Nem a chuva impediu a plateia da Mostra Tiradentes de emocionar-se com “Milton Bituca Nascimento”
Foto © Leo Lara/Universo Produção
Por Maria do Rosário Caetano, de Tiradentes (MG)
O mais aguardado dos filmes da vigésima-oitava Mostra de Cinema de Tiradentes – “Milton Bituca Nascimento” – sofreu um revés. O domingo, que começara com sol radiante, foi encerrado sob águas caudalosas. A sessão, programada para o Cine Praça, ao ar livre, foi transferida para o Cine-Teatro Yves Alves, de capacidade bem menor.
A chuva, porém, não deteve o ânimo dos espectadores, que estavam em maior número fora da sala. O jeito foi avisar aos inconsoláveis moradores de Tiradentes e aos turistas, que sessão extra seria programada nessa segunda-feira, no cinema da Praça das Forras. Se não chovesse, claro.
Os que conseguiram entrar no Auditório Yves Alves depararam-se com superprodução de padrão internacional, comandada pela cineasta (e publicitária) Flávia Moraes e produzida em parceria pela Canal Azul e Gullane. Os produtores Larissa Prado e Fabiano Gullane subiram ao palco para apresentar “Bituca”. Por vídeo, a diretora gaúcha, radicada em Los Angeles, enviou calorosa mensagem ao público. E pediu união e solidariedade em momento sombrio. Ela, afinal, está nos EUA, onde Donald Trump implanta suas primeiras e intolerantes medidas anti-imigrantes e homoafetivos.
Milton Nascimento justificou sua ausência com carinhoso vídeo. E sólido argumento: aos 82 anos, soma forças para comparecer à cerimônia do Grammy, na qual concorre com o disco “Milton + Esperanza”, na categoria “melhor álbum de jazz com vocal”. A cerimônia acontece nesse domingo, dois de fevereiro, em Los Angeles. Na tela, o artista dirigiu palavras amorosas aos conterrâneos e mandou um sonoro e expansivo beijo a todos.
O filme começou com imagens grandiloquentes e depoimentos de grife. Wayne Shorter, Sergio Mendes e Quincy Jones, que partiram depois de suas respectivas gravações, enalteceram o mistério e as qualidades criativas do artista carioca, criado entre montanhas e vales de Minas, aprimorando sua voz em cavernas cheias de ecos. E, além de Três Pontas, firmou-se como talento único nas esquinas de Belo Horizonte e em andanças por cidades barrocas.
Não faltaram nomes internacionais de primeira linha para enaltecer a transcendência espiritual da criação de Bituca: Pat Mettheny, Paul Simon, Spike Lee, Esperanza Spalding (entre os estadunidenses), Carminho (Portugal) e Fito Paes (Argentina).
Narração forjada em texto redundante (da lavra dos gaúchos Marcelo Ferla e Flávia Moraes) oprime espectadores mais reflexivos. Mesmo vindo da voz experiente de Fernanda Montenegro. A montagem acelerada não deixa Milton cantar, com calma, as suas músicas. Até Elis Regina, em milagrosa interpretação de “Canção do Sal”, sofreu solução de continuidade. Tudo muito rápido.
Milton evocou a mãe biológica (uma das histórias mais lindas de sua octogenária existência) e a mãe adotiva, branca, que regressou do Rio, para Três Pontas, com “um filho negrinho”. Dessa segunda mãe, contou que ela estudara com Heitor Villa-Lobos, para desespero do marido ciumento. Mas narrou as duas histórias de forma telegráfica. E tome vistas aéreas de grandes metrópoles planetárias, nas quais o artista fez seu show de despedida. E fileira interminável de vozes incumbidas de decifrar o enigma Bituca.
Na segunda parte do filme, de 110 minutos, os brasileiros espalhados pelos muitos Brasis, entraram em campo. Um tímido Chico Buarque, sempre espirituoso, mal teve tempo de contemplar as belíssimas imagens dos dois, Milton e ele, cantando “O que Será, que Será”. Por sorte, em intervenção posterior, o autor de “Construção” poderia assegurar que Milton sempre mandou nele. E ele sempre obedeceu às ordens do amigo.
Caetano Veloso, Gilberto Gil, João Bosco (mineiro e devoto de Milton), Ivan Lins e Djavan representam a geração de ouro da MPB com calorosos testemunhos. As novas gerações brilham com Mano Brown, Criolo, Djonga, o dândi Zé Ibarra, Tim Bernardes, Dora Morelenbaum e Maria Gadu. Esta, em coro com Marilene Gondim e a cantora Simone, evoca momento sombrio da vida de Milton. Aquele em que ele, “pele e osso”, motivava insinuações de que estaria com Aids, em fase terminal. Décadas se passaram e Milton está, satisfeito, a caminho do Grammy internacional.
O filho adotivo de compositor, Augusto Nascimento, um dos produtores do filme, aparece com o pai, em caminhadas por Nova York. O filme parece encontrar momentos de paz. Mas a sofreguidão é retomada. A tela divide-se para abrigar mais imagens. Flávia Moraes joga no time oposto ao do saudoso documentarista Eduardo Coutinho. Este dava tempo aos seus interlocutores. Ela tem pressa, muita pressa (e é uma das montadoras do filme, junto com Laura Brum!). Ouvimos os músicos da banda contemporânea de Milton. Só feras. Depoimentos acelerados, picotados.
O tempo passa e, excitados e sôfregos, imaginamos que a turma do Clube da Esquina, tema de “Lô Borges, Toda Essa Água” e “Nada Será Como Antes, a Música do Clube da Esquina” — com os quais “Milton Bituca Nascimento” forma “trilogia involuntária” — não terão hora e vez.
Por sorte, terão. Beto Guedes entra em cena para contar que era beatlemaníaco e roqueiro. Não tinha interesse em um possível som jazzístico do “esquineiro” mais famoso das terras belorizontinas. Lô Borges, dessa vez longe de seus bem-humorados testemunhos presentes em seu filme-solo e no filme-coral de Ana Ripper, fala em tom contido sobre o amigo, parceiro, mestre e protetor. Márcio Borges sabe de tudo sobre a trajetória de Milton e brilha. Toninho Horta encanta e Wagner Tiso, iluminado, enaltece as virtudes musicais do cantor-compositor de Três Pontas.
Quantos depoimentos Flávia de Moraes gravou? A soma das vozes estadunidenses, da portuguesa Carminho, do portenho Fito Paes e dos muitos brasileiros deve constituir recorde entre os documentários musicais brasileiros.
Flávia fez um filme hagiográfico? Não. Há arestas na narrativa (o período da doença e as dores do racismo, que mobilizam também Djamila Ribeiro).
O filme ignora a participação de Milton no cinema. Se tomasse essa vereda, teria que ouvir o alemão (radicado nos EUA) Werner Herzog e o brasileiro Ruy Guerra (já que Carlos Alberto Prates Corrêa não está mais entre nós). O diretor de “Aguirre, a Cólera dos Deuses” é fã de Bituca e o convocou para o elenco de “FitzCarraldo” (1981). Já Ruy Guerra se antecipou. Convocou o artista para “Os Deuses e os Mortos” (1970). Prates escalou o conterrâneo para o roseano “Noites do Sertão” (1985).
Não há de faltar oportunidade para novas realizações cinematográficas sobre Milton. A Canal Azul e a Gullane preparam cinebiografia ficcional de Milton, que terá o livro de Márcio Borges, “Os Sonhos Não Envelhecem”, como matriz. Depois, pretendem produzir série (também ficcional) sobre o artista.
Fabiano Gullane avisa que “Milton Bituca Nascimento” chegará ao circuito exibidor no próximo dia 20 de março. E que o público pode prestigiar, na Globoplay, a série dedicada ao artista e a seu Clube da Esquina.
E haverá público para prestigiar o longa documental de Flávia Moraes?
A se julgar pela sessão de “Milton Bituca Nascimento” em Tiradentes, sim. Apesar do excesso de ‘cabeças falantes’, da falta de músicas inteiras interpretadas pelo artista e do ritmo excessivamente picotado da montagem, o público adorou. Boa parte dele ficou para o debate, iniciado perto da meia-noite.
E, não podemos negar, o filme tem um final arrebatador. Quem há de resistir a um alegre Bituca, em seu quarto, ouvindo, embevecido, a voz de Ângela Maria entoar “Babalu” (1939, Margarita Lecuona)? E, feliz, eufórico, comentar: “temos que respeitar essa mulher!”.