“Jaula Amorosa”, thriller com Alain Delon e Jane Fonda, festeja Ano França-Brasil no Panorama da Bahia
Por Maria do Rosário Caetano, de Salvador (BA)
No começo dos anos 1960, Alain Delon era, além de um dos homens mais bonitos e desejados do mundo, protagonista de filmes que causavam furor – “O Sol por Testemunha”, de René Clément, “Rocco e seus Irmãos” e “O Leopardo”, ambos de Luchino Visconti, e “O Eclipse”, de Michelangelo Antonioni. Por isso, Clément, que fez dele um astro (com o bronzeado Tom Ripley de “O Sol por Testemunha”, 1959), voltou a convocá-lo para protagonizar o thriller “Les Félins”, aqui batizado como “Jaula Amorosa”.
Para festejar o Ano França-Brasil, que promove intercâmbio entre o país de Godard e o de Glauber Rocha, a vigésima edição do Panorama Internacional Coisa de Cinema — que prossegue em Salvador, até quarta-feira, 9 de abril — programou, em seu núcleo histórico, o eletrizante “Jaula Amorosa”. Neste filme, Delon é cobiçado por duas lindas mulheres norte-americanas, a jovem Melinda, interpretada por Jane Fonda, 27 aninhos e no auge de sua beleza, e a madura Barbara (Lola Albright), 40 anos, ex-modelo e atriz de filmes ecléticos, incluindo westerns e consagrada pela série de TV “ Peter Gun”, dirigida por Robert Altman. Para servir de cenário ao trio de beldades, Clément ambientou sua descolada narrativa na mediterrânea Côte d’Azur.
A cópia de “Jaula Amorosa” (filme realizado há 60 anos) exibida pelo festival baiano, parecia ter sido concluída ontem, tamanhas as qualidades de seu restauro e beleza da fotografia de Henri Decaë, o mesmo de “Os Incompreendidos”, de Truffaut, de “Plein Soleil” e de muitos filmes de Jean-Pierre Melville (incluindo “O Samurai”, com o onipresente Delon).
A trama rocambolesca de “Les Félins” (Os Felinos, no original) brotou das páginas de “Joy House”, livro tipo pulp fiction escrito por Day Keene (1904-1969), roteirista e romancista norte-americano. Tão yankee quanto o letreiro de Hollywood.
Como o cinema noir (ou polar, como dizem os franceses) atraía público fiel, fascinado com gângsters, brigas acrobáticas, mistérios e mulheres loiras de beleza fatal, Clément resolveu, mais uma vez, dialogar com os pilares do cinema made in USA. O fizera, antes, com Patrícia Highsmith, criadora de Tom Ripley, matriz do sucesso planetário de “O Sol por Testemunha”.
Nada mais natural que, em seu segundo longa-metragem, o diretor francês recorresse a outra matriz norte-americana. Os EUA eram (são) a pátria de Raymond Chandler e Daniel Hammett, fontes seminais do film noir. Day Keene não tinha tamanho prestígio, mas era dono de imaginação das mais férteis. Rocambolesca até.
Clément rodou o novo filme sem as magníficas cores mediterrâneas de sua arrebatadora estreia. Fiel ao gênero noir, adotou o preto-e-branco contrastado. E, além do livro norte-americano, escalou duas atrizes hollywoodianas. E louríssimas.
Chiques até não mais poder, Barbara e Melinda residem em luxuosa mansão na Riviera Francesa. Uma é milionária (Lola Albrigth). A outra (Jane Fonda), sua “empregada”. Afinal, cuida das tarefas domésticas e prepara a comida da suposta patroa. A jovem, porém, se definirá como “prima” da rica proprietária. A se julgar pelos modelitos (a mais alta costura francesa) — verdadeiro desfile de moda — usados pelas duas personagens, intuiremos que há algo de inverossímil por ali. Mas logo entraremos no clima e concluiremos que o filme soma ingredientes oníricos e inusitados. Até bizarros.
Voltemos ao começo. “Les Félins” terá suas cenas iniciais protagonizada por um chefão norte-americano. Ele convocará seus gângsters cara-dura e super-armados para dar cabo da vida de um “galã” francês que seduziu sua jovem esposa. Quer vê-lo morto, mas só depois de devidamente supliciado.
Os gângsters irão cumprir sua missão no hotel onde está hospedado Marc (Alain Delon, mais lindo que um deus grego). Depois de torturá-lo com requinte, os capangas terão que se virar. Bobeira de um deles permitiu a fuga do atlético jovem. Mas ele será perseguido sem trégua. Inclusive nas pontiagudas escarpas francesas banhadas pelo Mediterrâneo. São das mais eletrizantes as cenas marítimas protagonizadas pelos gângsters e pelo playboy, cheio de habilidades.
Machucado, mas não ao ponto de perturbar a fruição de sua bela estampa, Marc “Delon” conseguirá fugir, até encontrar abrigo em instituição católica, daquelas que alimentam o corpo e a alma de clochards. É justo nesse abrigo que Barbara e sua “serviçal” Melina praticam a caridade e conhecem o lindo Delon. Claro, as duas logo se interessarão por ele. Filme noir guarda, sempre, espaço para histórias de amor, desejo e sedução. A milionária contrata o rapaz como motorista.
Ele continuará na mira dos gângsters, que o procuram sem trégua, pois não podem retornar aos EUA sem o serviço concluído e documentado em todas as suas etapas (com fotos e, também, gemidos e gritos impressos num gravador). Dentro da luxuosa mansão, descobriremos que Barbara e Melinda são bem estranhas. E ambas estão loucas de desejo pelo belo “motorista”.
Marc tentará escapar dos perigos que o cercam, mas não tem jeito. Além dos capangas, é enredado na mansão labiríntica das felinas que, ardentemente, o desejam. A trama, além de recorrer aos clichês do gênero, torna-se algo inverossímil. Mas não deixa de ser engenhosa. Para tornar o filme sedutor, Clément o embalou com aliciante trilha do craque argentino-estadunidense Lalo Schinfrin (ainda vivo e nonagenário), pelas poderosas imagens de Decaë e pelo elenco perfeito. Não há como resistir. Além do mais, o filme é salpicado de tiradas de saboroso humor. Acabamos, assim, fazendo vista grossa para os absurdos da trama.
Barbara e Melinda falam francês com adorável sotaque. Jane Fonda, a filha do astro Henry Fonda e mana de Peter “Sem Destino” Fonda, era, naquela primeira metade da década de 1960, uma jovem em início de carreira. Estava em Paris, para ilustrar-se como estudante do idioma e de arte dramática. Protagonizou “Jaula do Amor” em 1964. No ano seguinte, iniciaria casamento, de oito anos e uma filha, com Roger Vadim. O cineasta de “E Deus Criou a Mulher” (com Brigitte Bardot, 1956) projetaria Jane Fonda como símbolo sexual com o extravagante “Barbarella” (1968). O resto é história que soma anos de militância política (e o codinome de Hanói Jane, por causa da Guerra do Vietnã), passagens por filmes ultraengajados de Godard (fase da Célula Dziga Vertov), dois Oscar de melhor atriz, vídeo de ginástica que tornar-se-ia o mais vendido da era audiovisual e carreira longeva (continua ativa aos 86 anos).
“Jaula Amorosa” não foi um estouro como “O Sol por Testemunha”. Vendeu apenas 1,4 milhão de ingressos na França (em época de bilheterias bem mais encorpadas) e teve distribuição internacional. Mas pareceu doido demais para ser entendido pelo grande público. Intrincado demais. Hoje, passados 60 anos, transformou-se numa relíquia. Assisti-lo é mergulhar no universo do film noir, que ainda faz a cabeça de muitos cinéfilos. Em especial dos que não conseguem esquecer os filmes vistos na era de ouro do gênero. Serve, também, para mostrar que a cinéfila França dedicou-se com afinco (e grandes artífices) às histórias de gângsters e mulheres fatais.
Ao concordar com tudo, também comungo de sua leitura: Delon mais belo que um Deus grego. Um espanto!
Concordo com sua liturgia, até a Epifania de Delon: mais belo que um Deus grego. Um espanto!