Honoré revive, em tom autobiográfico, busca amorosa de adolescente interiorano no “Inverno em Paris”

Foto: Juliette Binoche e Vincent Lacoste © Jean Louis Fernandez

Por Maria do Rosário Caetano

“Inverno em Paris”, décimo-segundo filme de Christophe Honoré (“Marcello Mio”, o décimo-terceiro, estreará daqui a dias, na Mostra de Cinema de São Paulo), chega, nessa quinta-feira, 10 de outubro, ao circuito de arte e ensaio brasileiro.

No elenco de “Le Lycéen” (título original), destacam-se a presença luminosa de Juliette Binoche, do jovem e talentoso Vincent Lacoste (o rouba-cena de “Ilusões Perdidas”), do próprio Christophe Honoré, que surge na tela como ator, do afro-francês Erwan Kepoa Falé e do personagem central da narrativa, o adolescente Paul Kircher (Lucas), em desempenho que lhe valeu indicação ao César de intérprete revelação (“meilleur espoir”).

Na primeira sequência do filme, veremos Lucas inserido em ambiente colegial, trocando brincadeiras e carícias com colegas. Saberemos, a seguir, que ele nutre imenso carinho pelo pai (Christophe Honóré). Esse amor ficará explícito no trecho em que os dois, juntos, se dirigem, de carro, da residência familiar até o internato onde Lucas estuda.

Um incidente – o carro derrapa perigosamente, depois de arremessado para fora da pista – deixará o garoto com maus pressentimentos. Que se confirmarão quando a família chegar ao Liceu para buscá-lo. O pai morreu, depois de ter o carro atingido brutalmente por um caminhão.

A perda precoce da figura paterna vai tumultuar a vida do adolescente e de seus familiares – a mãe, Isabelle (Juliette Binoche) e o irmão, o artista plástico Quentin (Vincent Lacoste), que vive em Paris. Quentin virá ao interior, participar do velório e do funeral. O luto unirá os três.

Outros familiares, que chegam para o enterro, representam a França interiorana, conservadora e anti-imigrantes. Causarão, claro, com suas ideias retrógradas, muitos dissabores, em especial, a Quentin, artista de índole progressista. Para tirar Lucas do ambiente doméstico e das lembranças vivas do pai, Quentin convida o irmão a passar pequena temporada com ele em Paris.

O garoto aproveitará para visitar museus (recomendados pelo irmão) e conhecer uma cidade, a capital francesa, fascinante, mesmo no inverno. E buscará suas primeiras, e complexas, experiências amorosas. Ele que havia terminado com o namorado da mesma idade, Oscar, colega no colégio interno, vai envolver-se com parceiros mais velhos.

O que interessa a Honoré é apresentar uma história de amor, um romance de formação, sem recorrer a ingredientes melodramáticos. Em sua iniciação, na difícil passagem da adolescência para a maturidade, o jovem interiorano descobrirá, ao mesmo tempo, uma cidade e novos parceiros.

Em pouco mais de duas horas, céleres e aliciantes, Honoré desenhará um duro retrato dos desejos desse colegial, que, ainda, não sabe bem o que quer. Sexualmente, sim, ele sabe muito bem o que deseja. Mas não tem clareza quanto ao rumo que dará à sua vida. Regressará ao interior, aos estudos, ao lar materno?

“Inverno em Paris” (a capital francesa costuma atrair espectadores brasileiros – vide o novo Woody Allen, “Golpe de Sorte em Paris”, que caminha milagrosamente para os 100 mil ingressos) deve agradar ao pequeno, mas fiel, público do realizador francês, um interiorano tal qual o protagonista de “Inverno em Paris”. Como Lucas, ele perdeu o pai cedo (o filme é dedicado ao pai verdadeiro do cineasta), e descobriu em Paris a cidade que se tornaria cenário privilegiado de seus filmes.

Honoré estudou Literatura Moderna (e Cinema) na Bretanha. Em 1995, aos 24 anos, mudou-se para Paris. Fez carreira como escritor de livros infantis. Chamou bastante atenção por abordar, em narrativas destinadas aos jovens, temas relacionados à homoparentalidade. E à Aids, pois testemunhou o período em que a doença espalhou-se como uma epidemia.

Honoré, que escreveu, também, livros para adultos e peças teatrais, teve sua passagem, nos final dos anos 1990, pelas páginas da revista Cahiers du Cinéma. Na bíblia da cinefilia francesa, escreveu textos que traziam um “clin d’oeil” (piscar de olhos) a personagem-chave (Roland Cassard) de “Lola, a Flor Proibida”, de Jacques Demy.

Ao estrear como diretor de cinema, em 2002 (aos 32 anos), Honoré homenageou Demys já no título de seu filme – “Dix-Sept Fois Cécile Cassard”. Cinco anos depois, seu quarto longa-metragem – “Canções de Amor” – dialogaria com o musical à moda Demy (“Os Guarda-Chuvas do Amor” e “Duas Garotas Românticas”).

Nos elencos dos 13 filmes de Honoré destacam-se, em especial e com muita frequência, os nomes de Chiara Mastroianni (que até “interpreta” o pai em “Marcello Mio”), o onipresente  Louis Garrel (Honoré ajudou o “neto” da Nouvelle Vague a escrever o roteiro de seu “Dois Amigos”) e Vincent Lacoste.

Entre as divas francesas, ele já trabalhara com Catherine Deneuve (em três filmes) e Isabelle Huppert (“Minha Mãe”). Faltava Juliette Binoche. Ele bem que tentara. Mas não conseguiu. Só agora ela pôde dedicar-se a interpretar uma personagem de Honoré. E densa como ela gosta.

Coube a Binoche emprestar seu talento à intensa e amorosa professora, que tem que enfrentar, em sua pequena cidade, a perda inesperada do marido. A mãe de Lucas e Quentin continuará atuando na instituição que a emprega e, com insistência, ligará seguidas vezes para o filho caçula. Quer saber como ele está, o que anda fazendo, se está gostando da temporada parisiense.

A atriz, embora não seja a protagonista de “Inverno em Paris”, poderá mostrar, com a cativante intensidade de seu olhar, o desespero sentido ao saber que o filho mais novo foi parar numa clínica psiquiátrica.

Em entrevista à imprensa francesa, Honoré confessou sua alegria em, finalmente, dirigir Juliette Binoche. Afinal, “ela trouxe um toque humano e profundidade essenciais ao filme”. Por isso, ele ficou “realmente impressionado com a força de seu desempenho e com sua paixão pelo cinema, palpável a cada passo do caminho”.

O título brasileiro, embora muito distante do original (Honoré priorizou lembranças do tempo de jovem aluno de Liceu), não soou apelativo. Afinal, a Paris que serve de cenário à maior parte do filme vive tempo invernal, assim como a alma do jovem Lucas, desnorteado com a perda do pai e sem saber como conviver com o rigor do irmão e como enfrentar experiências homoafetivas mais intensas.

Que ninguém, pois, espere encontrar a luminosa e chique Paris de Woddy Allen, essa do “Golpe de Sorte”, que a tantos vem encantando. Como antes acontecera com “Meia-Noite em Paris” (2011).

 

Inverno em Paris | Le Lycéen
França, 2022, 143 minutos
Direção e roteiro: Christophe Honoré
Elenco: Paul Kircher (Lucas Ronis), Juliette Binoche (Isabelle Ronis), Vincent Lacoste (Quentin Ronis), Christophe Honoré (Claude Ronis), Erwan Kepoa Falé (Lilio Rossio), Adrien Casse (Oscar), Pascal Cervo, Anne Kessler
Fotografia: Rémy Chevrin
Montagem: Chantal Hymans
Direção de arte: Jérémy Streliski
Figurino: Pascaline Chavanne
Distribuição: Pandora Filmes

 

FILMOGRAFIA
Christophe Honoré (Carhaix-Plouger, departamento de Finistère, Bretanha, França, 4 de outubro de 1970)

2024 – “Marcello Mio”
2022 – “Inverno em Paris”
2021 – “Guermantes”
2019 – “Quarto 212”
2018 – “Conquistar, Amar e Viver Intensamente”
2016 – “Os Desastres de Sofia”
2014 – “Métamorphoses”
2011- “As Bem-Amadas
2010 – “Homme au Bain”
2009 – “Não, Minha Filha, Você Não Vai Dançar”
2008 – “A Bela Junie”
2007 – “Canções de Amor”
2006 – “Em Paris”
2004 – “Minha Mãe”
2002 – “Dix-Sept Fois Cécile Cassard”

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