Dupla Idir & GCM desenha retrato ficcional do obsessivo “Monsieur Aznavour”, astro festejado da canção francesa
Por Maria do Rosário Caetano
Quatro anos atrás, o público brasileiro pôde desfrutar de cativante documentário sobre Charles Aznavour, o filho de armênios que se transformou, junto a Piaf, Trenet e Montand, em alma da canção francesa.
O sucesso do artista foi tamanho que ele chegou a ser chamado de “o Sinatra da França”. O documentário “Aznavour por Charles” trazia a assinatura de Marc Di Domenico. O cineasta construiu, com entrevistas e filmes domésticos (realizados pelo próprio Aznavour), envolvente retrato do baixinho de 1m64, compositor inspirado, dono de voz melodiosa e imenso poder de sedução. A ponto de conquistar o mundo, indo da pobreza (seus pais deixaram a terra natal nos anos seguintes ao “Genocídio Armênio”) à riqueza mais glamourosa. Aznavour morreu milionário e consagrado, aos 94 anos (em 2018).
Agora chegou a vez de “Monsieur Aznavour”, ficção sobre a trajetória do cantor, dirigida por Mehdi Idir e Grand Corps Malade. O filme estreia nos cinemas brasileiros nessa quinta-feira, 24 de julho, tendo o ator franco-argelino Tahar Rahim como protagonista absoluto. Um descendente do Magreb africano representando um descendente asiático-armênio.
Antes de falarmos do filme ficcional, somos obrigados a decifrar uma de suas assinaturas: “Grand Corps Malade (GCM)”.
Trata-se de um coletivo musical? Cinematográfico? Ou de um grupo teatral?
Nada disso. Trata-se do nome artístico do slammer e cineasta francês Fabien Marsaud, nascido em Saint Denis, há 47 anos. Atleta, ele foi vítima de grave acidente numa piscina. Sua coluna vertebral sofreu grave lesão. Os médicos previram que ele ficaria tetraplégico. Marsaud, porém, conseguiu recuperar-se depois de um ano de intensos cuidados médicos.
Hoje ele caminha, sempre apoiado numa bengala. Por medir 1m94 e sofrer as dores que o atormentam desde o acidente, o rapaz passou a dedicar-se à poesia de rua sob a identificação GCM (Grande Corpo Doente). E passou a dedicar-se, também, ao cinema. Primeiro, em curtas-metragens, depois, nos longas “Pacientes” e “Efeito Pigmaleão”, ambos assinados em parceria com Mehdi Idir.
O filme da dupla Idir & GCM foi um estouro de bilheteria na França. Vendeu 2.035.000 ingressos. Nada mal para dois realizadores na faixa dos 40 anos, nascidos em território de imigrantes. Recebeu quatro indicações ao César. Nenhuma nas categorias principais. Exceção para melhor protagonista, já que o desempenho de Tahar Rahim é respeitável. Mas o ator de “O Profeta”, “Samba” e “O Mauritano” perdeu para Karim Leklou, de “Le Roman de Jim”, dos Irmãos Larrieux. Nas categorias técnicas, perdeu para o exuberante, irresistível e caríssimo “O Conde de Monte Cristo”.
“Monsieur Aznavour” é uma cinebiografia que vai da infância pobre aos derradeiros anos. Tudo começa em solo francês (depois de imagens documentais darem conta do “Genocídio Armênio”). No lar pobre da família Aznavourian são cultivados gêneros musicais e danças típicas da Armênia. Aída, irmã de Aznavour (seu nome afrancesado), mostrava dotes para o canto. O menino também. Mas quem imaginaria que ele chegaria tão longe?
A dupla que escreveu e dirigiu “Monsieur Aznavour” constrói o seu Shahnour Vaghinagh Aznavourian (nome civil do artista) como um obsessivo, que, além de talento, dispunha de raro tino comercial. E de muita ousadia. Primeiro, o aspirante a artista tentará conseguir espaço em pequenas casas noturnas. E o fará com o amigo e compositor Pierre Roche (Bastien Bouillon). Mas as dificuldades serão imensas. Por sorte, a baixinha Edith Piaf (Marie-Julie Baup) aparecerá no caminho da dupla. Estimulará Aznavour, mas não tanto quanto ele esperava. La Môme o colocará na condição de seu motorista particular.
O filme dará, inclusive, uma cutucada na estrela da cancão pela voz de Aída, que definirá o irmão como “chofer da tirana”. As dificuldades continuariam quase intransponíveis, com ou sem a ajuda de Piaf. Ele alcançaria algum sucesso em Montreal, no Canadá. Mas e na França? Era a França que importava.
Depois de insistir com férrea persistência, Charles Aznavour conhecerá a fama. Mesmo tendo que alugar os mais solicitados teatros e casas de concerto do mundo (incluindo o Carnegie Hall de Nova York). Nas relações pessoais, conheceremos um homem seco, que dava mais apoio financeiro que afetivo aos familiares e esposas. Aliás, a se acreditar no filme, teria complicadas relações com as mulheres. Até conhecer a sueca Ulla Torsel (Petra Silander).
A dupla de diretores franceses conseguiu realizar uma boa cinebiografia do criador de sucessos como “La Bohème”, “Sa Jeunesse”, “Les Émigrants”, “Les Deux Guitarres”, “La Mamma” e “She” (“Elle”), peça de resistência da trilha de “Um Lugar Chamado Notting Hill”, aquela irresistível comédia romântica protagonizada por Julia Roberts e Hugh Grant.
Como Aznavourian cresceu na França ocupada pelos nazistas, o filme fará questão de deixar claro que sua família não fora pactária com os colaboracionistas de Hitler. Por sorte, mostrará, nesse trecho, pelo menos uma cena original. Quando abordado na rua por militar que caçava judeus, o adolescente reafirmaria sua origem armênia. O inquiridor o mandaria abaixar as calças. Assim teria certeza se ele era (ou não) circuncidado.
Há outros bons momentos de contextualização histórica. Veremos pontes explodidas pelos aviões das Forças Aliadas, responsáveis pela interrupção de deslocamentos motorizados. Aznavour e Roche faziam pequenas apresentações em pequeninas cidades. Dependiam dos ônibus. Como diria Simone de Beauvoir em suas memórias, nunca se andou tanto de bicicleta na França como naquela época. “Monsieur Aznavour” confirma essa percepção e mostra a dupla perambulando em modestas bikes.
Para lembrar que Aznavour era um filho de imigrantes (como Idir e GCM), os diretores o mostrarão como vítima de racismo explícito. Críticos franceses chegariam a qualificá-lo como “gitano, anão, similar de Quasímodo” (o corcunda de Victor Hugo), em busca obsessiva pelo reconhecimento, “sem talento para a música”. Mas a fama chegaria. E ele compraria mansões e barcos, usaria luxuosos casacos de pele, carros das mais sofisticadas marcas, receberia Sinatra (péssima escolha do “sósia”) e Samy Davis Jr em seu camarim. Gravaria com Johnny Halliday, astro roqueiro, e obrigaria seus detratores a dobrarem-se ao seu talento.
As estatísticas confirmariam seu sucesso planetário: 180 milhões de discos vendidos, atuação em 60 filmes (dois deles, “Atirem no Pianista”, de Truffaut, e “O Tambor”, de Schlöndorff), comporia 850 canções, a maioria em francês, e outras tantas em inglês (150), em espanhol (70) e em alemão (50).
Quem gostou de “Piaf” (Olivier Dahn, 2007), que rendeu o Oscar à sua protagonista Marion Cottilard, poderá gostar de “Monsieur Aznavour”. São biografias da infância ao túmulo, de narrativa clássica, com dezenas de canções na trilha sonora. Claro que Tahar Rahim não entregará desempenho mimético como o de Cottilard. Ele não se parece com Aznavour. Mas não compromete. E as duas horas e 14 minutos de narrativa passam céleres.
Monsieur Aznavour
França, 2024, 134 minutos, 14 anos
Direção e roteiro: Mehdi Idir e Grand Corps Malade
Elenco: Tahar Rahim (Aznavour), Camille Moutawaki (Aída Aznavour), Bastien Bouillon (Pierre Roche), Marie-Julie Baup (Edith Piaf), François Girard (Michel Cerdan), Benjamin Cléry (Charles Trenet), Lionel Cecilio (Gilbert Bécaud), Victor Meutelet (Johnny Hallyday), Petra Silander (Ulla Torsel, esposa sueca de Aznavour), Tigran Mekhitarian (Missak Manouchian), Soufiane Guerrab (Edouard, irmão de Aznavour), Rupert Wynne-James (Sinatra), Jowee Omicl (Sammy Davis Jr)
Fotografia: Brecht Goyvaerts
Montagem: Laure Gardette
Música: Varda Kakon
Direção de Arte: Stéphane Rozenbaum
Figurino: Isabelle Mathieu
Distribuição: Imovision
