Na Mostra de Gostoso, “Manas” e “Raposa” discutem abuso sexual e levantam discussão sobre o uso da violência

Foto: “Manas”, de Marianna Brennand

Por Maria do Rosário Caetano, de São Miguel do Gostoso (RN)

O longa-metragem “Manas”, produção pernambucana dirigida por Marianna Brennand, e o curta “Raposa”, da cearense Margot Leitão (parceria com João Fontenelle), trouxeram a debate, na Mostra de Cinema de Gostoso, a questão do uso da violência em narrativas audiovisuais.

No caso do premiadíssimo longa pernambucano (vencedor da Jornada dos Autores, em Veneza), a questão que se impõe, por sua relevância, é a da catarse provocada no público por seu desfecho brutal. Ou seja, o sentimento de desabafo que experimentamos, em estado de alívio, frente a situações aflitivas e extremas.

“Manas”, estreia na ficção de Marianna Brennand, é um filme de imensas qualidades. Seu roteiro, construído pela diretora com parceiros (Felipe Sholl, Marcelo Grabowsky, Antonia Pellegrino, Camila Agustini e Carolina Benevides) é de fina ourivesaria, verossímil, com personagens nuançadas. Suas locações (na Ilha do Marajó) conformam mais um “personagem” a envolver o público.

Seus atores, dos estreantes aos experientes Dira Paes (a delegada Aretha), Rômulo Braga (Marcílio, o pai de família) e Ingrid Trigueiro (Jaci, a dona da venda), estão perfeitos em seus papéis.

As crianças e a pré-adolescente Marcielle (Jamilli Correa, uma força da natureza) convencem em cada gesto, em cada fala. O pernambucano (“de Gravatá”, no filme) Rodrigo Garcia brilha na pele de embarcadiço cheio de mistérios e promessas. Fátima Macedo, vinda do teatro, está perfeita no papel da mãe de quatro crianças, grávida da quinta, presa em engrenagem que parece infinita, incontornável.

O filme narra a história de Marcielle, a Tielle, de 13 anos. Ela vive em casa isolada, cercada de água e floresta, junto ao pai, Marcílio, à mãe, a sofrida Danielle, e aos três irmãos. Cultiva imagem idealizada de Claudinha, irmã mais velha, que partira, numa balsa, para bem longe, após “arrumar um homem bom”. Tielle espera encontrar, em balsa similar, o seu “homem bom”. Mas o abuso sexual entrará em sua vida de tal forma, que ela terá duas alternativas — sucumbir ou reagir. Sua reação se fará urgente quando o horror se aproximar de sua irmã mais nova, Carol.

Pois foi justamente o gesto de Tielle, em seu confronto com a engrenagem da violência, que gerou a mais inusitada das reações (pelo menos em ambiente de festival de cinema). Parte do público aplaudiu calorosamente o ato extremo da menina. Semelhante ao que fora visto no desfecho da narrativa do curta “Raposa” (nesse caso, sem aplauso em projeção aberta).

As duas atrizes que representaram “Manas” no debate da Mostra de Gostoso — Ingrid Trigueiro e Fátima Macedo — responderam, com serenidade, à questão sobre a incômoda catarse provocada em parte do público.

Elas testemunharam que, “no Festival de Veneza, no Festival do Rio e na Mostra de São Paulo, não houve aplausos” (em projeção aberta para a citada sequência). Mas, “no festival Janela de Cinema, no Recife, e, agora, em São Miguel do Gostoso, sim”.

Ingrid, integrante do elenco de “Bacurau” (Mendonça e Dornelles, 2019), lembrou que “cena com uso de um bacamarte também foi muito aplaudida em sessões deste filme” (pernambucano, como o longa de Marianna).

Para, em seguida, acrescentar: “quando li o roteiro de ‘Manas’, fiquei muito impactada com a sequência (que seria aplaudida no Recife e em Gostoso). Até me perguntei: mas é isso mesmo? Entendi que sim, dentro daquela realidade, responder à violência (do abuso) com outro ato de violência seria possível”.

Fátima Macedo, por sua vez, ponderou: “esse final catártico é desejável? Não. Mas é compreensível em ambiente tão isolado, onde só se vê água, floresta e desolação, onde não há a quem recorrer. Um lugar onde não se pode contar com a ajuda do Estado”.

“Marianna e sua equipe de roteiristas” — acrescentou Fátima — “optaram por uma espécie de escape poético, capaz de exorcizar tamanho sofrimento vivido pelas personagens femininas. Que outros finais poderiam ser escritos?”

“Nós, os atores” — arrematou —, “procuramos dar complexidade a cada uma de nossas personagens. A minha, Danielle, mãe das crianças, reflete pelo olhar a sua resignada compreensão do que se passa. Aquele momento de catarse (para o público) é visto por ela, em certa medida, como uma libertação, um ‘livramento’ daquela mulher”.

“Raposa”, de Margot Leitão e João Fontenelle

Dois dos curtas exibidos na mesma noite de “Manas” já chegaram à Mostra de Gostoso premiados em seus estados de origem. O primeiro — “Raposa” — fixa-se em inusitada parceria (capaz de por termo a abuso sexual) entre a personagem título, uma jovem tida como “louca”,  e Lelé, um diarista homoafetivo. Realizado no interior do Ceará, o filme conquistou o prêmio máximo da mostra Olhar Cearense, no Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em Fortaleza.

“Chibo”, de Gabriela Poester e Henrique Lahude, triunfou na Mostra Assembleia Legislativa, o Gauchão, parte constitutiva do Festival de Gramado. Este documentário, construído em franco diálogo com a ficção, se passa na zona de fronteira entre o Rio Grande do Sul e a Argentina.

O foco da dupla de realizadores recai sobre família que vive do “chibo”. Ou seja, da travessia clandestina de mercadorias entre os dois países. Dessa prática retiram seu sustento. Com olhar poético, que descortina a paisagem humana e física da região (em especial, a de Tiradentes do Sul) conheceremos a adolescente Dani, que está concluindo o colegial e vê chegada a hora de tomar decisões. A principal é se deve deixar, para prosseguir seus estudos, sua família e território natal, ou permanecer ali, como um dos esteios da prática do chibo. A jovem escolherá a vida ocupada com travessias clandestinas, de barco, de margem à margem, do Rio Uruguai? Ou irá para a cidade grande, viver outra vida?

Poester e Lahude nos oferecem 18 minutos de imagens reveladoras, personagens cativantes (e francas como a mãe de Dani) e crença no poder da sugestão. Nada é mastigado para facilitar (baratear) a fruição do espectador.

O potiguar “Yby Katu” se fez representar no palco do Cinema ao Ar Livre, na Praia do Maceió gostosense, por liderança indígena da nação Potiguara Katu e pelos diretores Kaylany Cordeiro, Jessé Carlos, Ladivan Soares, Rodrigo Senna e Geyson “Katu” Fernandes.

A trama ficcional, em diálogo com o documentário, se dá em dois espaços: na comunidade indígena e numa escola, onde estuda a adolescente Fernanda. Em aula realizada no dia dedicado aos Povos Originários, a estudante terá que autoafirmar-se, mostrando orgulho por suas origens.

O mais discreto dos diretores da noite, o paranaense William de Oliveira, apresentou o curta “Pequenas Insurreições”, no imenso palco da Mostra de Gostoso, com rara (e bem-vinda) síntese. Disse que inspirara-se, ao conceber o filme, em ofício (o de babá) desempenhado por sua irmã.

O filme, que se passa na sala de espera de agência de cuidadoras, nos apresenta mulheres jovens ou mais-vividas, em busca de trabalho. Uma a uma, elas são chamadas para apresentar suas habilidades e capacidades. Só que, indignadas com procedimentos (e promessas pouco claras de remuneração), elas resolvem firmar um pacto.

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