“Homem com H” chega aos cinemas com paixão, fúria, homoerotismo, muita música e disposição para romper a barreira do milhão de espectadores
Foto © Marina Vancini
Por Maria do Rosário Caetano
Não há, nesse momento, nenhum filme brasileiro no “Top 10” das melhores bilheterias do Boletim Filme B. Ou seja, depois do sucesso de “Ainda Estou Aqui” e “O Auto da Compadecida”, veio um tempo de estio. Uma entressafra.
Tudo indica, porém, que “Homem com H”, a cinebiografia de Ney Matogrosso – pré-estreias pagas nessa quarta-feira, 30 de abril, estreia em mais de 700 salas nesse feriado de Primeiro de Maio –, vai retomar o diálogo com o grande público. E romper a barreira do milhão de ingressos.
O filme, que narra a história do “Homem com H”, de sua infância interiorana até o reconhecimento nacional, é vigoroso e atrevido. E progressista ao focar a voz privilegiada e a homoafetividade de seu protagonista, vivido pelo ator Jesuíta Barbosa.
Esmir Filho, de 42 anos, diretor dos cults “Os Famosos e os Duendes da Morte” e “Alguma Coisa Assim” – e do pretensioso (e equivocado) “Verlust” –, chegou para dar um nó na cabeça de quem acompanha sua carreira de realizador de curtas, séries e só três longas-metragens.
Saiu direto de filmes pequenos (e de fracasso artístico-e-comercial — “Verlust”, que tinha até o chileno Alfredo Castro no elenco!) para a construção de narrativa das mais envolventes. Bem interpretada, com fotografia em cores quentes e calorosas, cenografia e figurinos de primeira, montagem ritmada e, o que é melhor, com 17 canções (16 brasileiras e uma internacional, “Nature Boy”) em sua trama de 130 minutos (que voam, como os pássaros do Pantanal).
A trilha do quarto longa-metragem de Esmir Filho vai, óbvio, dos sucessos dos Secos & Molhados (“Sangue Latino”, “Rosa de Hiroshima”, “Vira”) à apaixonante “Réquiem para Matraga”, de Geraldo Vandré; de “Casinha Pequenina”, que o jovem Ney cantava no coral da Escola de Música de Brasília, a “O Mundo é um Moinho”, de Cartola, desaguando na hoje controvertida “Homem com H”, forró de Antônio Barros e Cecéu, e na mobilizadora “Eu Quero Botar meu Bloco na Rua”, de Sérgio Sampaio.
O alternativo Esmir Filho, depois do tombo com “Verlust”, soube dialogar com a poderosa produtora Paris Entretenimento e formatar filme capaz de somar as características do cinema espetáculo com significativos valores artísticos. O resultado é surpreendente.
Espetáculo, sim! Cinebiografia do menino Ney, passando pelo adolescente que serviu à Força Aérea, o adulto que quebrou tabus, até chegar ao octogenário cantor (ele tem 83 anos e a mãe, viva, 103!!). E está a todo vapor, magro, bonito, bem-humorado e cantando com raro vigor. Tanto que o filme termina com cenas reais de um bicho que não sabe viver longe dos palcos.
Espetáculo cinebiográfico, registre-se, não esconde a homoafetividade do artista e de seu entorno, seu louco amor vivido com o namorado Cazuza e outros parceiros, os anos da epidemia da Aids, a paixão pela natureza e pelas águas límpidas que correm em seu sítio-fazenda em Mato Grosso do Sul.
Quem acompanha a relação do “Homem com H” com o cinema – sua trajetória está documentada em diversos filmes (destaque para “Olho Nu”, de Joel Pizzini) – há de se perguntar: mas o que essa cinebiografia ficcional tem de novo para mostrar?
Tem muito. O filme, roteirizado pelo próprio Esmir Filho, mergulhará em temas até hoje pouco aprofundados – a relação de Ney com o pai, militar durão (interpretado por Rômulo Braga), que não queria, por nada desse mundo, um filho homossexual dentro de casa, com a mãe compreensiva (Hermila Guedes), a paixão por Cazuza (Julio Reis), omitida na cinebiografia do autor de “Exagerado”, as mortes sucessivas de amigos vitimados pela Aids, incluindo o companheiro de 13 anos, Marco de Maria (Bruno Montaleone).
Sem esquecer, jamais, que, antes de tudo, Ney Matogrosso é um intérprete de voz privilegiada, que vive para cantar. O que ele fará na exata medida de seu talento.
Jesuíta Barbosa, ao interpretá-lo, jamais ousaria substituir a voz do artista. Nos diálogos, sim, mas na hora dos trinados, quem canta é Ney. Em coletiva de imprensa, no Cine Marquise, em São Paulo, o cantor elogiou os movimentos labiais do ator cearense-pernambucano e revelou que “foi obrigado” (risos) a dublar seu intérprete. Como assim?
Ney explicou: “Jesuíta cantou ‘Casinha Pequenina’ no Coral da Escola de Música de Brasília. Na hora da finalização do filme, eu o dublei com minha voz”. E assim se deu em outros momentos da narrativa. Inclusive aquele em que Ney Matogrosso canta a mais bela e aliciante das canções da trilha sonora de “A Hora e Vez de Augusto Matraga”, que Vandré compôs para o filme de Roberto Santos, lançado em 1965.
A Paris Entretenimento estruturou uma produção de R$18 milhões (mais de US$3 milhões). Quantia significativa para uma produção brasileira (estima-se que “Ainda Estou Aqui” tenha custado US$10 milhões, sem nenhum investimento público, só privado).
Na coletiva paulista de “Homem com H”, a produtora Verônica Stumpf detalhou o orçamento do filme: “60% vieram de empresas privadas e de aportes públicos, os outros 40% da Paris, que acreditou e apostou no projeto desde o primeiro momento”. E não mediu esforços para viabilizá-lo, buscar direito de uso de cada música (fonograma) desejada por Esmir e Ney Matogrosso, de cada cenário, cada peça do figurino, cada locação. “O resultado” – disse, orgulhosa, a produtora – “está visível em cada instante do filme”.
Ney, ao longo de “Homem com H”, mostra que um dos esteios de sua vida foi “confrontar o autoritarismo”, fosse do pai, de parte da sociedade ou do Estado (armado ou desarmado). E Esmir Filho, em sintonia com nosso tempo, pagou pedágio. Fez questão de contextualizar a gravação do forró de Barros e Cecéu. Mas o fez sem nenhum didatismo.
Pela versão da cinebiografia ficcional de Ney Matogrosso, o artista, de início, incomodou-se com versos que gritavam “Nunca vi rastro de cobra/ Nem couro de lobisomem/ Se correr o bicho pega/ se ficar o bicho come/ Menino, eu sou é homem/ Menino, eu sou é homem/ (…) Ah, Maria, diz que eu sou/ Maria diz que eu sou/ Sou Homem com H/ E como sou”. O produtor Marco Mazzola, poderoso fabricante de hits populares, teve que insistir muito para convencer o artista. Será?
Naquele tempo (começo da década de 1980), “Homem com H”, que fora gravada em 1974 (por Os 3 do Nordeste), não causava a ‘espécie’ que pode causar hoje. Mas Ney garantiu, convicto, que tudo que está no filme é verdade. Foi vivenciado por ele.
Então, o repertório de Vandré fazia parte do cotidiano do jovem Ney? Ou a presença de “Réquiem para Matraga” é uma homenagem dos cinéfilos Esmir Filho e Ney Matogrosso ao clássico roseano de Roberto Santos? A Revista de CINEMA quis saber.
Ney garantiu: “Eu cantava Vandré, antes de me tornar cantor profissional. Nas nossas rodas de violão, o repertório dele tinha presença garantida”. Houve até — coisa recente — momento em que se garantiu que Ney gravaria um disco com a obra lírica do compositor paraibano, que, em setembro próximo, completará 90 anos. Ele não se referiu a tal projeto no encontro com os jornalistas paulistanos.
“Eu disse ao Esmir Filho” – arrematou Ney Matogrosso – “que ele podia colocar tudo que quisesse no filme, desde que não fosse mentira”. O artista acompanhou as 17 versões de roteiro. O que não significa que fiscalizou com lupa o trabalho do diretor-guionista. “Dei liberdade total a ele, desde que não fugisse da verdade dos fatos”.
Esmir, por sua vez, confessou não gostar de “filmes cromofóbicos”. Ou seja, aqueles que têm fobia de cores fortes (vermelho, dourado, marrom-terra, azul cobalto etc. etc.). “Não sou adepto de cores esmaecidas, nem de sépia”. Daí que o fotógrafo Azul Serra, que tem cor até no nome, deitou e rolou. Inclusive na filmagem de monumental show de Ney no Allianz Park.
Ah, o filme é indicado a toda família, desde que os jovens tenham mais de 16 anos e os coroas sejam abertos a cenas homoafetivas (todas muito bem filmadas). E – aviso a todos – levem o lenço, pois em dois momentos, as lágrimas vão brotar. Numa delas, Ney faz as pazes com o pai autoritário, que sofre num leito de hospital. Da outra (ou outras) guardemos segredo.
Homem com H
Brasil, 2025, 130 minutos
Direção e roteiro: Esmir Filho
Elenco: Jesuíta Barbosa (Ney), Hermila Guedes (Dona Beíta, a mãe), Rômulo Braga (Antônio, o pai), Jullio Reis (Cazuza) , Bruno Mantaleone (Marco de Maria), Mauro Soares (João Ricardo), Jeff Lyrio (Gerson Conrad), Danilo Grangheia (Eugênio), Augusto Trainotti (Soldado Cato), Bela Leindecker (Luli), Carolina Abras (Yara Neiva), Regina Chaves (Lara Tremouroux), Elvira Pagã (Céu)
Fotografia: Azul Serra
Montagem: Germano de Oliveira
Direção de arte: Thales Junqueira
Figurino: Gabriella Marra
Caracterização: Martin Trujillo
Produção: Marcio Fraccaroli, André Fraccaroli e Verônica Stumpf (Paris Entretenimento)
Distribuição: Paris Filmes
FILMOGRAFIA
Esmir Filho (São Paulo, 6 de outubro de 1982)
Longas-metragens:
2025 – “Homem com H”
2020 – “Verlust”
2017 – “Alguma Coisa Assim”
2009 – “Os Famosos e os Duendes da Morte”
Séries, curtas-metragens etc.:
2020 – “Boca a Boca”
2018 – “Baleia”
2014 – “Sete Anos Depois”
2007 – “Saliva”
2007 – “Vibrall
2006 – “Tapa na Pantera” (com Mariana Bastos e Rafael Gomes)
2006 – “Alguma Coisa Assim”
2005 – “Ímpar Par”
2004 – “Ato 11 Cena 5”