“Família”, drama social italiano construído com mise-en-scène de thriller e final eletrizante
Por Maria do Rosário Caetano
Pouco se deve revelar da trama de “Família”, novo longa-metragem do realizador italiano Francesco Costabile, que acaba de chegar ao circuito comercial brasileiro, sem as merecidas pompas e circunstâncias. E isso acontece porque o país acompanha, com sofreguidão, a Safra Oscar, uma das mais – senão a mais – midiática e polêmica das 97 edições da estatueta hollywoodiana.
A pauta gira em torno de “Ainda Estou Aqui” e de sua protagonista, a atriz Fernanda Torres, candidatos brasileiros ao Oscar. E, agora, em clima de escândalo, olhares se fixam nas confusões causadas pela loquacidade (e escrita digital) da espanhola Karla Sofía Gascón, a “Emilia Pérez” de Jacques Audiard.
Quem encontrar tempo para assistir ao peninsular “Família” será regiamente recompensado. O filme baseia-se em livro testemunhal de Luigi Celeste (escrito em parceria com Sara Loffredi), intitulado “Non Sarà Sempre Così – La Mia Storia di Rinascita e Riscatto Dietro le Sbarre” (“Não Será Sempre Assim – A Minha História de Renascimento e Resgate por Detrás das Grades”).
Na Itália, o filme, inspirado em personagens e situações reais, trouxe à tona assunto familiar a milhares de cidadãos, pois a trajetória de “Família” fôra tema de ampla cobertura da imprensa policial. No Brasil, nada sabemos sobre Luigi Celeste, um jovem que militou em grupos fascistas e, por este motivo – e outros (que aqui não revelaremos) – passou meses (depois anos) na cadeia.
Tudo começa com o cotidiano de uma bela mulher, Lícia (Barbara Ronchi, do bellocchiano “O Sequestro do Papa”), de seu marido Franco (Francesco Di Leva) e seus dois filhos pequenos (Francesco De Lucia, o Gi, de 9 anos, e Stefano Valentini, o Alê, de 11). O quarteto vive sob tensão. O marido espanca a esposa e as crianças não sabem o que fazer.
Dez anos depois, já rapazes, Luigi, o Gi (Francesco Gheghi, premiado na mostra Orizzonti, no Festival de Veneza 2024), e seu irmão mais velho, Alessandro (Marco Cicalesi), seguem seus caminhos. Gi milita num grupo “camisa negra”, comandado pelo fascista Fulvio (Enrico Borello), e namora a jovem Giulia (Tecla Insolia). Alê trabalha e curte, enfezado, suas amarguras. Os dois moram com a mãe, faxineira, num conjunto habitacional popular.
A ausência do pai, que abandonara esposa e filhos por quase dez anos, é interrompida quando, depois de período no cárcere (por assalto à mão armada e tiro num policial), ele regressa. Possessivo, autoritário, descompensado, o ex-presidiário vai invadir a vida de cada integrante de sua “Família”.
O que veremos, ao longo de duas horas, é um drama sobre violência doméstica, com foco nas fragilidades de uma mulher que acaba aceitando, muitas vezes em seu leito, um marido espancador. E as consequências da presença desse pai violento na formação de seus filhos.
Francesco Costabile, de 44 anos, construirá poderosa narrativa, muito articulada e em diálogo com o terror. Não conseguiremos despregar os olhos da tela. Os dez minutos finais são arrebatadores. Somar drama político (retrato de jovens militantes da extrema-direita), drama doméstico (magnífica a sequência em que a namorada de Luigi vai almoçar com a “Família”) e thriller psicológico, com tamanha segurança, não é para qualquer um. Mas ninguém pense que Costabile apela para sustos e outros procedimentos comuns aos filmes de terror. Não!
O que ele faz é estabelecer atmosfera de tons sombrios, que nos coloca frente a frente com nossas próprias fraquezas. Por que Lícia, além de aceitar o marido espancador em sua cama, se cala quando os policiais perguntam sobre sua real situação? Luigi, o filho caçula, até tomara coragem e procurara os carabinieri para denunciar o pai e solicitar providências. Mesmo sabendo que poderia pagar caro por tal ousadia.
Claro que Lícia guardava na memória experiência terrível. Quando aceitara, motivada por autoridade escolar, a denunciar o marido, ela perdera a guarda temporária dos filhos. O Estado, com suas leis, entendia que assim deveria proceder. Não é facil romper os ciclos de abuso gerados por um pai violento. Costabile nos mostra isso sem nenhum proselitismo. Mostra, cinematograficamente, com imagens e sons que promovem atrevida soma de gêneros e nos possibilitam experiência estética (e política) das mais instigantes.
Familia
Itália, 2024, 121 minutos
Direção: Francesco Costabile
Roteiro: Vittorio Moroni e Francesco Costabile
Elenco: Francesco Gheghi, Barbara Ronchi, Francesco Di Leva, Marco Cicalese, Francesco De Lucia, Tecla Insolia, Enrico Borrello, Giancarmine Ursillo, Carmelo Tedesco, Edoardo Paccapelo
Fotografia: Giuseppe Maio
Montagem: Cristiano Travaglioli
Direção de arte: Luca Servino
Figurino: Luca Costigliolo
Música: Valerio Vigliar
Distribuição: Imovision
Classificação: 16 anos
FILMOGRAFIA
Francesco Costabile (Itália, 30 de setembro de 1980)
2001 – “La Sua Gamba” (curta)
2003 – “Ciao Alberto” (segmento de “Addio Mia Bella Signora”)
2003 – “Sintonie di Primavera” (segmento de “HZ”)
2004 – “L’Armadio (média-metragem)
2006 – “Dentro Roma” (curta)
2009 – “L’Abito e Il Volto” (doc, longa)
2013 – “La Carrera” (codireção, longa)
2014 – “Piero Tosi 1690, L’Inizio de Un Sécolo” (curta, doc)
2020 – “In Un Futuro Aprile” (ficção, longa)
2022 – “Una Femina” (ficção, longa)
2024 – “Família” (ficção, longa)