O longa “Mais Um Dia, Zona Norte” e dois curtas entram na corrida pelo Troféu Candango

Foto: Equipe do filme “Mais Um Dia, Zona Norte” © Bené França

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília-DF

“Mais Um Dia, Zona Norte”, quarto longa-metragem do carioca Allan Ribeiro, foi apresentado na segunda noite da mostra competitiva do 56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, junto aos curtas “Axé, meu Amor”, do paraibano Thiago Costa, e “Erguida”, da paulistana Jhonnã Bao.

Depois da primeira noite da competição – a de “No Céu da Pátria nesse Instante”, documentário de Sandra Kogut, encerrada com o ritmo sacudido e dançante de “Tá na Hora do Jair Embora” – chegava a hora de aplausos contidos e reflexivos para o delicado e minimalista filme de Allan Ribeiro. O carioca, nascido e criado na Zona Norte, assina, além da direção, o roteiro, montagem e produção (em parceria com Marisa Merlo) do longa-metragem. E, não se pode esquecer, assina também as canções que embalam a trilha sonora (em dupla com Tibor Fittel).

“Mais Um Dia, Zona Norte” está, se recorrermos a uma metáfora musical, para o choro, enquanto o filme de Sandra Kogut se aproxima de um samba-enredo (ou um forró pop-levanta poeira). O primeiro busca a poesia do cotidiano, o segundo, a épica popular.

A origem do quarto longa de Allan Ribeiro, formado em Cinema pela Universidade Federal Fluminense, nasceu de curta-metragem que ele realizou em 2006 (“O Brilho dos meus Olhos”). Agora em parceria com Douglas Soares, ele esboçou o novo argumento centrado em quatro personagens, todos moradores (e trabalhadores) da periferia do Rio de Janeiro.

O roteiro, elaborado e levado aos atores, que também deram sua contribuição criativa, conta a história de quatro suburbanos, que ganham a vida em ofícios laborais, alguns deles invisíveis.

Valéria (Valéria Silva) trabalha na coleta de lixo nas ruas de sua cidade. Lara (Lara Rodrigues) é bailarina e se tornará passista da Escola de Samba do Engenho de Dentro. Silvio (Silvio Fernandes) vive relação homoafetiva com seu parceiro, ambos já na terceira idade. E atua em shows de transformismo. Victor (Victor Veiga) trabalha como pregoeiro de porta de conjunto de lojas e tem por missão atrair novos compradores-transeuntes. Ele, que se vira nos 30, vivenciará seu talento em stand up comedy.

No debate do filme, Victor contou que é também camelô e animador de festas infantis, atividades não registradas na trama, pois Allan Ribeiro buscou a síntese. E, além do mais, tinha quatro personagens como protagonistas, cada um com sua própria jornada.

Três atores do filme subiram ao palco do Cine Brasília junto com Allan Ribeiro e equipe técnica. A ausência anunciada (e sentida) foi a de Valéria Silva, pois a Comlurb não a liberou do trabalho, sob o argumento de que a demanda, em dezembro, mês de férias e de turismo intenso, é imensa. Registre-se que ela tem presença magnética no filme e se sai muito bem nas situações engendradas com o auxílio e a experiência do cineasta-roteirista.

Durante o rápido debate do filme (o público mal teve tempo de dirigir perguntas aos dez representantes da equipe artística e técnica que se deslocaram até Brasília), o expansivo Silvio Fernandes contou que sonhara com um longa-metragem cheio de cores, no qual pudesse interpretar Barbra Streisand, de quem é fã (dela e de outras estrelas de celuloide), mas que Allan sempre dizia “menos, menos!!”. E que não pôde utilizar canção do repertório da cantriz Streisand devido ao alto custo dos direitos autorais.

Allan Ribeiro e sua produtora-executiva Marisa Merlo lembraram que “Mais Um Dia, Zona Norte” foi feito com apenas R$400 mil, não dispondo, portanto, de recursos para pagar pelo uso de músicas internacionais ou nacionais. A solução veio do próprio diretor, que compôs, com Tibor Fittel, as letras e melodias presentes ao longo dos 80 minutos de narrativa. O cineasta contou, também, que Ney Matogrosso gravaria composição dele (cantada por Victor e retomada nos créditos finais), mas houve problema de agenda. Prometeu, por gostar do resultado, gravá-la num novo disco. Se isto acontecer, Allan Ribeiro, afinal o montador do filme, vai colocá-la, com a voz do astro mato-grossense, nos créditos finais.

O curta paraibano “Axé, meu Amor” é o segundo trabalho apresentado, no Festival de Brasília, por Thiago Costa. O primeiro, “Calunga Maior”, participante da quinquagésima-quinta edição, na qual recebeu cinco prêmios, se dava no mesmo universo – o da religiosidade e cultura afro-brasileiras. O primeiro era um projeto mais experimental, com narrativa que estimulava a imaginação do espectador. Já o novo curta se apresenta com proposta de cinema popular, de leitura mais direta, em diálogo com o melodrama e o humor, protagonizado por Mãe Bené.

Ao acordar de um pesadelo, a efusiva personagem recebe notícia perturbadora: a vida de sua mãe de santo está por um fio. Para tornar ainda mais difícil sua jornada, ela recebe a visita de sobrinho evangélico, que tentará convencê-la a vender o terreno que abriga seu terreiro de candomblé. Jogo de búzios mostrará à angustiada, mas sempre efusiva, Mãe Bené que ela deverá enfrentar os problemas realizando viagem em busca do sagrado.

A intérprete de Bené é a mãe de santo Renilda, também radialista e titular do programa “Axé, meu Amor”, na Rádio Tabajara, tradicional emissora da capital paraibana. A fotografia do filme traz a assinatura de Luis Barbosa e a trilha sonora instrumental é de Victorama. Edson Lemos Akatoy assina a montagem e o trabalho de cor.

“Erguida” é o segundo curta da cineasta Jhonnã Bao. O primeiro (o documentário “Tenebrosas?”) elaborou a reinvenção de imaginários sociais sobre corpos trans e travestis na vida cotidiana brasileira.

Em sua estreia na ficção, Jhonnã, além de assinar a direção, o roteiro e a produção, desempenha o papel protagônico. O de uma jovem poeta transexual da periferia paulistana, que sofre desilusão amorosa e é acometida de forte crise nervosa. Mas ela não sucumbe. Ao contrário, dá a volta por cima com sua mais forte arma expressiva, a poesia.

Sua “erguida” será, portanto, vocal e existencial. Johnnã, atriz carismática e sedutora, carrega o filme nas costas. Na parte técnica, ela contou com a retaguarda de seu coletivo de trabalho, o Contraplano, no qual se destaca a diretora de fotografia Alícia Abe, também transexual. Durante o debate, Alícia perguntou se algum dos presentes na plateia conhecia outra profissional das imagens que fosse, como ela, transexual. Ninguém enunciou resposta positiva. Tudo indica que ela é uma pioneira. O primeiro nome a desbravar caminhos em ofício historicamente masculino.

Horas antes da apresentação dos três filmes da segunda noite da Mostra Nacional, foi exibido o longa-metragem “O Sonho de Clarice”, de Fernando Gutiérrez e Guto Bicalho, ao qual coube inaugurar a Mostra Brasília. Essa competição distribui, há quase 30 anos, o Prêmios da Câmara Legislativa do DF aos melhores filmes, atores e técnicos da produção candanga.

Pela primeira vez, um longa de animação participa da mostra brasiliense. Na década de 1990, e só nela, o quase-sexagenário Festival de Brasília exibiu, em sua mostra nacional, dois longas-metragens do gênero. O primeiro foi o híbrido de live action e animação, “A TV que Virou Estrela de Cinema”, de Yanko del Pino e Márcio Curi (1993). O segundo, “Rocky & Hudson – Os Cowboys Gays”, de Otto Guerra (1994).

“O Sonho de Clarice” ocupou Gutiérrez e Bicalho por dez longos anos. Com variadas técnicas do cinema de animação, a dupla conta a história de uma menina órfã de mãe, que perambula com o pai pelas ruas de sua cidade. Ele, com seu corpo esguio e enormes bigodões, puxa carroção dotado de engrenagem das mais engenhosas e fascinantes e vai coletando materiais descartados por onde passa.

A menina, de nove anos, vive o luto pela ausência materna. Em seus devaneios, ela vai emaranhar-se, na companhia de um tatu e um bicudo, em jornada onírica de complexa urdidura. Aliás, o filme se compõe com imagens de grande beleza. Resta saber se as crianças vão entender sua trama, que nada tem de óbvio ou linear. A se julgar pela sessão no Cine Brasília, que começou lotada (houve poucas defecções), parece que a meninada gostou do que viu.

Na noite de segunda-feira, a produtora Marisa Merlo aproveitou o palco do Cine Brasília para ler sintético documento escrito depois de intensos debates no IX Congresso Brasileiro do Cinema e do Audiovisual, que acabava de encerrar suas atividades. De tom coloquial, o texto convoca o público e o Parlamento  (Senado e Câmara) a se mobilizarem na luta pela difusão do nosso audiovisual.

“O cinema brasileiro sofreu muitos ataques nos últimos anos e perdemos algumas garantias fundamentais para a circulação dos nossos filmes. É o público brasileiro quem perde a garantia de poder assistir a si próprio nas telas. Amanhã (12/12/23) vai ser votado no Senado federal a cota de tela da TV paga. Contamos com o Senado para aprovar logo essa cota tão importante. E pedimos para o presidente Rodrigo Pacheco colocar em votação urgente a cota de tela do cinema. E que no ano que vem a gente consiga aprovar a regulação do VoD, que defenda os interesses do Brasil. Por mais Brasil nas telas! É do Brasil!”

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