosa sequência, metidos em idênticas camisas listradas (de branco e vermelho), à moda de dois “marinheiros” (ou malandros). O produtor Hélio Pitanga conta que “a sequência vem de programa da Rede Bandeirantes, filmado na década de 1980, na carioquíssima Praia do Vidigal”.
O filme conta, claro, com a colaboração dos três herdeiros de Caymmi — Nana, Danilo e Dori. Este, inclusive, grava importante sequência ao lado de Chico Buarque. Os dois conversam sobre o processo criativo do mestre baiano.
Todos os que prestaram seus testemunhos ao filme dirão que “Caymmi desenvolveu estilo próprio, único, de compor, cantar e tocar violão”. E, entre as características da obra do compositor, serão destacadas “a espontaneidade (e síntese) dos versos, a sensualidade e a riqueza melódica”.
Um dos entrevistados contará história que parece inacreditável. Ao ouvir as composições de Caymmi, o maestro Radamés Gnatalli (1906-1988), de formação erudita, teria recomendado a ele que “não estudasse música”. Se assim fizesse, “correria o risco de perder sua forte intuição criativa”.
Outros testemunhos lembrarão a paixão de João Gilberto pelo violão e pelo repertório de Caymmi. O baiano de Juazeiro fazia questão de gravar composições do soteropolitano em seus discos. De forma que “o jeito de tocar de Caymmi seria uma das influências essenciais da Bossa Nova”.
“Nas Ondas de Dorival Caymmi”, avisa Hélio Pitanga, continuará percorrendo o circuito de festivais e, depois, chegará aos cinemas, com distribuição da Bretz. Como tem coprodução do Canal Brasil, cumprida a etapa do circuito exibidor (salas físicas), será exibido pela emissora. E, só então, chegará ao streaming.
Muito bom o filme Nas Ondas de Dorival Caymmi !!!
Assisti no Festival e fiquei encantado com o que vi e senti !
Me pareceu o filme mais musical e interessante dos documentários sobre o ele.
Ótima matéria !
Parabéns!