Aldo Baldin, tenor que dedicou sua existência à música, tem trajetória reconstituída em documentário de Yves Goulart
Por Maria do Rosário Caetano
O longa documental “Aldo Baldin – Uma Vida pela Música”, do catarinense Yves Goulart, chega aos cinemas brasileiros nessa quinta-feira, 31 de julho.
O filme desenha vibrante cinebiografia, ou como prefere o realizador ,“uma homenagem afetuosa” do tenor catarinense Aldo Baldin (1945-1994), que fez carreira de grande êxito na Europa, tendo a Alemanha como território irradiador. Mas que segue aqui um “ilustre desconhecido”. Primeiro, por sua morte precoce, aos 49 anos, em solo alemão (onde está enterrado) e, segundo, pelo pouco espaço dedicado, pelos brasileiros, à música erudita, em especial o canto lírico.
Há algumas coincidências entre a vida do tenor e a do cineasta. Os dois nasceram na pequena Urussanga, interior de Santa Catarina, separados por três décadas (se Aldo fosse vivo, estaria festejando seus 80 anos; Yves tem 50). Os dois foram viver no exterior. O cantor lírico, na Europa. O realizador de “Uma Vida pela Música” divide-se entre o Brasil e os EUA.
Goulart não conheceu o conterrâneo ilustre. Até que, 15 anos atrás, o acaso inseriu a vida do tenor em sua história de jovem cineasta. “Eu estava preparando a trilha sonora de um de meus filmes e deparei-me, na capa de um disco, com imagem da Igreja Matriz de minha cidade natal. Fui tomado pelo desejo de conhecer a trajetória musical daquele artista que escolhera uma foto da Matriz de Urussanga para ilustrar aquela capa”.
As descobertas foram tão apaixonantes que o urussanguense dedicou 14 anos de sua existência a construir o longa documental que agora chega aos cinemas. E prazo tão elástico fez-se necessário por várias razões: orçamento baixíssimo (apenas R$100 mil), a necessidade de ouvir testemunhos de estudiosos, músicos, amigos e familiares de Aldo Baldin, espalhados pelo Brasil e pela Europa, em especial a Alemanha, onde vivem a viúva Irene Flesh Baldin e suas filhas Serena e Sofia. E onde Aldo viveu seus melhores momentos como artista. Para complicar, Goulart teria que adquirir materiais de arquivos visuais e sonoros de emissoras de TV e casas de ópera espalhadas por quatro continentes. Quem lida com cessão de direitos autorais sabe que os valores são, muitas vezes, incompatíveis com os reduzidos orçamentos dos filmes.
“Esse documentário jamais seria realizado” – conta o cineasta – “se eu não tivesse contado com a colaboração generosa da Família Baldin e dos muitos amigos que ele deixou”. E foram, realmente, muitos os que evocaram o trabalho do artista catarinense. Os brasileiros Edino Krieger, Isaac Karabtchevsky, Lilian Barretto, Fernando Portari, José Araújo Filho e Maria Lúcia Godoy (1924-2025), num de seus últimos (talvez o último!) testemunhos gravados para o cinema, são alguns deles. E europeus como Helmut Rilling, Hera Lind, Neville Martinez, Rolf Beck, Bernhard Gärtner, Robert Saccà, Peter Lika e muitos outros.
No total, há testemunhos de 34 pessoas. E que ninguém pense que Yves Goulart, que assina (além da direção) o roteiro, a fotografia, a montagem e a produção executiva — realizou um filme amador. De forma alguma. O documentário se constrói, sim, com narrativa clássica, no estilo ‘cabeças-falantes’, mas não cansa. Os depoimentos são registrados com estilo e ótima qualidade técnica. E há rico acervo de imagens do artista nos mais diversos palcos do mundo, na Europa, Oriente Médio, Ásia e Américas.
Goulart teve a sorte de encontrar rico e matizado testemunho do próprio Aldo Baldin. Antes de sua morte precoce, o tenor gravou o que seria a base de livro autobiográfico. Não teve tempo de terminá-lo, mas legou à posteridade material valiosíssimo, pois pautado pela franqueza e desprovido de vaidade.
Aldo Baldin lembrará sua origem pobre (filho de lavradores de pouca instrução), família grande (nove irmãos) e o meio em que cresceu, marcado pelo pouco interesse pela arte. E pela música lírica, que o apaixonava, mas parecia abstrata demais para colonos humildes e movidos pelo senso prático. Os pais queriam que ele fosse padre, motivo de orgulho numa família de imigrantes oriundos da católica Itália. Ele insistiu, tentou a carreira no Rio e foi parar na Alemanha.
Sua voz encantou o meio musical germânico, mas Baldin lembrará as imensas dificuldades que o cercaram. Seu tipo físico não era o esperado para um tenor lírico. Era baixinho, careca, roliço. Em meio a tenores vistosos, altos e bonitões, ele parecia o patinho feio. Tanto que muitos o incentivaram a optar pelo papel de “tenor buffo”, aquele que desempenha papéis cômicos nas óperas.
Aldo Baldin resistiu o quanto pôde. Insistiu no canto lírico e dividiu-se entre a gravação de uma centena de discos e o magistério. Ao tornar-se professor, colaborou com a formação de muitos discípulos. E manteve-se, decidido, longe do registro buffo. Workaholic contumaz, o catarinense mal pôde acompanhar o nascimento e crescimento das filhas. Contava, na retaguarda, com a compreensão e colaboração da esposa Irene, nascida em Blumenau. Paixão fulminante entre os dois fez com que se cassassem quatro meses depois de se conhecerem. Para dedicar-se a ele e às filhas, que eram crianças quando o pai morreu, a jovem companheira de Aldo abandonou sua promissora carreira de violoncelista.
Serena e Sofia, cidadãs alemãs que se expressam em português perfeito, são vistas em filmes domésticos (e já adultas evocando lembranças). Num deles, elas brincam na neve com o pai. São registros de afeto familiar, que servem de contraponto à franqueza desconcertante dos depoimentos germânicos. Muitos dos profissionais da terra de Bach não se esquivam de abordar assuntos difíceis, como o salário mais baixo recebido pelo brasileiro, que cantava no mais perfeito registro da língua germânica. Mas, no dia-a-dia, falava alemão como um imigrante. Afinal, até os vinte e poucos anos, ele desconhecia o idioma.
Quem aprecia o canto lírico tem um encontro marcado com “Aldo Baldin – Uma Vida pela Música”. E com a obstinação de Yves Goulart, que não mediu esforços para tirar seu conterrâneo do esquecimento.
Aldo Baldin – Uma Vida pela Música
Brasil, 2025, 114 minutos
Direção, roteiro, fotografia, montagem e produção executiva: Yves Goulart
Trilha musical: Irene Flesh Baldin
Depoimentos: Isaac Karabtchevsky, Edino Krieger, Helmut Rilling, Hera Lind, Neville Martinez, Rolf Beck, Celso Antunes, Fernando Portari, Irene Flesh Baldin, viúva do artista, e suas filhas, Serena e Sofia Flesh Baldin
Idiomas: alemão, inglês, espanhol e português
Distribuição: Bretz Filmes
Cinemas: Rio (Cinesystem Botafogo e Cine José Wilker), São Paulo (Cinesystem Frei Caneca e Espaço Petrobras), Florianópolis (Paradigma Cinearte), Recife (Cinema da Fundação), BH (Cine UNA Belas Artes), Brasília (Cinesystem)
