Ruy Guerra relembra Festival de Berlim que confrontou George Stevens a “OK”, de Michael Verhoerven
Foto: Ruy Guerra na década de 1970 © Avervo Instituto Moreira Salles
Por Maria do Rosário Caetano e Adilson Mendes
Ruy Guerra participou da polêmica edição, a vigésima, do Festival de Cinema de Berlim, em junho de 1970, e assistiu – já que disputava o Urso de Ouro com “Os Deuses e os Mortos” – ao embate que resultou na não-atribuição dos prêmios previstos. Afinal, o júri oficial recorreu à demissão coletiva.
O imbróglio começou quando o presidente do júri, o cineasta George Stevens, de “Os Brutos Também Amam” e “Assim Caminha a Humanidade”, sentiu-se afrontado por um dos concorrentes – “OK”, do alemão Michael Verhoeven. Para Stevens, o filme germânico era “um insulto aos EUA”.
Na reunião com seus colegas de júri (Alberto Lattuada, Dusan Makavejev, Véra Volmane, Billie Whitelaw, Gunnar Oldin, Manfred Durniok e o brasileiro David Neves), o diretor norte-americano propôs que “OK” fosse desclassificado.
Ruy Guerra – o Brasil disputava o Urso de Ouro também com “O Profeta da Fome”, de Maurice Capovilla – relembrou o episódio em testemunho a Adilson Mendes, diretor do longa documental “Tempo Ruy” (2021). O encontro entre os dois se deu no Rio de Janeiro, nesse domingo, primeiro de junho. Além de realizar o documentário “Tempo Ruy”, Mendes organizou o livro “Ruy Guerra – Arte e Revolução”, coletânea de críticas de filmes do passado e do presente (somadas a entrevistas do cineasta nascido em Moçambique).
“O filme de Michael Verhoeven mostrava episódio real da Guerra do Vietnã”, lembrou Ruy. “Depois de sua exibição, começaram a correr boatos de que havia pressão para que ele fosse excluído da competição”.
A informação do mal-estar instalado no júri chegou a Ruy Guerra pela voz de dois dos jurados – “o iugoslavo Dusan Makavejev e o brasileiro David Neves”.
Por isso, no dia seguinte à exibição de “Os Deuses e os Mortos” – cinco anos antes, Ruy ganhara um Urso de Prata, com “Os Fuzis” –, o cineasta brasileiro usou sua coletiva de imprensa para deixar clara a posição que adotaria. “Se o filme alemão fosse excluído da competição” – avisou –, “eu retiraria o meu”.
O diretor de “Os Deuses e os Mortos” lembra que seu filme fôra “bem recebido pela crítica e era lembrado como um dos favoritos ao Urso de Ouro”.
O brasileiro guardou memória especial daquele ano em Berlim: “Bernardo Bertolucci participava da competição com ‘O Conformista’ e estava de olho em parceria com os norte-americanos” (para realizar aquele que seria seu filme mais polêmico – “O Último Tango em Paris”, 1972).
“Eu não conhecia o Bertolucci” – relembra o brasileiro. “Nos conhecemos ali, naquele Festival de Berlim. Ele me convidou para jantar e falamos do que estava acontecendo. Ele até respirou aliviado quando o júri decidiu não atribuir nenhum prêmio, pois temia que, se perdesse, a negociação com os produtores americanos poderia se complicar” (Lembremos que Marlon Brando protagonizaria, com Maria Schneider, o Tango parisiense).
A competição da vigésima edição de Berlim reuniu 27 concorrentes. Os filmes de Ruy Guerra e de Maurice Capovilla disputavam o Urso de Ouro com “Dias e Noites na Floresta”, do indiano Satyajit Ray, “Por que Deu a Louca no Sr. R?”, do alemão Fassbinder, “O Chacal de Nahueltoro”, do chileno Miguel Littín, “L’Eden et Après”, do francês Alain Robbe-Grillet, “Dyonisius in ’69”, do estadunidense Brian De Palma e outras 20 produções (incluindo “OK” e “O Conformista”).
A Revista de CINEMA assistiu ao filme que incendiou a Berlinale setentista — o “OK”, de Michael Verhoeven (1938-2024), companheiro por toda sua vida da atriz austríaca Senta Berger e autor de dois filmes lançados no Brasil (“A Rosa Branca”, de 1982, e “Uma Cidade sem Passado”, de 1990, este finalista ao Oscar internacional).
Há fontes que referenciam “OK” como um “documentário”. Na verdade, ele é uma ficção construída à moda de Bertoldt Brecht (1898 -1956).
O que postulava o grande dramaturgo e encenador alemão? De forma resumida: que se desvelassem os mecanismos artificiais do teatro (no caso de Verhoeven, do cinema). E mais: que seus atores-personagens se auto-apresentassem ao público e, por que não?, até trocassem de roupa à vista de quem os assistia. Brecht entendia que, mais que seduzir o espectador em busca de identificação, o que se devia desejar era o distanciamento crítico.
Todos estes procedimentos são visíveis em “OK”. A narrativa começa com a equipe do filme movimentando-se num estúdio, no qual são vistos os equipamentos de filmagens. Aí, cada ator se apresenta aos espectadores com seu nome, idade etc. E eles trocam suas roupas cotidianas por “fardas” onde destaca-se a inscrição “U.S. ARMY”.
Os “fardados” aparecem em novo cenário: um descampado cercado de árvores muito altas. Até que uma jovem de uns 15 anos, interpretada pela adolescente Eva Mattes (que se tornaria atriz de filmes de Fassbinder e Herzog), passa pelo lugar, em sua bicicleta.
A trama, de sintéticos 79 minutos, mostrará a jovem sendo brutalmente estuprada pelos soldados. O longa-metragem, cujas filmagens foram realizadas na Bavária, com atores alemães, referia-se, metaforicamente, à Guerra do Vietnã.
Fiel a Brecht e infiel ao cinema catártico (vertente hegemônica no cinema hollywoodiano), Michael Verhoeven construiu uma paráfrase do que teria se passado em solo vietnamita, nos tempos de guerra brutal. Aquela em que os EUA se aliaram ao Sul capitalista, contra o Norte comunista, liderado por Ho Chi Min.
Natural, portanto, que George Stevens (1904-1975), diretor de grandes narrativas clássicas de Hollywood, se incomodasse com o “insulto” proferido, em forma de filme, por Verhoeven. Decerto, já sexagenário (66 anos), o norte-americano não tenha avaliado bem o momento histórico que vivia. Ao propor a exclusão do filme, ignorou que o meio artístico (cinematográfico, no caso) andava tomado pela inquietação. O festival acontecia dois anos depois do Maio de 1968, rebelião que propunha “a imaginação no Poder”.
George Stevens morreria cinco anos depois da agitada vigésima edição do Festival de Berlim. Verhoeven viveria até o ano passado. Morreu aos 85 anos e seu filme mais polêmico (“OK”) foi restaurado, com a perícia e zelo costumeiros, pela Cinemateca de Munique.