Delicadeza revelatória
Daniel Ribeiro fez bastante barulho com seus dois curtas. “Café com Leite” (2007), sobre dois irmãos de idades muito diferentes que têm que conviver com a morte dos pais, saiu do Festival de Berlim com o Urso de Cristal e circulou o mundo. O filme seguinte, “Eu Não Quero Voltar Sozinho” (2010), sobre a descoberta da paixão entre dois garotos, já foi visto por mais de três milhões de pessoas no Youtube, além de ter levado vários prêmios por onde passou. Com o sucesso dos curtas, Ribeiro estreia no longa-metragem com “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, partindo do mesmo ponto de “Eu Não Quero Voltar Sozinho”: a chegada de um novo aluno, Gabriel, modifica um bocado a vida de Leonardo, um adolescente cego, e de Giovana, sua melhor amiga. O filme debutou no 64° Festival de Berlim, na Mostra Panorama, onde levou o prêmio de melhor filme do Teddy Awards, da Fipresci e o segundo melhor de acordo com o público.
Daniel Ribeiro trabalha com um universo muito comum, o do drama colegial, centrado em estudantes adolescentes, que amadurecem com as novidades que a vida traz. O longa, ainda que traga vários dos acontecimentos mundanos recorrentes ao gênero, está longe de ser um típico exemplar. Se vemos o ciúme entre amigos, o bullying, a paixão não correspondida, a pegação, é porque estão lá para construir a atmosfera, não como finalidade em si.
Realizado de forma independente do curta, “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” é um avanço frente aos seus filmes anteriores – que já eram bem bons. Ribeiro, que sempre se demonstrou um roteirista talentoso, supera-se. Sem pressa para construir as situações ou os personagens, incutindo-lhes diversas nuances, o diretor-roteirista trabalha na ordem do cotidiano, do banal, ou seja, de como os pequenos acontecimentos interferem na narrativa diária de uma pessoa. São raros os grandes eventos – pouco lhe interessa o melodrama, ainda que a carga dramática esteja lá. Não à toa, o título original do longa era “Todas as Coisas Simples”. Para Daniel Ribeiro, os principais eventos de seu filme são todos muitos simples: uma festa ordinária, uma viagem escolar, um trabalho de colégio. É um pouco da lógica das coisas que simplesmente são, sem precisar explicá-las ou aceitá-las. O viés homossexual de suas histórias, por exemplo, nunca é uma questão: seus personagens são gays e pronto, isso basta, não se necessita de contestação.
Por isso, é muito comum se referir aos filmes de Ribeiro como delicados, talvez, realmente, o melhor adjetivo a descrevê-los. Delicados porque Ribeiro nunca pesa a mão, nunca se excede – tudo é muito leve, sem grandes afetações. Se algumas cenas parecem demasiadas para o contexto, é justamente por uma delicadeza extrema que soa deslocada do mundo assim como o conhecemos, pouco dotado de uma fofura ou de uma sensibilidade que seus personagens por alguns momentos transbordam.
A delicadeza talvez também venha do forte trabalho de construção de seus personagens. O filme é todo calcado no poder sutil da revelação, seja no âmbito do roteiro, com informações sobre seus personagens que são, aos poucos, deixadas de forma a arquitetarmos a narrativa, seja na direção. Hábil diretor de atores, “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” denota um trabalho mais evidente de alguém que pensa, além de contar uma boa história, em um projeto de composição para seu filme. Assim como no roteiro, a tônica da direção de Ribeiro parece ser o de revelar ao espectador nuances. Nisso, um preciso trabalho com o foco da câmera – alternando-o para mostrar, dentro de um mesmo quadro, diferentes aspectos da narrativa, que poderiam passar despercebidos de outra forma – e com a fruição do extracampo – ou seja, partindo de um ponto específico da imagem e passeando com a câmera de modo a revelar gestos, feições, personagens, antes desconhecidos por seu enquadramento; e dessa forma reforçá-los por sua câmera. Ribeiro filma junto a seus personagens, com planos próximos – sem nunca invadi-los ou julgá-los –, o que muitas vezes faz com que nos percamos dentro deles – e por isso o papel da revelação é forte.
O trabalho de direção de Ribeiro, porém, nunca chama a atenção para si mesmo. Estamos no campo do cinema narrativo, linear, que privilegia uma história bem contada, em que a forma apenas potencializa o conteúdo. Ribeiro sabe a força desse cinema – que dentro do cinema contemporâneo brasileiro parece ser deixado de lado ou rejeitado – e sabe também que, para fazê-lo, não precisa de histórias extraordinárias. O drama das descobertas basta.
Assista ao trailer do filme aqui.
Hoje Eu Quero Voltar Sozinho
(Brasil, 96 min., 2014)
Direção: Daniel Ribeiro
Distribuição: Vitrine Filmes
Estreia: 10 de abril
Por Gabriel Carneiro
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Crítica sensível e delicada, como o filme, sem deixar de avaliar o resultado. Parabéns!
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