Tatuagem

É inevitável. Quando se fala em filmes ambientados na época da ditadura militar, logo nos vêm à cabeça imagens de torturas, sequestros, talvez um tiroteio aqui e ali, “aparelhos”, vidas clandestinas, fugas noturnas. Não há absolutamente nada disso em “Tatuagem”, a entusiasmante estreia de Hilton Lacerda na direção de longas. Dizer que o filme é provocativo, pode parecer redundante. Afinal, é isso que se espera do roteirista de “Amarelo Manga”, “Baixio das Bestas” e “A Festa da Menina Morta”, entre outros.

A trama é, sim, ambientada nos anos de chumbo da ditadura militar brasileira, mais precisamente em 1978, mas nos bastidores de um coletivo de criação teatral pernambucano chamado Chão de Estrelas. Ali, abunda a criatividade, a concepção de números musicais, a poesia, os ensaios teatrais, o amor livre. Porém, sabiamente, “Tatuagem” não segue a trilha do panfletarismo, preferindo enfocar a ação na arrebatadora história de amor entre o artista performático Clécio (Irandhir Santos, perfeito) e o soldado Arlindo (Jesuíta Barbosa, também em marcante interpretação). Nada mais revolucionário que a possibilidade deste amor impossível.

“Era um filme muito perigoso, de limites”, afirma Lacerda. “Estávamos trabalhando com dois limites muito exacerbados que eram, num primeiro plano, o teatro de revista e, num segundo momento, o cotidiano influenciado por este mundo. E com estes dois mundos dialogando o tempo inteiro”, diz o diretor. Para que tudo parecesse factível, na tela, era fundamental que os componentes do Chão de Estrelas transmitissem cumplicidade e intimidade acima de qualquer suspeita. “Eu precisava, em poucas semanas, ter um elenco que parecia já estar convivendo há dois ou três anos. E quando se fala de dois ou três anos para pessoas que têm idade entre 18 a 23, isso parece uma eternidade,” afirma Lacerda. A solução encontrada foi ensaiar, e muito. ”Tatuagem” foi minuciosamente ensaiado durante seis semanas, e filmado em cinco.

O filme exibe um eficiente trabalho na reconstrução do ambiente de desbunde e anarquia do teatro alternativo dos anos 70. Uma reconstituição que vai muito além das questões técnicas de figurino e direção de arte, mas que impregna a própria obra daquela saudável porralouquice de um período onde, acreditava-se, alguém mudaria o mundo. Talvez nós mesmos. Quase dá para sentir o cheiro de incenso.

“Ao mesmo tempo, não queria que o filme fosse simplesmente a representação de uma época”, conta Lacerda. “A ideia era muito mais tentar mostrar como você discute o mundo, hoje, a partir da perspectiva anterior, como você constrói a utopia”, explica o diretor.

Mais que um filme de dicotomias (militar/arte, liberdade/ditadura, homem/mulher etc.), “Tatuagem” é um questionamento sobre a possibilidade de equalizar estas dicotomias, (re)propondo uma bem-vinda utopia setentista reeditada para uma nova realidade.

“Tatuagem” foi o grande vencedor do último Festival de Gramado, onde levou os Kikitos de melhor ator (para Irandhir Santos) e melhor filme da competição brasileira, e premiado no recente Festival do Rio com o Prêmio Especial do Júri Oficial, Melhor Ator para Jesuíta Barbosa, Melhor Ator Coadjuvante para Rodrigo Garcia, Melhor Longa-metragem Ficção pelo Júri Popular e Melhor Longa Latino-Americano pela FIPRESCI (crítica internacional).

Tatuagem (Brasil, 108 min., 2013)
Direção: Hilton Lacerda
Distribuição: Imovision
Estreia: 15 de novembro

 

Por Celso Sabadin

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