“Disco Boy”, inspirado no “Coração das Trevas” de Conrad, registra choque entre dois mundos

Por Maria do Rosário Caetano

“Disco Boy: Choque Entre Mundos”, de Giacomo Abbruzzese, realizador italiano radicado na França, chega nessa quinta-feira, 3 de agosto, aos cinemas de onze capitais brasileiras, de São Paulo a Rio Branco, no Acre, passando por Rio, Brasília, BH, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Fortaleza, Recife e Salvador.

O filme chega recomendado por sua participação na competição do Festival de Berlim, em fevereiro último, e pelo Urso de Prata atribuído à sua fotografia, assinada pela francesa Hélène Louvart, nome em alta no cinema europeu contemporâneo. Ela é diretora de fotografia de “A Vida Invisível”, premiado na mostra Un Certain Régard, em Cannes, e “Firebrand”, ambos do brasileiro Karim Aïnouz.

“Disco Boy” passou, cercado de vivo interesse, pelo Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, até porque contou com a presença de seu realizador, que veio de Paris para apresentar e debater seu primeiro longa ficcional. O cineasta lembrou os muitos anos dedicados à preparação de “Disco Boy”, das pesquisas de roteiro à união de atores de vários cantos da Europa e África, até a complexa produção que uniu França, Itália, Alemanha, entre outros países.

O roteiro, escrito sozinho por Abbruzzese, é fruto de longas pesquisas sobre a Legião Estrangeira, força auxiliar do Exército francês, e também sobre os conflitos no Níger, país africano, e a vida de dançarinas de lisérgicas casas noturnas, onde se somam música tecno e substâncias que buscam o êxtase.

Para protagonizar o filme, o diretor ítalo-francês convocou ator que vem fazendo muito sucesso no circuito europeu – o alemão Franz Rogowski. Com ele contracena elenco multilíngue, como a bailarina Laetitia Ky, o senegalês Morr Ndiaye e, também, Leon Lucev, Robert Wieckiewicz, Matteo Olivetti e Michal Balicki. Uma verdadeira Babel.

Rogowski começou a chamar atenção do meio cinematográfico com “Happy End” (Michael Haneke, 2017). Daí em diante, fez “Em Trânsito” e “Udine”, ambos de seu conterrâneo Christian Petzold, e não parou mais. Trabalhou com Terrence Mallick (“Uma Vida Oculta”), Sebastian Meise (“Great Freedom”), Andrea Arnold (“Bird”) e protagoniza, com Ben Whishaw (e Adèle Exarchopoulos), explosivo duo homoafetivo, perturbado pela chegada de uma mulher  (“Passagens”, de Ira Sachs, coescrito pelo brasileiro Mauricio Zacharias).

O resultado de “Disco Boy: Choque Entre Mundos” evoca abertamente “Apocalipse Now”, de Francis Ford Coppola, e, em certa medida, “Beau Travail”, de Claire Denis. Em Curitiba, depois de mostrar sua ficção ao público, Abbruzzese absteve-se de citar fontes cinematográficas, mas enunciou suas matrizes literárias – “No Coração das Trevas”, do britânico, de origem polonesa, Joseph Conrad (fonte do filme de Coppola), e os franceses “Viagem ao Fim da Noite”, de Louis Ferdinand Céline, e “Eu Matei”, de Blaise Cendrars. Este, poeta reconhecido, viveu a guerra por dentro e nela perdeu um braço.

Em “Disco Boy”, depois de prólogo sensorial e perturbador, povoado de corpos de imigrantes, acompanhamos os passos de Aleksei (Franz Rogowski), jovem bielorrusso, que deixa seu país, junto à algaravia de ônibus lotado, que leva torcedores de futebol à Polônia. A meta do rapaz e de amigo muito próximo é encontrar refúgio na França.

Após traumática e perigosa viagem pela Europa, ele chega a Paris e se engaja na Legião Estrangeira. Não há caminho mais fácil (embora terrivelmente difícil) de se ganhar a cidadania francesa, que ser um legionário. Afinal, engajar-se nesse braço armado do Exército francês recompensa os estrangeiros (os que sobreviverem, claro) com a honra de tornarem-se filhos legítimos da França.

A primeira missão do legionário Aleksei, depois de brutais treinamentos, se dará em solo distante e desconhecido, o Níger, país de 20 milhões de habitantes, ex-colônia francesa, que faz fronteira com a populosa Nigéria (205 milhões de cidadãos). À frente das forças rebeldes do país africano (ou de parte dele) está o guerrilheiro Jomo (Morr Ndiaye, ator estreante, então com 19 anos), ativista que se envolve com a luta armada para defender sua comunidade.

Os rebeldes liderados por Jomo sequestram cidadãos franceses. Caberá ao legionário Aleksei comandar operação-resgate, das mais sangrentas, naquele delta de rio, selvagem e alucinante. Ele necessita cumprir sua missão, pois rezam os estatutos da Legião Estrangeira “a cidadania francesa será atribuída aos que não a conquistaram pelo nascimento, mas pelo sangue derramado em nome da França”.

No debate em Curitiba, Giacomo Abbruzzese definiu sua principal intenção nesse filme que, como mostra o subtítulo brasileiro, apresenta “Choque Entre Mundos”. Ele quis “dar rosto aos dois lados do conflito bélico”. Ou seja, à Legião Estrangeira, com seus soldados submetidos ao brutal treinamento que lhes garantirá, depois de cinco anos, a cidadania francesa, e os africanos do Delta do Níger.

O cineasta ítalo-francês garantiu sentir-se incomodado com a “invisibilidade” dos contendores das guerras empreendidas por europeus e/ou norte-americanos. Ele conseguiu em parte seu intento. Deu rosto e algumas fortes sequências aos guerrilheiros do Delta do Níger. Mas o herói (ou anti-herói) do filme continua sendo o jovem Aleksei, de pele branca. Por sorte, a rebeldia do imigrante bielorusso e o final utópico construído na pista de dança de casa noturna europeia são provas incontornáveis de seu desejo de ir além. A dança que une Aleksei (Rogowski iniciou sua carreira como bailarino) e a jovem interpretada por Laetitia Ky beira o transe.

 

Disco Boy: Choque Entre Mundos
França, Itália, Alemanha, 2023, 91 minutos
Direção: Giacomo Abbruzzese
Elenco: Franz Rogowski, Laetitia Ky, Morr Ndiaye, Leon Lucev, Robert Wieckiewicz, Matteo Olivetti, Michal Balicki
Fotografia: Hélène Louvart
Distribuição: Pandora Filmes
Estreia: 3 de agosto em São Paulo, Rio, BH, Brasília, Curitiba, Florianópolis, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio Branco e Salvador
Classificação indicativa: 12 anos

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