Joel Zito Araújo dirige cartografia do cinema africano, evoca os mestres e revela novos realizadores
Por Maria do Rosário Caetano
Nesse mês em que o país festeja o Dia da Consciência Negra (20 de novembro), a TV Brasil lança a série “Encontros com o Cinema Africano”, concebida e realizada por Joel Zito Araújo. Composta, em sua primeira temporada, de cinco episódios, a série estreia nesse sábado, às 23h30, com reprise na madrugada.
O autor do livro (e filme) “A Negação do Brasil – O Negro na Telenovela Brasileira” realiza cartografia estético-afetiva do audiovisual produzido em solo africano e na diáspora.
No primeiro episódio, temos encontro marcado com o mauritano Abederrahmane Sissako, diretor de “Timbuktu”, indicado ao Oscar, e do recentíssimo “Black Tea – O Aroma do Amor”, estreia do próximo dia 14. Sissako viveu por longos anos em Paris, mas assegura que a África vive dentro dele. Por isso, está – ele que cresceu no Mali e filmou em diversos países africanos – sempre disposto a contar histórias sobre as gentes de seu continente de origem. O episódio um é falado em francês. Afinal, Sissako vem do Magreb colonizado pela França.
O segundo episódio (foto) se passa nos EUA, onde Joel Zito estudou e conheceu Haile Gerima e Shirikiana Aina. O casal afro-americano, de imensa importância no “cinema black”, realiza, no país que projetou o cinema de Spike Lee, trabalho de maior importância. Haile nasceu na Etiópia e chegou aos EUA em 1968-69, anos efervescentes da luta pelos direitos civis. Lá, uniu sua vida à artista plástica, produtora e diretora afro-americana Shirikiana.
Hoje, além de realizar filmes e seguir firme no ativismo black, a dupla comanda, com amigos e parceiros comerciais, um edifício inteiro dedicada à cultura, arte e culinária afro-americana – o Sankofa Video Books & Café (em Washington, defronte à Howard University). O episódio fala inglês. Com legendas em português, claro.
O terceiro episódio fala português, pois se passa em Moçambique e evoca a década de ouro do cinema realizado no país que se libertou de Portugal em 1975.
Até 1985, a nação de Samora Machel transformou-se numa espécie de capital do audiovisual africano. Para lá se dirigiram os brasileiros Ruy Guerra (moçambicano de nascimento), Murilo Salles, Geraldo Sarno e Licínio Azevedo. E os franceses Jean Rouch e Jean-Luc Godard. E muitas estrelas dos países socialistas (URSS, Iugoslávia etc.). O episódio resulta do encontro de Joel Zito com três moçambicanos – o produtor Pedro Pimenta, de franqueza ímpar, o cineasta gaúcho Licínio Azevedo, radicado em Moçambique há cinco décadas, e a jovem realizadora Yara Costa.
“O Cinema Angolano” e “O Cinema Cabo-Verdiano” compõem, respectivamente, o quarto e o quinto episódios. E falam português (no caso do arquipélago de Cesária Évora, um pouco de crioulo). Angola, libertada pelo MPLA de Agostinho Neto (1922-1979), país bem mais rico que Moçambique, não chegou a promover uma “primavera cinematográfica” como a que foi patrocinada por Samora Machel (1933-1986).
Uma das vozes altissonantes do cinema angolano – a do cineasta e produtor Zezé Gamboa – garante que nem em décadas recentes, quando o país viveu o boom do petróleo farto, houve empenho no desenvolvimento cultural e artístico do país de Agostinho Neto.
Além de Gamboa, o episódio 4 abrirá espaço nobre para a afro-francesa Sarah Maldoror (1929-2020) e para os jovens da Geração Oitenta – os inquietos Fradique e Ery Clever. Joel Zito apresenta material inédito de Maldoror. Quando realizou “Meu Amigo Fela”, seu longa documental sobre o músico nigeriano Fela Kuti (1938-1997), ele registrou encontro do mestre-de-cerimônia de seu documentário, o cubano-estadunidense Carlos Moore, com Sarah Maldoror. Foi um dos últimos (o último?) registros da cineasta e ativista das causas africanas. Ela morreria no ano seguinte.
Como pensar em cinema num país de 500 mil habitantes? Essa é a população do arquipélago de Cabo Verde. Aprenderemos, no episódio 5, que lá se faz cinema e existe uma Escola Internacional de Artes, com curso de pós-graduação em Artes e Audiovisual. Mesmo que – nos revelará o episódio – “a diáspora tenha espalhado 1,5 milhão de cabo-verdianos pelo mundo”. Esses dados são fornecidos pela jovem Samira Vera-Cruz, cineasta e artista plástica. Um país de partidas. De emigrantes.
Joel Zito Araújo, que vive entre o Brasil e Cabo Verde, terra de sua companheira (a cabo-verdiana São Graça), conhece muito bem o arquipélago. Lá, em parceria com o cineasta e ex-ministro da Cultura Leão Lopes, ele inicia deliciosa conversa sobre os primórdios do cinema cabo-verdiano.
Juntos, os dois olham o mar aberto. E Joel Zito conta a Leão que, dali, Walter Salles filmou emblemática sequência de “Terra Estrangeira”. Aquela em que um navio encalhado serve de pano de fundo ao encontro de Paco e Alex (Fernando Alves Pinto e Fernanda Torres). O brasileiro lembra ainda que foi em Cabo Verde que Walter conheceu a música de Cesária Évora e, encantado, comprou todos os discos dela, que trouxe ao Rio de Janeiro para presentear Caetano Veloso.
Sempre atento à presença feminina e de jovens realizadores, o diretor brasileiro nos revelará Samira Vera-Cruz e, também, Yuri Ceunick, que falará de um filme dos mais impressionantes (“The Master’s Plan”), por ele realizado.
“The Master’s Plan” consegue causar, nos espectadores, mais espanto que impressionante história contada por Leão Lopes. Este alugara casa de uma portuguesa como principal locação de seu novo filme. Até que a locadora desconfiou que o projeto não estaria enaltecendo (como desejava ela) a gente lusitana e sim “os negros e mestiços de Cabo Verde”. Trancou as portas e não permitiu que as filmagens prosseguissem. Desesperado, o realizador teve que recorrer a um irmão da dona da casa, em Lisboa, a quem caberia dobrar a irredutível parente.
O jovem diretor de “The Master’s Plan” chocou a pacífica sociedade cabo-verdiana ao registrar rara experiência espiritual-social dos Adventistas do Sétimo Dia. A igreja solicitou que seus fieis registrassem testemunhos sobre suas falhas como seres humanos. O que se viu foram testemunhos chocantes de orgias, incestos, tentativas de violar crianças ou tentativas de assassinato.
Yuri Ceunick, que estudou na Escola Internacional de Cinema de San Antonio de los Baños, em Cuba, e também na Bélgica, regressou ao seu país para imprimir novo vigor no cinema local.
O que não falta na série “Encontros com o Cinema Africano” são boas histórias. Elas se acumulam a cada episódio, iniciados por bela e aliciante vinheta.
Sissako protagoniza o primeiro episódio e relembra seus tempos de estudante. Ele foi aluno da mais antiga escola de cinema do mundo – a de Moscou, criada no breve governo de Vladimir Lênin (1870-1924). Lá, foi aluno de grandes professores e, fundamental, pôde assistir ao melhor cinema do mundo – do Construtivismo Soviético (Eisenstein, Pudovkin, Dziga Vertov), do Neo-Realismo Italiano, do Cinema Alemão, da produção francesa, dos EUA (de John Ford a John Cassavetes). E, claro, conheceu a obra do pai do cinema africano, o senegalês Ousmane Sembene (1923-2007). Sem esquecer Djibril Diop Mambety (1945-1998).
Senhor de seu ofício de realizador cinematográfico – são quatro décadas dedicadas ao audiovisual – Joel Zito faz a coisa certa. Quando Sissako evoca Sembene e Mambety, cartelas informarão às novas gerações (e às velhas, também, pois pouco sabemos da história do cinema africano), quem foram os criadores de “A Negra de..” (La Noire de…, 1966) e “A Viagem da Hiena” (1973).
Ao término da primeira temporada de “Encontros com o Cinema Africano”, teremos estabelecido um primeiro contato com ideias e trechos de filmes de Abderhamane Sissako, da Mauritânia; do diaspórico Coletivo Sankova, de Washington; dos moçambicanos Yara Costa, Licínio Azevedo e do bocudo Pedro Pimenta (este, produtor); dos angolanos Zezé Gamboa, Fradique e Ery Clever e dos cabo-verdianos Leão Lopes, Yuri Ceunick e Samira Vera-Cruz. E teremos ouvido histórias incríveis.
Pedro Pimenta é quem, com sua desconcertante franqueza, dirá verdades dolorosas. Lembrará que o “25”, de Zé Celso e Celso Luccas, não caiu bem em Moçambique (“o filme não foi apreciado”). Que “três estrelas” – Ruy Guerra, Godard, Rouch – não conseguiram solidificar seus projetos, pois “três bicudos não se bicam”. Que o “projeto público” da Era Samora Machel se desmanchou e, com o advento da Era Mandela, na África do Sul, o eixo do cinema africano desceu para o país do extremo-sul do continente.
Para finalizar, Pimenta conta que anda distante de seu ofício, pois não está “para mendigar verbas”, nem com paciência “para aturar diretor de cinema”. Com fecho desalentador, cita frase atribuída à atriz e cineasta Maria de Medeiros: “O cinema é o último refúgio dos ditadores”.
Há momentos inesquecíveis na série. Num deles, o cabo-verdiano Leão Lopes lembra o impacto das chanchadas brasileiras no público do arquipélago de Cesária Évora: “eu era um miúdo e nunca me esqueci de Oscarito (ou Grande Otelo) explicando o que é uma hipótese!” (risos).
Nas próximas temporadas, Joel Zito continuará lembrando que o Fespaco (Festival Pan-Africano de Cinema e TV de Uagadugu), realizado a cada dois anos em Burkina-Faso, é o similar de Cannes na África. Ou seja, a grande vitrine do cinema pan-africano. E, claro, visitará cinematografias potentes como a sul-africana (a South Africa é o “S” dos Brics), a nigeriana (“Nollywood”), a dos países magrebinos etc., etc.
“Encontros com o Cinema Africano” constitui-se como projeto da maior relevância, que depois servirá de sólido material didático para escolas brasileiras.
Encontros com o Cinema Africano
Série em cinco episódios de 28 minutos cada um, TV Brasil, aos sábados
Criação e direção: Joel Zito Araújo
Roteiro: Joel Zito Araújo e Isabel de Castro
Fotografia: Cleumo Segond e Helô Passos
Montagem: Isabel de Castro
Som: Marcelo Lessa, Mamadou Diop, Hugo Lopes
Trilha sonora: Zubikilla Spencer
Videografismo: Guilherme Hoffman
Colorização: Paulo de Carvalho
Produção: Luiza Botelho Almeida e Joel Zito Araújo
DATAS E HORÁRIOS
Dia 2 (sábado) – Episódio 1 – “O Cinema de Abderrahmane Sissako”
Dia 9 (sábado) – Episódio 2 – “O Cinema de Haile Gerima e Shirikiana Aina”
Dia 16 (sábado)- Episódio 3 – “ O Cinema Moçambicano”
Dia 23 (sábado)- Episódio 4 – “O Cinema Angolano”
Dia 30 (sábado) – Episódio 5 – “O Cinema Cabo-Verdiano”
Horários: sempre as 23h30 do sábado, com reprise na madrugada de sábado para domingo, às 4h30.
FILMOGRAFIA
Joel Zito Araújo
Realizador, roteirista e produtor mineiro (1954)
Longas ficcionais:
2005 – Filhas do Vento (2005)
2022 – O Pai da Rita (2022)
Documentários:
2000 – “A Negação do Brasil”
2009 – “Cinderelas, Lobos e um Príncipe Encantado
2013 – “Raça” (em parceria com Megan Mylan)
2019 – “Meu Amigo Fela”
Séries documentais:
2022 – “PCC – Poder Secreto” (HBO Max)
2023 – “A Ética do Silêncio” (Curta!)
2024 – “Encontros com o Cinema Africano” (TV Brasil)