“Meu Verão com Glória” soma afetos e medos de criança francesa que ama sua babá cabo-verdiana
Por Maria do Rosário Caetano
“Meu Verão com Glória”, segundo longa-metragem da francesa Marie Amachoukeli, é um pequeno (e encantador) invento fabular. Um filme capaz de somar muitas e cativantes qualidades, sem nenhuma pregação pedagógica ou edificante. A sutileza é sua marca.
Em cartaz desde o último dia 20 de fevereiro, “Àma Gloria”, seu nome original, circula em torno do amor de uma criança de seis anos, branca e francesa, por sua babá negra e cabo-verdiana. E imanta nosso olhar pelo uso de cenas animadas, que existem sem outro propósito que não seja ampliar a atmosfera misteriosa desse conto de aparência tão simples.
A narrativa virá temperada – bem ao gosto de nosso tempo – com ingredientes do cinema de horror. Ou do suspense. Igualmente baseados na sutileza. A quilômetros luz de filmes do gênero, aqueles similares ao superestimado “A Substância” (uma das escribas do New York Times qualificou o longa, que poderá render o Oscar de melhor atriz a Demi Moore, de “nojento”).
Que ninguém espere, ao assistir a “Meu Verão com Glória”, uma adocicada história de amor de uma criancinha europeia por uma babá africana. Uma criancinha, registre-se, prodígio. O que sua intérprete (Louise Mauroy-Panzani) faz em cena é espantoso. A menina, feinha e com enormes óculos de grau, expressa complexos sentimentos, chora (e como chora!) e nos comove. Sem que haja qualquer resquício de apelação.
O filme vai muito além de uma história centrada em garotinha que cativa nosso olhar. Simples na aparência, “Meu Verão com Glória” constrói-se com nuances. Expõe sentimentos complexos (e contraditórios) de seus poucos personagens. Convidado para a abertura da Semana da Crítica, no Festival de Cannes de 2023, dali em diante, essa enxuta narrativa (apenas 84 minutos) só fez crescer junto aos afetos de seu público. Ninguém o assistirá com desinteresse. A não ser que tenha coração de pedra.
Tudo começa em solo francês. Cleo (a inacreditável Louise Mauroy-Panzani!), de seis anos, orfã de mãe e filha de pai carinhoso (Arnaud Rebotini), é criada pela babá Glória (Ilça Moreno Zego), uma cabo-verdiana na diáspora. Ela deixou os próprios filhos em sua ilha africana, para cuidar de filhos de outros, na Europa.
Cleo é completamente apaixonada por Glória, essa dedicada cuidadora, que preenche a ausência materna da pequena órfã. Um dia, porém, chega de Cabo Verde a notícia do falecimento da avó de Fernanda (Abnara Gomes Varela) e César (Fredy Gomes Tavares), os filhos de Glória. Para completar, Fernanda está grávida e prestes a ter o bebê. Cleo inquieta-se, mas aceita a partida da amada babá, desde que voltem a se encontrar. Que passem juntas um período de férias. A menina irá, na hora estipulada pelo pai, para o distante arquipélago de Cabo Verde. Vivenciará o verão da verdadeira despedida.
Ao chegar ao pequenino país africano (apenas 500 mil habitantes), Cleo conhecerá um mundo novo, uma língua nova (o português crioulo falado na terra de Cesária Évora). A filha adolescente de Glória estará indócil com a proximidade do parto. Já o menino César mostra-se agastado com a mãe, que deixara os filhos com a avó para ir viver na França. A paisagem, de formação vulcânica, é desafiadora. E muito bem explorada por Marie Amachoukeli e sua diretora de fotografia Inès Tabarin.
O verão de Cleo com Glória e seus filhos irá desdobrar-se sem apelações sentimentais. A menina viverá experiências desafiadoras. César e Fernanda continuarão trazendo inquietações à mãe, que, ainda por cima, cuida, com dinheiro rarefeito, das obras de um pequeno hotel. Fruto de seu labor e economias europeias.
Glória, em notável desempenho de Ilça Moreno Zego (todos, no filme, são atores naturais), enfrenta os problemas com garra única. Ela sabe o que já passou para ajudar os filhos e investir em seus futuros. A chegada do bebê de Fernanda também inquietará Cleo. A garotinha teme perder espaço no coração da agora vovó Glória.
E nós, os espectadores, seremos tomados por estado de suspensão. César e seus amigos são donos da ilha, conhecem seus mistérios, pulam no mar de alturas que, do ponto-de-vista de uma criança de seis anos, podem ser comparados aos desafios dos mergulhadores de Acapulco, no México.
Nada nos afligirá mais que a presença de Cleo, nossa pequenina “mergulhadora de Cabo Verde”, frente ao desafio das águas atlânticas. E são esses momentos de sutil “horror-suspense”, que tiram o filme da condição de mais um “longa-fofura protagonizado por garotinha prodígio”. Imperdível.
Meu Verão com Glória | Àma Gloria
França, 2023, 84′
Direção e roteiro: Marie Amachoukeli
Elenco: Louise Mauroy-Panzani (Cleo, a menina francesa), Ilça Moreno Zego (Glória, a babá caboverdiana), Abnara Gomes Varela (Fernanda), Fredy Gomes Tavares (César), Arnaud Rebotini (o pai de Cleo), Domingos Borges Almeida (Joachim)
Fotografia: Inès Tabarin
Animações: Marie Amachoukeli e Pierre-Emmanuel Lyet
Montagem: Suzana Pedro
Trilha sonora: Fanny Martin
Produtora: Lilies Films a mesma dos longas de Céline “Tomboy” Sciamma)
Distribuição: Filmes do Estação
Classificação: 12 anos