Mário de Andrade vive experiências de turista aprendiz numa Amazônia recriada em estúdio por Murilo Salles
Por Maria do Rosário Caetano
Murilo Salles, diretor de fotografia e realizador de quase duas dezenas de longas-metragens, entre eles, os obrigatórios “Nunca Fomos Tão Felizes” e “Como Nascem os Anjos”, recriou magicamente em estúdio a Amazônia visitada por Mário de Andrade, no final da década de 1920.
Quem assistir ao filme, que estreia nessa quinta-feira, 27 de março, no circuito de arte brasileiro, há de sentir-se, graças aos recursos da alta tecnologia cinematográfica, na companhia do “Turista Aprendiz”.
Recursos os mais diversos (alguns oferecidos pela inteligência artificial) têm permitido, a cada novo dia, ousadias de cineastas espalhados pelo mundo. Muitos deles trocam cenários reais pelos estúdios em busca de economia financeira. Outros, por inquietações estéticas somadas à economia e ao conforto dos espaços fechados.
Ainda se valoriza muito o cinema feito em locações reais. Mas inventores como o norueguês Lars von Trier a muitos encantou com filmes como “Dogville” (2003) e “Manderlay” (2005). Em sintonia fina com o dramaturgo alemão Bertoldt Brecht, o dinamarquês definiu os cenários de sua anunciada (mas não concluída) Trilogia “USA – Land of Opportunities”, com riscos de giz no chão. Eles simbolizavam paredes e delimitavam os espaços onde moviam-se os personagens.
Eduardo Coutinho, depois de realizar documentários em favelas cariocas (como “Santo Forte” e “Babilônia 2000”), resolveu adotar espaços fechados como cenário de alguns de seus filmes mais festejados. Em “Edifício Master”, fez de um apartamento uma espécie de estúdio. Em “Jogo de Cena”, sua mais ousada e inovadora criação, colocou suas personagens e as atrizes que as “representavam” dentro de quatro paredes. Seguiu em “estúdio”, lançando mão de uma singela cadeira, em “As Canções” e “Últimas Conversas” (seu derradeiro filme).
Ruy Guerra, por sua vez, fez, nos últimos anos, do espaço fechado a sua área de ação (em absoluto contraste, por exemplo, com “Os Fuzis”, rodado em Milagres, no sertão da Bahia, e “Kuarup”, no Parque do Xingu). “Quase Memória”, “Aos Pedaços” e “A Fúria”, este fecho da Trilogia dos Fuzis, usaram o estúdios como estímulo de criação poética. A experiência alcançou no ainda inédito “A Fúria” (construído com a técnica do “video mapping”) seu esplendor.
Guel Arraes, em parceria com Flávia Lacerda, realizou “O Auto da Compadecida 2” num estúdio. E não mais na “Roliúde Nordestina”, a cidade de Cabaceiras, no sertão baiano. O público não se incomodou. Tanto que mais de 4 milhões de espectadores pagaram ingresso para ver as aprontações de João Grilo e Chicó. Mas os moradores do sertão paraibano lamentaram a escolha.
Que técnica Murilo Salles utilizou em “Mário de Andrade, o Turista Aprendiz”?
Ele explica: “Usei uma câmara, fundos verdes, recortei tudo no Première, um programa de edição que se consegue quase gratuitamente, se for estudante, e contei com uma equipe muito parceira, ótimos atores e Mário de Andrade”.
“Durante 20 anos” – relembra – “fiz a publicidade de ponta brasileira, quando ela era uma das melhores do mundo. Truquei muito!… (de Truca). Painel Led e Vídeo Mapping (este, uma projeção de imagem em larga escala) são, vamos lá, ferramentas, que qualquer filme com dinheiro poderá utilizar”.
No “Turista Aprendiz” – detalha – “usei projeção em vídeo para simular uma floresta, iluminei com monitores que reproduziam um vídeo colorido e geravam mutações loucas das cores da cena”. Tanto que, “aqueles que assistirem ao filme vão perceber uma forte pesquisa de linguagens, utilizada para dar conta da criatividade estética e poética de Mário. Ele nos impunha, por suas qualidades e inteligência, algumas ousadias. Queríamos fazer um filme sobre ele e que dialogasse com ele”.
Murilo Salles define “O Turista Aprendiz” como “uma livre adaptação das anotações feitas pelo escritor durante sua viagem pelo Rio Amazonas, em 1927, anteriores, portanto, à publicação de sua obra mais consagrada, ‘Macunaíma’, de 1928”.
“O cinema, depois da saída pela porta da fábrica e do trem parando na Estação” – pondera o cineasta —, “veio para ficar dentro de um estúdio”. Que, afinal, “era (e continua sendo) um local para proteger e controlar a ‘produção’. Os grandes estúdios se impuseram e cada estúdio foi crescendo de tamanho. Num estúdio não chove, não há interferências sonoras, filma-se com horário de trabalho e ponto batido”.
O penúltimo longa-metragem de Murilo Salles, “Uma Baía”, lançado ano passado, foi integralmente realizado em locações naturais, na Baía da Guanabara. Não a dos cartões postais, mas a dos mangues e espaços pouco visitados ou vistos. Para reconstruir a viagem de Mário de Andrade à Amazônia, ele optou por outro caminho.
“O cinema”, relembra, “sempre usou cenários reais, Buster Keaton é um exemplo. A questão do uso, ou não, do estúdio, não deve significar, em princípio, nada além de escolhas de produção. Telenovelas são feitas em estúdio, filmes (como ‘O Auto da Compadecida 2’) são feitos em estúdio, filmes experimentais também o são. A indústria usa o estúdio como ferramenta facilitadora da produção”.
“O que interessa é o que você vai fazer no estúdio”, reflete o cineasta. “O que você quer com ele, quando decide usá-lo?” Afinal, “o que interessa a nós, cineastas, é nossa necessidade de construir visualmente nossas narrativas, usar o espaço para a realização de um pensamento poético-estético”.
Murilo Salles lembra que “Mário de Andrade definia ‘Macunaíma’ como uma narrativa rapsódica. Não sei se concordo com ele, pois vejo o livro como uma experiência muito mais revolucionária que isso!”. Mesmo assim, “aproveitei essa deixa para narrar história contada num livro escrito 16 anos depois da viagem pelo Amazonas, baseado em notas esparsas. Posso concluir que esse relato se realizou na intersecção entre a memória e a imaginação”.
Esta compreensão foi usada pelo cineasta-roteirista “como norte magnético ao estruturar a narrativa, que, em certas cenas, até se confunde com um documentário e, em outras, nas quais procuro chegar ao núcleo expressivo da sensorialidade do Mário, são puras abstrações poéticas”.
“É aí, no campo das abstrações poéticas”, arremata, “que exerço minha capacidade criativa, plástica, que vem mesclada pelas narrativas do escritor modernista. Assim construí meu processo de trabalho”.
Para realizar seu décimo-quarto longa-metragem, Murilo Salles contou com equipe artística e técnica de grande valor e disposta a colaborar com sua atrevida transcriação do livro “O Turista Aprendiz”.
Na versão cinematográfica do relato de Mário de Andrade, Murilo somou fatos documentais sobre a vida do escritor à sua aventura amazônica. Aventura que ele só colocaria no papel em 1943. E só seria publicada em livro postumamente, em 1970.
A viagem se deu em três países — o Brasil de Belém do Pará, do Rio Amazonas e da Madeira-Mamoré, o Peru, região de Iquitos, a Bolívia, e, na volta, a Ilha do Marajó. E, mais uma vez, a cidade de Belém, de onde regressaria ao Rio. E, deste, de trem, rumo à sua São Paulo.
O elenco de “O Turista Aprendiz” é encabeçado por Rodrigo Mercadante, de grande semelhança física com o escritor paulistano (1893-1945) e conta com a participação de Lorena Silva, que interpreta a milionária Dona Olívia Guedes Penteado, que se faz acompanhar das jovens Margarida Guedes Nogueira, a Mag (Dora Freind), e Dulce do Amaral Pinto, a Dolur (Dora de Assis). Ao longo de 93 minutos e muitas surpresas visuais, acompanharemos as andanças do quarteto por matas, rios e enfadonhas (para o inquieto Mário) solenidades cívicas.
No ano em que se deu a viagem, 1927, o cinema se preparava para abandonar a era silenciosa. Os EUA produziriam, dois anos depois, “O Cantor de Jazz”, com Al Jolson. Num filme guiado pela liberdade criativa, Murilo Salles utilizará imagens de “O Homem com uma Câmera”, de Dziga Vertov (lançado dois anos depois da epopeia andradiana), “Não Percas Tempo“, com Willian Fairbanks, e fragmentos da obra documental do Major Luiz Thomaz Reis, o cinegrafista de Rondon.
“Mário de Andrade, o Turista Aprendiz” foi realizado em apenas 18 dias e somou aos recursos do cinema ficcional, em sua montagem final, o cinema de animação, o documentário e a performance. O resultado é desafiador e deve encantar às novas gerações, plugadas nas grandes mudanças desse nosso tempo de incessantes revoluções tecnológicas. E aos estudiosos e amantes da ampla herança legada à posteridade pelo autor de “Amar, Verbo Intransitivo”.
O filme consumiu orçamento de apenas 650 mil reais. O que se vê na tela é, portanto, um verdadeiro milagre.
Mário de Andrade, o Turista Aprendiz
Brasil, 2025, 93 minutos, 14 anos
Direção, roteiro, fotografia e produção: Murilo Salles
Elenco: Rodrigo Mercadante, Dora Freind, Dora de Assis, Lorena Silva, Pedro Miguel e Zahy Guajajara
Montagem: Pedro Rossi
Som: Felipe Luz
Direção de arte: Mina Quental e Jair de Souza
Distribuição: Cinema Brasil Digital
FILMOGRAFIA
Murilo Salles, cineasta, roteirista, produtor e diretor de fotografia (“Dona Flor”, “Licão de Amor”, “Tabu”, “Eu Te Amo” e “Árido Movie”), nascido no Rio de Janeiro-RJ, em 2 de outubro de 1950.
2025 – A Vida de Cada Um (ficção, em finalização)
2025 – Mário de Andrade, o Turista Aprendiz (híbrido)
2019 – Uma Baía (doc)
2015 – Passarinho Lá de Nova Iorque (doc)
2018 – Alegorias do Brasil (série de TV)
2014 – O Fim e os Meios (fic)
2014 – Aprendi a Jogar Com Você (doc)
2008 – Nome Próprio (fic)
2006 – O Espetáculo da Delicadeza (doc)
2004 – És Tu Brasil (doc)
2003 – Seja o que Deus Quiser (fic)
1996 – Como Nascem os Anjos (fic)
1995 – Todos os Corações do Mundo (doc)
1989 – Faca de Dois Gumes (fic)
1985 – Nunca Fomos Tão Felizes (fic)
1978 – Estas São as Armas” (doc, média-metragem)