Com “O Eternauta”, Ricardo Darín empresta seu carisma à divulgação da tragédia da família Oesterheld
Por Maria do Rosário Caetano
Coube ao mais carismático dos atores argentinos, o astro Ricardo Darín, trazer de volta uma das maiores tragédias familiares da história latino-americana: o assassinato, pelo aparelho repressivo do General Videla, do escritor e quadrinista Héctor Germán Oesterheld, criador de “O Eternauta”, de suas quatro filhas e dois genros. E – supõe-se – de dois futuros netos, que teriam morrido no ventre de duas de suas jovens filhas. Sobraram a viúva do escritor, Elsa Sánchez, e dois netos nascidos no cárcere, Fernando Araldi e Martín Mórtola.
Para termos noção do que se passou com a família de Héctor e Elsa, faz-se necessário evocar a história de Rubens Paiva e sua viúva, Eunice Facciolla Paiva, tema do filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, premiado com o Oscar de melhor produção internacional. Pois há semelhanças entre o que viveu a jovem viúva do engenheiro e ex-deputado brasileiro e a viúva de Oesterheld. Ambas, dedicadas ao lar, se viram, de um dia para o outro, com suas vidas destroçadas.
No caso argentino, a tragédia foi ainda mais apavorante, pois Dona Elsa perdeu, além do marido, as quatro filhas que gestara e que a cercaram até a juventude. E dois genros. Filha de imigrantes da Galícia espanhola, ela encontrou forças para resistir e criar dois netos, nascidos quando suas mães – militantes Montoneras como o pai e seus esposos – estavam encarceradas. Só uma filha, Diana, teve seu corpo encontrado. O de Héctor, das outras três filhas e dos genros figuram, ainda hoje, na lista de “desaparecidos políticos”. Como Rubens Paiva, são corpos insepultos.
A trágica história da Família Oesterheld está narrada no longa documental “La Mujer del Eternauta”, de Adán Aliaga, realizado na Galícia e em Buenos Aires, e lançado em 2011. Como Dona Elsa tinha ascendência galega, ela contou com a solidariedade dos conterrâneos de seus pais. Dois outros filmes – “HGO”, de 1998, e “Imaginadores”, este de 2008 – têm a ver com a trajetória de Héctor Germán Oesterheld, de ascendência germânica. “Imaginadores” aborda a História em Quadrinho argentina e traz, claro, trecho dedicado à criação artística do autor de “O Eternauta” (e de HQs sobre Evita Perón e Ernesto Che Guevara).
Em “A Mulher do Eternauta” acompanhamos, ao longo de 82 minutos, o que Dona Elsa viveu depois que o marido, filhas e genros foram assassinados. Primeiro, ela se desdobrou para criar os netos Fernando e Martín. Depois, ligou-se à organização Madres de la Plaza de Mayo, que buscou (e continua buscando) filhos de desaparecidos políticos. Pelas poucas informações de que dispunha, a Sra. Oesterheld buscava mais dois netos, que teriam (caso não tivessem morrido junto com suas mães) nascido na prisão. E que não lhe foram devolvidos.
Quem assistiu ao filme “A História Oficial” (Luiz Puenzo, 1985, premiado com o Oscar) sabe que muitas crianças nascidas em cárceres argentinos foram entregues, inclusive, aos militares que prestavam serviços à ditadura. E por eles criados, sem que os “adotados” tomassem conhecimento de suas origens.
Ao morrer em 2015, quatro anos depois da realização de “A Mulher do Eternauta”, Dona Elsa tinha 90 anos. O documentário por ela protagonizado mostra uma mulher forte, que não busca lágrimas fáceis. Depois de lembrar que carrega “uma mutilação na alma”, a viúva garante ter herdado dos pais galegos os sentimentos de “lealdade, justiça, honradez e amor ao próximo”. Não esconde que as filhas, “estudantes e opositoras” à ditadura que governou a Argentina de 1976 a 1983, tinham ligações com os Montoneros. Que ela, pessoalmente, não se envolveu com a militância política. Mas pagou caro, mesmo assim. Em dois anos, de 1976 e 1977, perdeu o marido (1919-1977) e as filhas Estela, nascida em 1952, Diana (1953), Beatriz (1955) e Marina (1957). Mortas com idades que iam dos 19 anos (a caçula) aos 24 ou 25.
Além do testemunho de Dona Elsa, “A Mulher do Eternauta” traz depoimentos de seus netos, Fernando e Martín, do desenhista Francisco Solano López (que ilustrou a mais famosa HQ de Héctor Oesterheld), dos escritores Juan Sasturian e Manuel Rivas, do juiz Daniel Refecas, de Ricardo Capelle, amigo de Elsa, de Stella Carloto, uma das líderes das Madres de la Plaza de Mayo, e de Jorge Oesterheld, sobrinho do quadrinista. Há que se lembrar que o autor de “O Eternauta” é considerado um dos maiores nomes da ficção científica argentina.
Contam-se nos dedos de uma mão, os nomes de brasileiros que conhecessem detalhes da tragédia política que se abateu sobre a família de Héctor Germán Oesterheld. Sua HQ, sim, foi publicada por editora brasileira e conta com admiradores – se não em grande número – fervorosos. Por isso, a estreia da série da Netflix, cuja primeira temporada (de seis capítulos) está disponibilizada na íntegra, serve como poderoso estímulo ao resgate da trajetória do quadrinista assassinado (assim como a de suas quatro filhas e dois genros).
O elenco de “O Eternauta” é liderado por Ricardo Darín, de 68 anos, em parceria com César Troncoso (de “O Banheiro do Papa”), Carla Peterson, Andrea Pietra, Orianna Cárdenas e Mora Fisz. No núcleo de maior destaque (amigos que jogam truco na casa de um deles) estão Marcelo Subiotto, Ariel Staltari e Claudio Martínez Bel.
A narrativa da série traz atrativos para os jovens (por sua distopia e luta de humanos desesperados contra monstros extraterrestres), mas, também, para adultos, já que são abordadas questões mais complexas, como o trauma de guerra, a desconfiança entre amigos, o egoísmo, a falta de solidariedade (e a necessidade dela) em momentos extremos.
Os monstros não se tornam tão ou mais importantes que os cidadãos comuns, aqueles que têm que lutar pela sobrevivência, encontrar comida e água não contaminados, buscar parentes e explicações para a hecatombe que, num dia de verão, transformou Buenos Aires e adjacências latino-americanas (incluindo o Brasil) numa sucursal do inferno.
O sucesso da série na Argentina é imenso. Entre nós, “O Eternauta”, além de alcançar boa receptividade, vem contribuindo de forma significativa para chamar nossa atenção para os horrores das ditaduras. Mesmo que tais horrores não sejam referidos, abertamente, na trama da primeira temporada da série.
A adaptação feita da HQ original, publicada entre 1957 e 1959, reafirma o talento do diretor Bruno Stagnaro (“Pizza, Birra y Faso”, um dos filmes da fase inicial da Nova Onda Argentina) e de sua equipe. Eles recriaram, com muita liberdade, a narrativa da dupla Oesterheld e Solano.
Há quem suponha que Héctor Germán Oesterheld tenha escrito sua distopia inspirado nos anos de terror político vividos por seu país (de 1976 a 1983). Mas isso não aconteceu. A HQ foi criada e editada na segunda metade da década de 1950. Oesterheld retomaria, em 1969, seus personagens em uma segunda HQ (“O Eternauta II”), publicada justo no ano do golpe militar.
O jornal Página 12, de Buenos Aires, conta em reportagem sobre a Família do Eternauta que a segunda HQ resultou em “um fracasso comercial”. Que “chegavam (à editora) cartas de leitores criticando esse novo conteúdo” e, mais ainda, “o desenho escuro, duro, de Alberto Breccia” (substituto do parceiro de outrora, Francisco Solano).
O “novo conteúdo”, que tanto incomodara aos leitores – testemunha Fernanda Nicolini, uma das autoras do livro “Los Oesterheld” (2016) – era bem diferente da história original. Isto porque, “na primeira versão de ‘O Eternauta’, não sabemos de onde vem a invasão extraterrestre”. Já na segunda, ela ganha clareza. Na versão de 1969, assistimos a “uma invasão que se realiza na América Latina, porque as potências do Primeiro Mundo negociam com os invasores a cessão da nossa terra”.
A primeira versão seriada da HQ “O Eternauta”, produzida com fartos recursos pela Netflix, se passa em nossos dias. O protagonista, Juan Salvo (Darín), é um veterano da Guerra das Malvinas (abril a junho de 1982), separado da mulher, Elena (Carla Peterson) e pai da jovem Clara. Ao ser surpreendido por nevasca tóxica (capaz de dizimar milhares de habitantes da capital argentina) ele terá que domar seu gênio forte, superar seu individualismo exacerbado e seus traumas. Afinal, necessita encontrar a filha, que está desaparecida. E que, ao aparecer, se mostrará bem estranha.
A neve tóxica cai em pleno verão. E com ela aparecerão, para ampliar a tragédia dos humanos, seres extraterrestres. Nesse momento, a narrativa lembrará blockbusters de ação made in USA. Felizmente – os seres humanos, em especial o grupo do onipresente Juan Salvo, não serão soterrados por dramaturgia apelativa, nem pelas criaturas monstruosas.
O foco recairá, primordialmente, sobre a necessidade de se lutar coletivamente pela salvação da cidade invadida. E Darín, mesmo encoberto por macacão impermeável e máscara (que esconde seu rosto belo e maduro), continuará magnetizando nossas retinas com seus profundos (e expressivos) olhos azuis.
O uruguaio Troncoso, de talento inquestionável, também se sai muito bem na pele de Alfredo Favalli, um mecânico dotado de grandes habilidades. Na trama, tudo que é moderno (celulares e assemelhados) deixará de funcionar. O mesmo não acontecerá com velhos aparelhos (como, por exemplo, serviço de rádio amador). Alfredo será o companheiro fiel do amigo Juan Salvo, este, muitas vezes, intolerante e duro com os que o cercam. Mas capaz de, com arma em punho, enfrentar todos os opositores. Incluindo os monstros invasores.
Quem assistiu à primeira temporada de “Cem Anos de Solidão”, produção da Netflix consagrada pelos Prêmios Platino, deu-se por satisfeito com seus 16 capítulos iniciais. Tão bons, que a história parecia ter chegado a termo (não chegou, pois novas guerras serão vividas pelo Coronel Aureliano Buendía). O mesmo não acontece com a primeira temporada de “O Eternauta”. Há muito por explicar, por decifrar. Sobraram muitas pontas soltas. Para saber, por exemplo, o que aconteceu com a jovem Clara (Mora Fisz), filha de Juan Salvo e Elena (Carla Petersen), só esperando o que está por vir. Pois que venha, logo, a segunda temporada. Com muitas histórias humanas e sem hegemonia dos bichos-monstros.
O Eternauta – Primeira Temporada
Série da Netflix em 6 capítulos (média de 50 minutos cada um)
Direção: Bruno Stagnaro
Elenco: Ricardo Darín, César Troncoso, Carla Peterson, Mora Fisz, Andrea Pietra, Orianna Cárdenas, Ariel Staltari, Marcelo Subiotto e Claudio Martínez Bel
Os efeitos especiais trazem os mesmos valores das superproduções estadunidenses.
O Eternauta
HQ escrita por Héctor Germán Oesterheld e ilustrada por Francisco Solano López
Publicada em português pela Pipoca & Nanquim (R$219,90)
A Mulher do Eternauta
Longa-metragem de Adán Aliaga (Espanha-Argentina, 2011, 82 minutos)
Versão original em espanhol (e galego)
Inédito no Brasil
Los Oesterheld
Livro de Alícia Beltrami e Fernanda Nicolini (2016) publicado em espanhol, sem tradução para o português, é fruto de 60 entrevistas de suas autoras com amigos e companheiros de militância dos Oesterheld, sobreviventes, colegas, familiares e, em especial, com o testemunho da viúva Elsa Sánches (1925-2015)