Transcendência espiritual da voz de Milton Nascimento chega aos cinemas na superprodução “Bituca”

Por Maria do Rosário Caetano

“Milton Bituca Nascimento”, longa documental de Flávia Moraes, chega aos cinemas nessa quinta-feira, 20 de março, para provar — se preciso fosse — a grandeza e transcendência espiritual da voz do artista mineiro.

Superprodução de padrão internacional, fruto de parceria entre a Canal Azul e a Gullane, “Bituca” soma ‘cabeças falantes’ do naipe de Quincy Jones, Wayne Shorter, Pat Mettheny, Paul Simon, Spike Lee, Esperanza Spalding (entre os estadunidenses), Carminho (Portugal), Fito Paes (Argentina) e Sergio Mendes, niteroiense radicado nos EUA.

Soma, também, a linha de frente da MPB: Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, João Bosco, Ivan Lins, Djavan. Sem esquecer as novas gerações — Mano Brown, Criolo, Djonga, Zé Ibarra, Tim Bernardes, Dora Morelenbaum e Maria Gadu.

O filme, felizmente, não resulta em deslumbrada hagiografia. Temas difíceis como o racismo afloram. Saberemos que, na mineira Três Pontas — onde o filho adotivo iria viver com seus pais brancos —, muitos revelariam espanto ao ver o casal regressar da cidade grande com “um filho negrinho”.

A cantora Simone e a manager Marilene Gondim lembrarão momento difícil atravessado pelo artista. Com problemas de saúde, “pele e osso ”, ele teria que conviver com insinuações de que estaria “com Aids, em fase terminal”. Hoje, aos 82 anos, Milton segue lúcido, amoroso e, como qualquer mortal, enfrentando males como o diabetes e o Parkinson. Mesmo assim, disposto a fruir, num carro carnavalesco, cercado de amigos, a grande homenagem a ele prestada pela Portela, da qual foi tema-enredo.

Um filme sobre Bituca, sem a participação da turma do Clube da Esquina, seria impensável. Claro que a proposta de Flávia Moraes e seus produtores não se restringe aos limites das montanhas de Minas. Além da grandeza do artista, reconhecida no Brasil inteiro, a tônica recai sobre o reconhecimento do mundo. Em especial do centro hegemônico, referência de nossos tempos, os EUA. Que dirigiriam a Milton os aplausos merecidos.

Flávia Moraes, radicada em Los Angeles (agora se afastando do país sob gestão intolerante de Trump), teve acesso a nomes de imenso peso no showbiz da Costa Leste e Oeste. Até o cineasta Spike Lee fez questão de dar seu testemunho sobre o criador do “Milagre dos Peixes”. Ele e grandes músicos de jazz, inclusive aqueles que fazem a “cozinha” das gravações de álbuns estrelados.

Como já foram feitas série (para o Canal Brasil) e dois filmes sobre a “trupe esquineira” — “Lô Borges, Toda Essa Água” e “Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina” — Flávia Moraes preferiu não apostar na redundância.

“Milton Bituca Nascimento” abrirá espaço para Beto Guedes lembrar que era “beatlemaníaco e roqueiro”. Não mantinha afinidades com as aventuras jazzísticas de Bituca. Nenhum problema, pois o compositor de voz privilegiada, apurada nas cavernas e igrejas barrocas de Minas, também apreciava os rapazes de Liverpool.

Lô Borges e seu irmão Márcio Borges (este, autor de importante livro sobre o Clube da Esquina), Toninho Horta e Wagner Tiso darão seus testemunhos. E destacarão as virtudes do artista e amigo. Tiso, grande pianista e arranjador, gostou do filme, mas ponderou, em declaração a Pedro Só, (Estadão, 19/03/2025), que a narrativa “fala bem da importância de Milton”, já “da música, nem tanto”.

O grande músico mineiro está certíssimo: faltam músicas inteiras cantadas pelo artista ou por seus intérpretes. A montagem do filme, assinada pela própria diretora, em parceria com Laura Brum, é excessivamente picotada, sôfrega. Há tanto por mostrar, tantos para dar seus testemunhos, que o jeito é sacrificar os números musicais. A tesoura vai cortar até Elis Regina, em milagrosa interpretação de “Canção do Sal”.

Outro momento, que poderia resultar sublime, também foi enxugado. Chico Buarque, amigo e parceiro de Milton, depois de garantir que o mineiro manda nele (“e eu obedeço”), foi convidado a rever imagens dos dois cantando “O que Será, que Será”. Só foi possível fruir breve fragmento.

O filme só apresentará um momento de paz, quase contemplativo. Aquele em que Augusto Nascimento, filho adotivo de compositor e um dos produtores de “Bituca”, passeia com o pai por um tranquilo espaço da feérica Nova York. Mas, a sofreguidão voltará, pois a montagem se deseja em clima de eterno frenesi.

O documentário utiliza, sem a menor necessidade, narração em off de Fernanda Montenegro. O texto, escrito pelos gaúchos Marcelo Ferla e Flávia Moraes, soa redundante. Claro que a voz calorosa da atriz acabará seduzindo o espectador. Mas nada acrescentará. Por sorte, o uso de tal recurso será breve.

Como “Milton Bituca Nascimento” passa a compor “trilogia involuntária” com os documentários de Rodrigo Oliveira e Vânia Catani (“Lô Borges”) e de Ana Rieper (“Nada Será Como Antes”), nada melhor que, terminada a sessão em tela grande, fãs do Clube da Esquina correrem para o streaming. No Apple TV poderão assistir à saga do bem-humoradíssimo Lô, um verdadeiro “ator-comédia”, e à saga, de alta potência musical, de “Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina”. Quem ainda tiver sede de boa música, aquela gerada pelos esquineiros, poderá ouvir os muitos álbuns da frondosa fonte sonora das Gerais. E assistir à série “Milton e o Clube da Esquina”.

 

Milton Bituca Nascimento
Brasil, 2025, 110 minutos, 10 anos
Direção: Flávia Moraes
Roteiro: Marcelo Ferla e Flávia Moraes
Fotografia: Pedro Rocha
Montagem: Laura Brum e Flávia Moraes
Direção musical e trilha original: Victor Pozas e Rafael Langoni
Produtores: Augusto Nascimento, Ricardo Aidar, Larissa Prado, Andre Novis, Caio Gullane, Fabiano Gullane
Distribuição: Gullane+

 

NO STREAMING

.  “Lô Borges, Toda Essa Água”, de Rodrigo Oliveira e Vânia Catani (2023)
Longa documental, 88 minutos
Na Apple TV

. “Nada Será Como Antes, A Música do Clube da Esquina”, de Ana Rieper  (2024)
Longa documental, 79 minutos
Na Apple TV

. Milton e o Clube da Esquina (2020)
Série dirigida por Vítor Mafra, em seis capítulos de 30 minutos cada
No Canal Brasil e Globoplay

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