Mostra de Tiradentes luta para libertar produção independente da condição de “cinema fantasma”
Foto: “Girassol Vermelho”, de Éder Santos
Por Maria do Rosário Caetano, de Tiradentes (MG)
Num momento em que filmes brasileiros voltam a dialogar com o público – “Ainda Estou Aqui” e “O Auto da Compadecida 2” se aproximam dos 4 milhões de ingressos (cada um) e “Chico Bento e a Goiabeira Maraviosa” mobiliza a criançada –, a Mostra de Cinema de Tiradentes, em sua edição de número 28, soma esforços para tirar a produção independente do gueto. Ou de incômodo anonimato.
Depois de seu primeiro final de semana com espaços abarrotados – sejam telas de exibição, salas de debate ou praças culturais –, o clima geral soma dois estados de espírito. Um dominado pela euforia com mais um momento de reencontro entre o “cinemão” e seu público. O outro, pela triste sina dos filmes que são a razão de ser da Mostra Tiradentes. Aqueles que o curador de longas-metragens (mostras Aurora e Olhos Livres), Francis Vogner dos Reis, chamou de “cinema fantasma”, e a curadora de curtas-metragens, Camila Vieira, de “cinema arriscado”. Ou “não-confortável” (a espectadores acomodados ao mainstream).
A expressão “cinema fantasma”, cunhada por Francis Vogner – durante o debate “Que Cinema é esse?: Perspectivas das Curadorias” (lotado!, com telão externo-multiplicador) – alcançou grande ressonância. O próprio curador, que acompanha de perto a história da Mostra Tiradentes, perguntou: “onde vão parar os filmes (exibidos em Tiradentes)?”
Ele mesmo respondeu: “muitas vezes no HD, ou seja, dentro da gaveta”. Isso – prosseguiu – “quando não desaparecem”. Lembrou que muitos dos filmes que passaram pela Mostra Aurora, destinada a diretores estreantes, não foram preservados.
“No Brasil” – lamentou –, “a preservação não parece fazer parte do processo cinematográfico”. Desolado, contou que, ao consultar a lista completa de filmes de Julio Bressane, símbolo do cinema de invenção no Brasil, deparou-se com incômodas informações: “não está disponível”, pois sem cópia, “tido como desaparecido” (caso de “Cinema Inocente”).
A Mostra Tiradentes, porém, segue apostando na crença de que o cinema independente (de invenção, experimental ou de risco) terá sua hora e vez. Francis Vogner fez questão de lembrar que a “Economia de Borderô”, calçada portanto em bilheterias na casa dos milhões de espectadores – hoje “representada pelo filme de Walter Salles, “Ainda Estou Aqui”, e por “Compadecida 2”, de Arraes e Lacerda – não pode ser tomada como “modelo único”, pois “há outros modos de existência cinematográfica”.
Camila Vieira, em sua apresentação dos critérios de seleção dos curtas-metragens, lembrou que foram inscritos mais de mil títulos. E que o cinema assinado por homens brancos cisgênero, vindo do Sudeste, continua hegemônico. Mas – destacou – “notamos que houve aumento de filmes vindos do interior do país, graças à Lei Aldir Blanc”. Destacou dois títulos, ambos originários da cidade de Assis (SP): “Marmita” e “Veredas”.
Os dois são fruto da Oeste Cooperativa Paulista e do embrionário Polo Audiovisual do Velho Oeste, que ganharam relevo desde o triunfo de “Ainda Restarão Robôs na Ruas do Interior Profundo”, de Guilherme Xavier Ribeiro. Em 2022, esse filme venceu o Festival de Curtas-Metragens Kinoforum e cravou vaga no respeitado Festival de Clermont-Ferrand, na França.
Dali em diante, Guilherme, formado pela USP e com carreira construída na MTV, passou a se desdobrar nos créditos de filmes de jovens do “Velho Oeste” paulista. Seja como produtor, fotógrafo, montador ou “oficineiro”. Foi convidado a atuar em outro “interior”, no caso a litorânea e pequenina São Miguel do Gostoso, no Rio Grande do Norte. O filme que o teve como tutor (“Fim de Jogo”, de Clara Leal) foi exibido no festival potiguar, mas não só. Chegou aos grandes festivais.
A polarização entre “cinema independente” (preferencialmente de baixo ou baixíssimo orçamento) e “cinemão” continua presente na Mostra Tiradentes. Mas, esse ano, as correções de rumo realizadas pela direção do evento (as Irmãs Hallak e Quintino Vargas) e pelos curadores mostram que esse Fla x Flu precisa conviver com mais matizes.

A entrega à atriz Bruna Linzmeyer do Troféu Barroco (Homenageada do Ano) é bastante simbólica. Embora seja receptiva a projetos arriscados como “Cidade; Campo”, de Juliana Rojas, e a curtas-metragens transgressivos, a catarinense nunca se afastou das telenovelas e séries, nem rejeita o streaming.
Ao buscar no palco do Cine Tenda o seu “Barroco” esculpido em pedra-sabão, a “menina de 32 anos” e imensos olhos azuis, chamou atenção por sua simplicidade. Vestia um singelo vestido branco, fez questão de se fazer acompanhar pelos pais (Gerson Linzmeyer e Rosinete dos Santos) e por alguns dos cineastas que a dirigiram (caso de Neville D’Almeida e Marcelo Caetano).
No seu sintético (e escrito) agradecimento, a atriz lembrou sua origem modesta (nasceu na pequena e incógnita Corupá, em Santa Catarina), sua fugaz carreira de modelo e que nunca planejara ser atriz. Mesmo assim, mudou-se para São Paulo, aos 16 anos, para estudar teatro. Aos 18 anos, estreou na TV, em série de Luiz Fernando Carvalho (“Afinal, o que Querem as Mulheres?”). Com ele faria a inventiva telenovela “Meu Pedacinho de Chão”. E viriam os filmes. Muitos. Filmes grandes (como “O Grande Circo Místico”, de Carlos Diegues), e pequenos (como o atrevido “A Frente Fria que a Chuva Traz”, de Neville). E os ousados (“Cidade; Campo” e “Baby”).
Bruna Linzmeyer teve sua carreira, que já dura 16 anos, relembrada pelo Canal Brasil. E, maquiadíssima (com sombra azul, mais azul que seus olhos azuis), foi vista no trailler de “Máscaras (Não) Cairão Automaticamente”, série da Max que ela protagoniza ao lado de Johnny Massaro e Ícaro Silva. Como se trata de narrativa sobre a epidemia de Aids, que varreu o mundo nas décadas de 1980 e 90, a comissária de bordo interpretada por Bruna se apresenta com os excessos cosméticos daqueles tempos. Sim, as aeromoças pareciam, então, vestidas e maquiadas para uma festa psicodélica.
A atriz corupaense vai dedicar-se, agora, que terminou as filmagens de “Virtuosas”, novo filme da paranense-catarinense Cintia Domit Bittar, a seu primeiro longa-metragem como diretora. O nome já está escolhido – “Corupá”. Vai homenagear sua cidade natal, mas adianta que não fará um filme autobiográfico.
O primeiro final de semana da Mostra Tiradentes somou muitos debates e programação de diversos longas-metragens. O primeiro de todos foi “Girassol Vermelho”, de Éder Santos, o convidado da noite inaugural. O cineasta mineiro, que fez história na videoarte, subiu ao palco do Cine Tenda com o codiretor Thiago Villas Boas, formado pela USP e realizador de curta – “Casa de Cachorro” (2000), que causou entusiasmo e ganhou acurada análise em edição ampliada de “Cineastas e Imagens do Povo”, obra seminal de Jean-Claude Bernardet. Com a dupla, subiram ao palco integrantes do elenco, liderado por Chico Diaz e com participação especial de Daniel de Oliveira.
O filme, inspirado em contos do ficcionista mineiro Murilo Rubião (1916-1991), registra, em clima onírico, a jornada de Romeu (Chico Diaz), um homem que abandona seu passado em busca de liberdade. Ao chegar a uma estranha cidade, ele irá deparar-se com o oposto do que buscava. Ou seja, com um sistema opressor, que o impede de exprimir-se e questionar o que se passa. Acabará submetido a interrogatórios e torturas. Será engaiolado. Privado de sua liberdade, marcado por dor e fúria, Romeu empreenderá viagem interior mais delirante e estranha que aquela que, anteriormente, havia iniciado.
No segundo dia do festival, o sábado, o público lotou o imenso Cine Tenda para assistir ao vencedor do Festival de Gramado – o western crepuscular “Oeste Outra Vez”. Curioso notar que o festival gaúcho, tido como antípoda de Tiradentes (por apostar na badalação, em atores famosos e narrativas aparentadas com o mainstream), tenha trazido para sua principal vitrine, o detentor do Troféu Kikito. Seu destino, por isso, seria o Cine Praça, dedicado a filmes que buscam o diálogo com o público. Mas, não!
O longa dos cerrados goianos foi exibido no mesmo espaço dedicado aos filmes das mostras Aurora e Olhos Livres. O cineasta Erico Rassi e a produtora Cris Miotto foram festejados com sonoros aplausos. “Oeste Outra Vez” estreia no circuito comercial no dia 27 de março.
Coube a dois filmes de realizadores dos mais inquietos – o carioca Bruno Safadi e o cearense Pedro Diógenes – abrir a Mostra Autorias, cujos filmes serão avaliados pelo Júri da Crítica (Abraccine) e pelo Júri Popular.
Safadi foi revelado em Tiradentes, na primeira edição da Mostra Aurora (em 2007) com “Meu Nome é Dindi”. Diógenes, vindo do Coletivo Alumbramento, de Fortaleza, marcou com seus colegas – os Irmãos Pretti e o primo Guto Parente (sem esquecer o fotógrafo Ivo Lopes Araújo) – o processo de revitalização do cinema nordestino.

O filme de Bruno Safadi – “Para Lota” – foi realizado em parceria com Ricardo Pretti, um dos “alumbrados” (o Coletivo, já desfeito, viu cada um seguir seu próprio caminho). E tem a arquiteta e paisagista Lota Macedo Soares (1910-1967) como razão de ser. Mulher cosmopolita, ela correu mundos. Uniu sua vida afetiva à poeta estadunidense Elizabeth Bishop (1911-1979) e convenceu o então governador da Guanabara, o udenista Carlos Lacerda (1914-1977) a construir o Aterro do Flamengo. Um empreendimento em forma de parque de lazer de seis Km de extensão, com jardins de Burle Marx e equipamentos para práticas esportivas ou desestressantes passeios.
Apesar das intempéries – inclusive políticas, pois Lacerda, depois de tramar e apoiar o golpe militar de 1964, seria cassado em 1968 –, a obra preservaria significativo trecho do litoral carioca, livrando-o da sanha imobiliária.
“Para Lota” nasceu durante a pandemia. Safadi e Pretti resolveram, numa noite aleatória, realizar um imenso travelling do Aterro-Parque do Flamengo. O resultado, em preto-e-branco, somou sombras e luzes de efeito gráfico. Guardaram o material. Até decidirem que as cartas que Lota escrevera a Lacerda (uma, em especial, tinha a escritora Rachel de Queiroz como destinatária) seriam o fio condutor desse documentário experimental e minimalista.
Outras filmagens foram realizadas, mas não muitas, sempre em preto-e-branco (como o verdejante e tropical Burle Marx reagiria a elas?, vale conjecturar!). Duas vozes foram convocadas — a de Leandra Leal, que lê com paixão as missivas de Lota, e a de Mariana Ximenes, também calorosa na leitura de belo texto da autora de “O Quinze”. Os textos, muito elucidativos da luta travada por Lota, somar-se-ão a duas composições musicais. Aliás, registre-se, Safadi e Pretti fazem jocoso uso de “Praia do Flamengo”, esfuziante e satírica marchinha carnavalesca interpretada por Carlos Gonzaga.
Os versos “Adeus praia do Flamengo/ Só a saudade ficou no lugar/ Adeus Flamengo/ O prefeito mandou aterrar/ Ai, ai, doutor/ O que é que eu vou fazer do meu maiô?” entram, fragmentados, para sublinhar a narrativa. E, no final, o hino de amor ao “Poder da Criação”, de João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro, nos traz comovente, poderoso e aliciador desfecho melódico.
Vale registrar que “Para Lota” dá seguimento à firme parceria de Safadi com a atriz (e diretora) Leandra Leal. Os dois, que fizeram juntos o perturbador longa “Éden” (2013), e, ano passado, engendraram a ótima série “A Vida pela Frente” – entre outros projetos –, continuam trabalhando juntos. Depois que terminar a licença maternidade, Leandra se unirá a Bruno para dirigir cinebiografia da atriz e militante política Bete Mendes.
O terceiro dia da Mostra Tiradentes, um domingo, com a cidade histórica abarrotada de turistas, começou com sol radiante e terminou com muita chuva. O que impediu a exibição no Cine Praça (ao ar livre) do mais aguardado dos 140 filmes programados: “Milton Bituca Nascimento”.
O jeito foi comprimir parte do público no Cine-Teatro Yves Alves. Havia mais gente de fora, que dentro do auditório. Por isso, o comando do festival acertou sessão extra do filme que compõe “trilogia involuntária” com “Lô Borges – Toda Essa Água” (Rodrigo de Oliveira e Vânia Catani) e “Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina” (Ana Ripper).
Se não chover, nessa segunda-feira, 27 de janeiro, às 19h, estrelas internacionais e nacionais darão seu testemunho sobre a grandeza da voz, carregada de mistérios, que brotou das minas de ferro e dos ecos das cavernas de Minas Gerais.
Na parte solar do domingo tiradentino, quem brilhou foi o veterano Julio Bressane, que fará 79 anos mês que vem. No dia anterior, ele havia mobilizado imensa plateia, com sua inteligência e verve poético-irônica, em conversa cinematográfica. Realizada ao lado de seu novo parceiro artístico, o montador e codiretor Rodrigo Lima, de 49 anos.
O encontro se deu antes da exibição de “Relâmpagos de Críticas, Murmúrios de Metafísicas”, uma inventiva colagem de trechos de 48 filmes brasileiros, do nascimento de nossa cinematografia nas águas da Guanabara (Bressane e Rodrigo recriam a filmagem naval que teria sido perpetrada por Paschoal Segretto, no final do século XIX) até nossos dias. Haverá, pois, espaço nobre para “Os Óculos do Vovô”, “Exemplo Regenerador”, “Fragmentos da Vida”, “Limite”, “Ganga Bruta”, “Viagem ao Fim do Mundo”, “Bandido da Luz Vermelha” e muitos dos inventos do próprio Bressane.
Uma viagem guiada pela “ideologia do fotograma” e pela imaginação dos dois diretores (o roteiro e a montagem também são assinados pela dupla). São 148 minutos de voluptuoso amor pelo cinema, aquele impregnado por inquietações e transgressões. Aquele realizado por artífices do cinema de invenção e “alguma experimentação”.
Bressane, acompanhado da companheira, a filósofa e produtora Rosa Dias, e da filha, a cineasta Noa Bressane (e claro, do parceiro Rodrigo Lima) apresentou “Relâmpagos de Críticas…” ao público pedindo “paciência misericordiosa”. Afinal, boa parte do filme seria silenciosa, já que composta com trechos do cinema da era muda.
O público – na plateia estava o cineasta Neville d’Almeida que, em tom de brincadeira, prometeu roubar Rodrigo Lima de Bressane – assistiu, com imenso interesse, ao banquete de duas horas e meia de duração. Sintético, convenhamos, se comparado a outro projeto da dupla – “A Longa Viagem do Ônibus Amarelo”, de mais de sete horas (2022).
Ao final, os aplausos foram calorosos. Que ninguém pense que aqui há público que resiste, chova ou faça sol, ao filme mais cabeçudo do mundo. Não! Em três (dos nove) dias tiradentinos, houve filmes que começaram com a sala abarrotada (o Cine Tenda, de 500 lugares, é o mais concorrido) e perderam parte de sua audiência. Foi o caso de “Girassol Vermelho” e de “Margeado”, o primeiro concorrente da Mostra Aurora.

O capixaba “Margeado”, estreia (a Aurora agora só aceita ‘opera prima’) de Diego Zon, é um filme atrevido. De trama rarefeita e duração exasperadora – 150 minutos (aqui há longas de pouco mais de 60 minutos, outros de 80, 90). Por isso, quase metade das cadeiras do imenso Cine Tenda foram abandonadas. Quem permaneceu, pôde concluir que o filme cumpre à risca a proposta enunciada pelos curadores Francis Wogner, Juliana Costa e Juliano Gomes: promover “abertura ao ‘erro’ como condição para a experimentação e a invenção”.
O protagonista, Dingue (Danilo Andrade), abandona sua vila de pescadores, quando a lama tóxica contamina o rio. Bota o corpo na estrada, montado numa motocicleta. Pelos caminhos irá, em sua longa deambulação, estabelecer diálogos e exercer trabalhos temporários. Em certos momentos, lembrará “Arábia” (Uchoa e Dumans, 2017).
Dezesseis personagens, interpretados por atores naturais e profissionais, aparecerão no percurso de Dingue. Só dois são familiares ao público – o baiano Antônio Pitanga e o paulistano Luciano Chirolli. Um libanês de expressão árabe (Etien Khouri) terá papel relevante. A natureza, soma de espaços verdejantes, morros e montanhas, maculados por pequenos povoamentos e estradas, aparecerá com sua força telúrico-vegetal.
Rodrigo Zon, também roteirista e comontador, conta com a vigorosa contribuição do fotógrafo Renato Ogata, que capta imagens de grande beleza e força documental. Sem nenhum exibicionismo. Aos concorrentes da Aurora serão atribuídos apenas quatro prêmios: melhor filme, melhor diretor, atriz e ator.
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