Diretor baiano, radicado em Londres, apresenta “Os Maus Patriotas” Ken Loach e Jeremy Corbyn à Mostra SP
Por Maria do Rosário Caetano
O cineasta baiano Victor Fraga, radicado em Londres desde os 19 anos, participa da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo com filme de título provocador – “Os Maus Patriotas”. Trata-se de sintético longa documental, que promove encontro de dois nomes da linha de frente da esquerda socialista britânica – o cineasta Ken Loach, de 88 anos, e o político que fez história no Partido Trabalhista, Jeremy Corbyn, de 75.
Fraga, que é também jornalista, estreou no cinema com o curta “O Teste da Farinha” (2002) e, no longa-metragem, com “A Fantástica Fábrica de Golpes” (2021). Este sobre o movimento que derrubou Dilma Rousseff, provocou a prisão de Lula e fortaleceu o crescimento da extrema-direita brasileira.
O cineasta está em São Paulo para acompanhar as novas sessões de “Os Maus Patriotas”, que acontecem nessa sexta-feira, 26 de outubro, no Espaço Augusta, e no dia seguinte, no Cineclube Cortina.
O título “Os Maus Patriotas” busca, no discurso da extrema-direita britânica, qualificativo recorrente para definir a ação de Loach e Corbyn. Além de “maus patriotas”, eles seriam “anti-britânicos, covardes, desconectados da realidade, simpatizantes de terroristas, comunistas e uma ameaça à segurança nacional”.
No filme de Victor Fraga, voz tonitruante enuncia trechos de artigos publicados na mídia tradicional inglesa, que desancam tanto o cineasta, quanto o político. Para desconstruir tal retórica, o realizador brasileiro conversa, primeiro, com Loach, depois com Corbyn. E, num segundo momento, os coloca, lado a lado, no mesmo e pequeno estúdio londrino, para que troquem ideias sobre suas trajetórias.
“Os dois foram expulsos do Partido Trabalhista”, lembra Victor Fraga. Que, ao debater “Os Maus Patriotas” na Mostra SP, fez questão de destacar a trajetória de Ken Loach, “o único britânico detentor de duas Palmas de Ouro no Festival de Cannes e recordista em participações no maior festival do mundo”. Afinal, “ele esteve na competição em 15 edições, com 15 de seus quase 60 filmes”. Um deles, o épico sobre a Guerra Civil Espanhola, “Terra e Liberdade” (1995).
A ponte com Ken Loach, feita para motivá-lo (já quase nonagenário e “com problemas na vista”) a participar dessa “modesta produção de apenas três mil libras”, foi mediada por Jeremy Corbyn, de quem Victor Fraga é amigo. “Corbyn tem imenso interesse pela América Latina, foi marido de uma chilena, mãe de seus três filhos, e hoje é casado com uma mexicana”. Ele acompanha, em fina sintonia, “o que se passa no Brasil”.
No debate no Espaço Augusta de Cinema, que contou com bom (e animado) público, Victor Fraga, acompanhado da sound designer Katia Dotto e da autora da trilha sonora, Erika Nande, avisou: “vocês verão um filme simples, sem ousadias formais, de baixíssimo custo, mas que, como meu filme anterior, reflete sobre o crescimento da extrema-direita no mundo, o papel da imprensa e sobre o próprio cinema”.
“Os Maus Patriotas” é mesmo um filme que centra sua força no discurso corajoso e articulado dos dois britânicos. Mas que se articula como material de natureza jornalística, sem grande elaboração formal. Por isso, impõe limites a seu projeto estético. Por sorte, reafirma sua importância como documento histórico. Filmado ao longo de um dia, o documentário recorre a imagens de quatro filmes loachianos – “Jimmy Hall”, “Ventos da Liberdade” e “Eu, Daniel Black”, este dois detentores da Palma de Ouro, e “Você Não Estava Aqui”. Todos realizados nas duas últimas décadas.
Num trecho do filme, Corbyn conta que, na adolescência, assistiu ao segundo longa-metragem de Loach, “Cathy Comme Home” (1966), exibido pela BBC, e ficou profundamente tocado. Os dois britânicos discutiam justamente o alcance da obra cinematográfica fora do Reino Unido, em especial na França e nos EUA.
Modesto, Ken Loach pondera que seus filmes têm alcance reduzido, em especial no mercado norte-americano. E enumera as causas: seus filmes fogem ao projeto do blockbuster de finais catárticos, falam de pessoas comuns, na maioria trabalhadores, não são protagonizados por nomes do star system. Reconhece que a França, que criou “uma política de defesa de seu idioma e de seu cinema”, constitui-se como “o país que mais prestigia seus filmes”. Que contam, também, com público fiel na Espanha, Alemanha, Itália e Bélgica, entre outros países europeus”.
Corbyn diz que o amigo está “exagerando na modéstia” e que seus filmes causam grande impacto em quem os assiste, desde os anos 1960. “Muitos deles foram exibidos na televisão para grande audiência”, ponderou, “e nunca me esqueço do impacto e do quanto aprendi com ‘Cathy Comme Home”.
Ken Loach não doura a pílula. Conta que teve muitos problemas com emissoras de TV, incluindo a poderosa BBC, de natureza pública, que o revelou, no final da década de 1960, com três filmes de imensas ousadias estética e temática (além de “Cathy Comme Home”, de 1966, o inaugural “Up the Junction”, de 65, e “In Two Minds”, de 67). Para destacar que emissora pública era muito mais arejada na década de sessenta, que nos tempos atuais.
No debate, Victor Fraga contou que não pôde usar imagens do seminal “Cathy Comme Home”, destacado por Corbyn, por razões financeiras. “Utilizei trechos de quatro filmes recentes de Ken Loach, que nos foram cedidos a preço simbólico”. Como todos eles pertencem à produtora do cineasta, não houve problema. “Já para usar trecho de um filme do acervo da BBC, eu teria que pagar quantia da qual não dispúnhamos”.
O baiano-londrino contou que Jeremy Corbyn gostou muito do resultado do filme e que tem participado de ações para divulgá-lo. Mas que, infelizmente, “por causa da defesa da causa palestina”, está difícil de exibir “Os Maus Patriotas” em cinemas ingleses. “Conseguimos uma sala importante, estava tudo certo, mas fomos avisados de que não será mais possível mostrar e debater o filme no local. Sabem por quê? Porque consideram nosso filme pró-Palestina. Por isso, organizações ligadas a Israel, fortíssimas na Europa, se movimentaram para impedir a exibição de nosso documentário”.
Jeremy Corbyn, que acabou expulso do Partido Trabalhista (segue como integrante do Parlamento Britânico, como independente), foi acusado de “anti-semita”. Os “grandes veículos da mídia inglesa”, lembrou Victor Fraga, “publicaram seguidas fake news, acusando o então trabalhista de defender terroristas palestinos e combater Israel”. Tal acusação ganhou tamanho relevo, que, em “Os Maus Patriotas”, quem defende a integridade do território da Palestina é Ken Loach. Ele diz “nunca ter visto um povo, historicamente, tão sem voz quanto o palestino”. E recorre a uma comparação: “Todos os dias, a mídia britânica combate a Rússia, que invadiu o território ucraniano, e defende a venda de armas para que a Ucrânia possa se defender da invasão. O Governo defende e vende armas para o país do Leste Europeu”. Já com “os palestinos, o mesmo não se dá. Israel invade o território palestino há décadas e não é condenado por isso”.
Sempre com ponderação e equilíbrio, Loach e Corbyn dedicam importantes segmentos de suas falas a analisar a mídia britânica (TV e jornais, incluindo The Guardian e veículos sensacionalistas, como The Daily News, The Sun, The Daily Star). O parlamentar não nega que The Guardian abre espaço para vozes de esquerda se manifestarem, mas que segue preservando seus rígidos princípios, diametralmente opostos aos interesses dos trabalhadores”. Para constatar que “a esquerda nunca conseguiu construir jornais de alcance massivo. Nunca”. E os dois concordarão que o país tem uma “elite sofisticada”, capaz de aceitar vitória dos Trabalhistas, desde que os eleitos não destoem da cartilha há séculos dominante. Ou seja, não apostem em transformações significativas do establisment.
Os Maus Patriotas | The Bad Patriots
Reino Unidos, 2024, 71 minutos
Direção: Victor Fraga
Participação: Ken Loach, Jeremy Corbyn, Victor Fraga e Laura Alvarez.
Fotografia: Giulio Amendolagine
Montagem: Valnei Nunes
Produção: Victor Nunes (Dirty Movies)
Exibições na Mostra SP: nessa sexta-feira, 26 de outubro (Espaço Augusta, 15h30) e no sábado, 26 (Cineclube Cortina, 18h50)
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