Cine Ceará 2018 – “Cabros de Mierda” chega do Chile com retrato da ditadura Pinochet vista por gente comum
Por Maria do Rosário Caetano, de Fortaleza
O segundo concorrente ao Troféu Mucuripe de melhor longa-metragem do XXVIII Cine Ceará (Festival de Cinema Ibero-Americano de Fortaleza) — “Cabros de Mierda” (ou “Moleque do Cão” ) — representa o Chile e foi recebido com aplausos pelo público, no Cineteatro São Luís. O filme, o décimo longa de Gonzalo Justiniano, é fruto de diálogo entre a comédia, a moda italiana e o cinema político. O realizador, de 62 anos, conquistou o Kikito de melhor longa latino, em Gramado, com “Amnésia”(1994), o único de seus trabalhos lançados em nosso circuito comercial.
“Cabros de Mierda”, que o Cine Ceará traduziu como “moleque do cão”, se passa em 1983, num Chile governado pelo general Augusto Pinochet, desde que triunfara o golpe militar responsável pela deposição (e pelo suicídio) do presidente, democraticamente eleito, Salvador Allende.
No ano do décimo aniversário do golpe, parte da população civil começa a resistir, na clandestinidade, mesmo sujeita a enfrentar a tortura, o encarceramento e, em muitos casos, a morte (inclusive com corpos sendo lançados ao mar a partir de helicópteros).
Num bairro popular (Población Victória) de Santiago, vive a fogosa Gladys (Nathalia Aragonese), de 32 anos, espécie de mãe adotiva do menino Vladimir, o Vlad (Elias Callado), de 8 anos, filho de um militante clandestino. Para atuar na mesma comunidade, chega a Santiago do Chile o jovem missionário Sammuel Thompson (Daniel Contesse), de 23 anos, vindo dos EUA. Ele traz uma bíblia, um reconfortante discurso religioso e uma câmera fotográfica. Passa seus dias pregando de casa em casa e fotografando populares. Até ser seduzido pela encantadora Gladys, a “francesinha”.
Histórias da vida cotidiana se somam a um pano de fundo político, marcado pela tortura e por incipiente resistência civil (opositores haviam sido mortos, encarcerados ou exilados e a ditadura comandada por Pinochet duraria até 1990). O filme conta com uma protagonista carismática, a fogosa Gladys, e encanta com o espirituoso moleque Vlad, que lembra o Totò (Salvattore Cascio, de “Cinema Paradiso”), apesar do exagero quase caricatural de seus imensos óculos.
O missionário Sammuel chega a Población Victoria como um ingênuo religioso e sofre mudanças no decorrer da sintética narrativa (90 minutos, contra os 112 da versão original). Na melhor sequência — protagonizada pelo estrangeiro — o pregador visita a casa de uma velha senhora para, além de difundir a palavra do Senhor, distribuir folhetos religiosos. Ela o escuta e, calmamente, dirige-se a um armário do qual retira dezenas de folhetos e pequenas bíblias que recebera de outros missionários. No que o espectador conclui: se Deus fosse — como garantiam as palavras do(s) missionários(s) — modificar tão humilde existência naquela pobre comunidade, não seria por falta de vozes pregadoras e publicações religiosas.
O filme — produzido com incentivo da Comissão pela Verdade, Memória e Justiça — peca por certo didatismo e, em alguns momentos, por abandonar a sutileza da comédia (temperada com delicadas doses de erotismo) e apostar no óbvio. Gonzalo Justiniano conheceu e vivenciou o regime ditatorial chileno em profundidade. Ele tinha 17 anos anos quando o golpe militar triunfou e vinte quando foi estudar Cinema na França, país onde permaneceu até 1983. Foi justo no ano do décimo aniversário do golpe, que ele recebeu, da TV francesa, a incumbência de realizar um documentário sobre o que se passava no país andino. Colheu farto material em bairros populares de Santiago, mas as fitas foram recolhidas pelas autoridades militares. Por sorte, ele fizera cópia (mesmo que em suporte precário) de seus registros. Este material está depositado no Museu da Verdade, Memória e Justiça. E foi ao revê-lo que o cineasta escreveu o roteiro de “Cabros de Mierda”.
Na abertura do filme, o missionário Sammuel Thompson, visto nos dias de hoje (portanto já quase sexagenário), visita a sede do Memorial, em Santiago, e examina centenas de fotos de opositores assassinados pela ditadura Pinochet, expostas em imenso painel-mural. Vemos, então, o ator Daniel Contesse envelhecido artificialmente. O papel (do missionário idoso) seria de Sean Penn, que completará 58 anos no próximo dia 17 de agosto. O ator californiano havia lido o roteiro, dado sugestões e aceitado interpretar o desafio. Só que tal decisão se deu no justo momento em que estourou o escândalo El Chapo (Penn teria sido responsabilizado, mesmo que de forma involuntária, pela prisão do capo do narcotráfico mexicano). O ator preferiu recolher-se até que cessasse o vendaval. Ficou fora de “Cabros de Mierda”, mas Gonzalo registra agradecimento a ele nos créditos finais do filme. E assegura que estão em novos entendimentos para um próximo projeto juntos, no qual Sean Penn poderá ser ator ou coprodutor.
O décimo longa de Gonzalo Justiniano foi lançado no Chile, e fez “boa carreira” no circuito de arte. E também “em salas alternativas, em clubes comunitários e sindicatos”. Isto depois de percorrer o circuito de festivais (Roma, Havana, Toulouse, Marselha, Buenos Aires). Em Marselha, foi eleito o melhor pelo Júri Popular e Nathalia Aragonese conquistou o troféu de melhor atriz. No Festival de Cinema Político, na Argentina, sagrou-se o melhor filme.
Justiniano pretende continuar trilhando o caminho do cinema político, temperando-o com doses de humor. Primeiro, porque não dá ouvido aos que dizem que ninguém aguenta mais filmes sobre a época da ditadura militar. “Como não?”, pergunta. E responde: “os que dizem isto são aqueles que apostam no esquecimento. Este período terrível faz parte da minha vida, eu o vivi e continuarei falando dele em meus filmes”. E o fará inspirado em grafite que viu registrado em muro colombiano, no qual estava escrito: “o único que pode nos salvar, Negro, é o humor negro”. Negro, nos países hispano-americanos, tem, entre outros sentidos, o de “cara”.
Antes da projeção de “Cabros de Mierda”, o público do Cine Ceará assistiu a três dos primeiros curtas-metragens da competição nacional: “A Ponte”, de Rafael Câmara, de São Paulo, cujo roteiro foi premiado por concurso do canal a cabo TNT; a animação carioca “Plantae”, de Guillermo Gehr, e ao ensaio poético “A Menina Banda”, do pernambucano Breno César. Este é, até agora, o melhor, mais inventivo e encantador dos filmes mostrados no Cine Ceará.
O diretor apresentou seu curta (quase média-metragem) com um fiapo de sinopse (“quando fui criança, achei que pudesse ouvir”).
“A Menina Banda” dura 25 minutos e resulta de mergulho em imagens e sons da gente brasileira, com silêncios e gestos potentes. Uma menina, a da banda, e os adultos e crianças que a circundam (o realizador os encontrou num ‘parcelamento’ do MST — Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra) ouve sonoridades que a fascinam. Deixa-se imantar, inclusive, pelos sons de uma banda de música que toca, em movimento, por trilhas em meio aos canaviais.
Sem contar uma história tradicional, o curta pernambucano nos fascina com suas imagens sublimes, sons, gestos e sensações. Não há diálogos, nem necessidade deles. Um filme sensorial, magnificamente fotografado pelo jovem cineasta, que é também fotógrafo (de cenas fixas) e diretor de fotografia (de curtas, longas e séries de TV).
“A Menina Banda” (encarnada pela carismática Sandrilaine dos Santos) ganha ainda mais significado ao externar seu amoroso e digno interesse pela “geografia da pele e dos gestos” de humilde gente brasileira. Um filme notável de um diretor-fotógrafo a quem devemos acompanhar com atenção e acuidade.