“Salomé”, “Kabuki” e “Descamar” trazem novas representações da sexualidade ao Festival de Brasília
Foto: Equipe de “Salomé”, de André Antonio © Gustavo Alcântara
Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília (DF)
O longa “Salomé”, do pernambucano André Antonio, e os curtas “Descamar”, do brasiliense Nicolau, e “Kabuki”, do catarinense Tiago Minamisawa, trouxeram novas representações da sexualidade, do amor e do desejo à mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
A transgressão marca o segundo longa-metragem de André Antônio, integrante do coletivo Surto & Deslumbramento e pensador de propostas de ampliação do audiovisual queer. Suas fontes de diálogo estão em nomes como Andy Warhol, Kenneth Anger, Paul Morrissey, Werner Schroeter, enfim, a trupe da Factory nova-iorquina.
O que não significa que André construa seus filmes distanciado de seu território, a cidade do Recife, capital pernambucana. Com “Salomé”, o diretor (e roteirista) realiza um drama com ingredientes vindos da ficção científica, do film noir e do melodrama. E com pitadas de comédia.
No centro da narrativa está a modelo trans Cecília (Aura do Nascimento), recifense que vem consolidando sua carreira em São Paulo. Ela regressa à cidade natal para passar as festas natalinas com a mãe, Helena (Renata Carvalho, de “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”), mulher religiosa e dedicada ao lar.
A jovem modelo viverá com João (Fellipy Sizernando), colega de infância, paixão avassaladora, cheia de tesão. E com direito a sequência de sexo explícito (o filme tem recomendação para maiores de 18 anos).
No segundo encontro da modelo com João (o primeiro se dará na casa da mãe dela, quando ele faz reparos em cano hidráulico), os dois consumirão um tipo aditivado de loló (o carnavalesco lança-perfume). Em seu entorpecimento lisérgico, a jovem verá João encarnado, com resplendor e tudo, em São João Batista.
A paixão pelo rapaz só fará crescer. João, por sua vez, estará cada vez mais envolvido com os serviços que presta a uma estranha seita, dedicada ao culto da sanguinária princesa bíblica Salomé. Tal seita é liderada por homens de voz metálica (um deles interpretado por Everaldo Pontes).
Para estruturar o roteiro do filme, André Antonio, que é professor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), somou fontes e inspirações diversas. Uma delas, como não poderia deixar de ser, é a peça “Salomé” (1891), de Oscar Wilde. Outra, citada pelo cineasta, é um filme em Super 8 — “Noturno em Recife Maior” — realizado por Jomard Muniz de Brito na Recife da década de 1980.
Tais fontes, porém, são reinventadas pela imaginação do cineasta. Moderna, bem-resolvida e descolada, Cecília não se dará por vencida ao descobrir que João, além de envolvido com o comércio de entorpecentes, participa de rede de michês explorada pela seita. Ela vai reagir aos conselhos da mãe religiosa, que não vê no amigo de infância, o parceiro ideal para a filha. E vai rir de provocação da prima, que irá questioná-la: “você está disposta a virar ONG de macho?!”
Salomé, a princesa bíblica que exigiu a cabeça decepada de Yokanan (João Batista) numa bandeja, comporá a parte mítica do filme, na qual o diálogo com Oscar Wilde se tornará mais perceptível.
André Antonio, que realizou o longa “A Seita” (2015) e o média-metragem “Vênus de Nike” (2021), segue firme em seu propósito de realizar filmes queer que destoem das regras sedimentadas do cinema, inclusive o gay.
Para o diretor pernambucano, há que se confrontar os padrões de nossa sociedade “conservadora e rígida” e o “sexo higienizado que nos é oferecido por milhares de filmes”.
“Salomé” foi produzido com apenas R$2 milhões de reais. “De difícil captação”, apesar dos esforços envidados. André contou que ele e suas produtoras (lideradas por Dora Amorim) enfrentaram muitas dificuldades para reunir os recursos necessários ao filme. E que as mesmas dificuldades se fizeram presentes junto aos distribuidores. “Poucos, muito poucos, querem exibir filmes com sexo explícito”. Em regra, “não querem ver pessoas com tesão, pois preferem que o sexo seja mostrado de forma higienizada”.
Os intérpretes dos protagonistas Cecília e João deram seus testemunhos sobre suas participações no longa pernambucano. Aura do Nascimento, jovem artista trans, recifense como o cineasta, está muito satisfeita com a dupla representação da descolada Cecília e da princesa bíblica Salomé. Os desafios trazidos por tal protagonismo “foram crescendo cada vez mais” e ela os enfrentou “sem medo”.
Fellipy Sizernando, paraibano de Pocinhos, definiu-se no palco do Cine Brasília e no debate do dia seguinte como uma “bicha preta do interior”, que faz, com “Salomé”, sua estreia no cinema. Quando foi convidado a fazer teste para o personagem João, lhe perguntaram se participaria de sequência de sexo explícito.
“Claro!”, respondeu. E contou que já havia feito programa como michê e que esta não é a atividade que o resume. Fellipy vem de experiências no teatro e desempenha a função de “pai” numa comunidade de pessoas trans. E tem uma irmã gêmea que é travesti.
A jovem “bicha preta” contou que o teste (para o filme) se deu com a representação de sequência da qual ele gosta muito. João caminha com Cecília por rua recifense. Ele elogia a camiseta dela, muito bonita e descolada. E diz que um dia ele, João, também há de “elevar seu estilo”.
Nicolau, o brasiliense que assina o curta “Descamar”, é cineasta trans. Quando escreveu o roteiro de “Descamar”, ele ainda não havia feito a transição. O filme, o terceiro de sua trajetória (Nicolau é também professor de cinema, fotógrafo e escritor), se passa numa escola. Durante uma cansativa aula de matemática, a adolescente Gabi pede para ir ao banheiro. Lá, depara-se com gosma espessa e vermelha manchando sua roupa íntima.
Com citação de “Carrie, a Estranha”, de Brian de Palma, Nicolau constrói filme envolvente, que nos coloca em sintonia com os temores de Gabi. Ela antevê, frente à menstruação, a vida cheia de rituais pré-estabelecidos (o casamento, a maternidade) que a espera.
Tiago Minamisawa, diretor do premiado “Sangro”, participa com a única animação selecionada para a competição de curtas. Uma animação, registre-se, de beleza arrebatadora.
“Kabuki” soma, em quinze minutos, magníficos desenhos do artista a bonecos animados por stop motion. Para realizar seu terceiro curta (o segundo foi “Mensagem de uma Noite sem Fim”) ele consumiu nove anos de trabalho. Claro que alternados com outros projetos, como a HQ “Shamisen: Canções do Mundo”, finalista ao Prêmio Jabuti, e atuação como story producer do reality show “Drag Race Brasil”.
Para finalizar “Kabuti” — que lhe exigiu intensa pesquisa da iconografia japonesa e diversas versões de roteiro (feitas com consultoria de Valéria Rodrigues, Beatriz Pagliari e Bruno H. Castro) —, Minamisawa contou com a parceria de Alexandre Melot (da Wag Films francesa), de César “Rê Bordosa” Cabral (Coala Filmes, Amopix e Split Studio).
Pode parecer tempo e gente demais para realizar um filme de apenas 15 minutos. O resultado, porém, nos convence da complexidade do projeto e de sua exigente manufatura criativa.
Kabuti é um ser que reside em corpo masculino no qual não se reconhece. Ela parte, então, em busca de sua identidade. No debate do filme, Minamisawa lembrou a tradição do kabuki e do butô, tão fortes na cultura japonesa. E fontes inesgotáveis de beleza. Lembrou o mestre Kazuo Ono e a proibição, vinda de tempos imperiais, que retirou as mulheres da prática dessa arte milenar. Só no século XX elas poderiam voltar a praticá-la.
A Mostra Brasília, que une a Assembléia Legislativa do DF ao Festival de Brasília, exibiu mais três filmes — o longa documental “A Câmara”, de Tiago Aragão e Cristiane Bernardes, e os curtas ficcionais “Via Sacra”, de João Campos (que disputou o Kikito em Gramado), e “Xarpi”, de Rafael Lobo.
“A Câmara” reúne alguns dos nomes que compõem a bancada feminina do Congresso Nacional. Deputadas federais como Benedita da Silva, Alice Portugal, Celina Leão, Lídice da Mata, Maria do Rosário, Sâmia Bonfim e Alê Silva (entre outras) são registradas em suas atividades parlamentares, discutindo pautas ligadas aos direitos reprodutivos, à educação e à cultura, ao racismo, à polarização, ao estado laico e ao estado religioso (cultos evangélicos se multiplicam no conjunto legislativo desenhado por Oscar Niemeyer”).
A proposta do filme é mais instigante que o resultado. Depois de 89 minutos de registros observacionais, continuamos querendo saber mais sobre os projetos e embates vividos pelas deputadas num Parlamento dominado, em mais de 80%, por homens (são 91 mulheres e 422 homens, totalizando 513 representantes).
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