Lanari Bo analisa o cinema da Rússia e da Ucrânia em tempos de guerra
Por Maria do Rosário Caetano
Cinco anos depois do obrigatório “Cinema para Russos, Cinema para Soviéticos”, o professor da UnB, diplomata e cineasta João Lanari Bo lança mais um livro sobre o cinema eslavo. Dessa vez, seu foco recai sobre “O Cinema em Tempos de Guerra” entre Rússia e Ucrânia.
O novo livro, encapado com imagem de “Leviatã”, drama arrebatador de Andrei Zviaguintsev, chega como importante contribuição empenhada em sanar uma de nossas graves carências bibliográficas. Afinal, são raros os livros, em registro português-brasileiro, disponíveis em nossas bibliotecas.
Depois de “Cinema para Russos, Cinema para Soviéticos” (Bazar do Tempo, 2020) houve um alento. Chegaram às livrarias três publicações de significativa importância, todas sobre cineastas e filmes dos tempos da URSS: “Cinema Soviético de Mulheres”, organizado por Marina Cavalcanti Tedesco e Thaia Carvalho Senna (Nau Editora, 2021), “Cine-Olho: Manifestos, Projetos e Outras Escritos”, de Dziga Vertov, organizado por Luís Felipe Labaki (Editora 34, 2022), e “Minha Vida é o Cinema em Plano Fechado”, de Esfir Chub (Kinoruss, também de 2022).
João Lanari Bo planejava um segundo volume sobre a trajetória do cinema russo e soviético, que se iniciasse onde terminara o primeiro (1968). Mas a guerra da Rússia contra a Ucrânia o motivou a analisar o cinema das duas ex-Repúblicas Soviéticas a partir, justamente, do conflito bélico.
Como fizera no primeiro volume, o professor de Cinema da Universidade de Brasília (UnB), pautou-se pelo rigor dos pesquisadores universitários, sem jamais descuidar-se do texto. Sua escrita segue complexa, sintética e envolvente. Afinal, além de analisar os filmes e os tempos históricos em que foram produzidos, nos atrai com informações surpreendentes, espantosos dados de bilheteria e curiosidades que nos impressionam. Por exemplo: sabermos que, mesmo em tempos de socialismo e busca do “homem novo”, o grande público trocava filmes de Eisenstein, Vertov e Tarkovsky por títulos ambientados na era ‘disco’ indiana e por uma cigana mexicana.
Num dos momentos surpreendentes do livro, saberemos que Joseph Stalin, o gestor que governou o grande país eslavo, com mão de ferro, por 29 anos, “não defendia o melodrama como linguagem preferencial do cinema soviético”.
A partir de reflexões do crítico russo Evgueni Margólis, Lanari pondera que “na era stalinista, o melodrama era ‘ideologicamente irreconciliável’ com o cinema da URSS, por seu ‘interesse burguês’ (concentrado) na esfera privada, além do sentimentalismo”. Por isso – afirma o brasileiro – “o gênero (melodrama) só se afirmaria na década de 1960, quando a exigência de discurso crítico ‘anti-burguês’ foi sendo gradativamente suprimida”.
Já com outros gêneros cinematográficos, “como o policial/detetive e a comédia musical, a adaptação para a indústria cultural soviética foi mais fácil”. E contou com “a importação e o sucesso de filmes da Índia e México”, que “estimulou os cineastas soviéticos a produzir melodramas”.
O mais famoso dos melodramas da URSS é “Moscou Não Acredita em Lágrimas”, de Vladimir Menshóv, de 1984, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro e capaz de mobilizar 84 milhões de espectadores nos cinemas das 15 Repúblicas Soviéticas (ver abaixo tabela com bilheterias dos tempos da URSS).
“Cinema para Russos, Cinema para Soviéticos” conta a história do audiovisual na Rússia dos tempos pioneiros e do imenso país chamado União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Portanto, de 1896, quando o cinema nascia no país eslavo, então um império czarista, passando pela Revolução de 1917 e destacando diretores geniais, como Eisenstein, Pudovkin e Dziga Vertov, e chegando ao emblemático ano de 1968.
O novo volume não traz datação tão precisa. E, além do mais, seleciona apenas duas Repúblicas – a russa e a ucraniana. Ambas fizeram parte da outrora poderosa URSS. Após 1991, com a queda do socialismo, transformaram-se em nações independentes. Há três anos, enfrentam-se em guerra fratricida.
Lanari mostrará a onipresença de conflitos bélicos entre o imenso país eurasiano, a Rússia, e as repúblicas que o cercam. E, como não poderia deixar de ser, lembra filmes que registraram a Segunda Guerra Mundial, na qual a União Soviética enfrentou, ao lado dos Aliados, a invasão nazista, iniciada em solo da Ucrânia.
Num trecho de “Rússia, Ucrânia e o Cinema em Tempos de Guerra’, o pesquisador cita (página 112) análise de Gregory Carleton, professor de Estudos Russos na Tuffts University, nos EUA, que sintetiza em poucas linhas o belicismo do país eslavo: “o Nacionalismo russo seria pavimentado por um excesso de mortes, heróicas por certo, mas morbidamente fora de proporção”.
Os dados comprovam: na Segunda Grande Guerra, os EUA perderam 450 mil militares e não tiveram seu solo continental devastado. A URSS perdeu 10 milhões de soldados, que somados às perdas civis ultrapassam 20 milhões de soviéticos. E viu cidades inteiras destruídas (caso de Stalingrado) e povoados e vilas varridos do mapa.
O livro de Lanari começa com capítulo dedicado a Aleksándr Dovjénko, diretor de “Terra” e “Aerogrado”. Um ucraniano apaixonado por sua região de origem, mas que dedicou-se, com ardor, ao projeto socialista da grande URSS.
O realizador ucraniano e sua obra abrem o bloco “Revolução Bolchevique, Ainda”, que se complementa com mais nove capítulos, construídos com imensos cortes cinematográficos e elipses. Um exemplo – o capítulo 2 (“Cold Turquey e Revolução”) — abordará um filme de 2008, portanto uma obra contemporânea e distante dos anos vividos por Dovjénko (1894-1956). Em foco, o longa-metragem “Morfina”, de Aleksei Balabánov.
Este filme, realizado 17 anos atrás, recupera narrativa ambientada em 1917, ano da Revolução Burguesa (de fevereiro) e da Revolução Bolchevique (de outubro). Sua trama se passa num vilarejo gelado. O protagonista (um médico, o Dr. Poliakov) é mandado para lugar ermo, um verdadeiro fim de mundo. Lá será recebido por um paramédico e duas enfermeiras. E acabará tornando-se um junkie. Um adicto da morfina. Lanari apresenta impressionante análise do filme, recomendado, na Rússia contemporânea, para maiores de 21 anos.
No terceiro capítulo (“Cine-Olho: A História da Guerra Civil”), o livro relembrará o impacto causado — em festivais mundo afora (e entre nós, no É Tudo Verdade 2022) — pela exibição de “A História da Guerra Civil”, o “filme perdido” de Dziga Vertov (ou Viértov, como reza a nova grafia).
Um documentário que caiu no ostracismo, decerto por mostrar o papel crucial de Leon Trotski no comando do Exército Vermelho. Por sorte, o filme, com 94 minutos se duração, sobreviveu ao ostracismo por um século inteiro, realizado que foi em 1921.
Deixemos para o leitor o prazer de percorrer as cinco outras partes do livro, cada uma com, no mínimo, cinco capítulos. Todos sustentados em fontes respeitadas e desenvolvidos com habilidade. “Estagnação”, a parte dois, vai lembrar a chamada “era estagnada” comandada por Leonid Bréjnev.
Outro capítulo, dos mais descolados, nos colocará no embalo do rock’nd roll, ritmo anglo-saxão que incomodou muitas gerações de dirigentes soviéticos. Entre os filmes citados em “Rock e Cinema: Transgressão e Transição na URSS” estão produções que marcaram época como “Taxi Blues”, de Pavel Lounguine (1990, um ano antes da débacle socialista) e “Verão”, de Kirill Serébrennikov, realizado 28 anos depois, portanto, já na era Putin.
No bloco três (“O Fim de Uma Era”) chegamos aos tempos de Gorbatchov, o dirigente que o Ocidente amou e a URSS (ou o que restou dela) passou a odiar. Quando ele se candidatou a presidente da Federação Russa, em eleições livres, alcançou mísero 1% dos votos.
No capítulo “Gorbatchov e o Cinema da Perestroika”, Lanari analisará o impacto do V Congresso dos Cineastas da URSS, ocorrido em 1986. Caía por terra o domínio do cineasta (e ator) Sergei Bondarchuk, diretor do monumental “Guerra e Paz”, Oscar de melhor filme estrangeiro em 1966. Ele, que comandara o Goskino (Comitê Estatal para a Cinematografia da URSS) foi destituído pelos ventos liberalizantes. As palavras de ordem de então são resumidas pelo brasileiro: “abaixo o ‘diktat’ dos burocratas, pela desestatização do cinema e introdução no mercado, abaixo o Goskino! Salve o Cinema Independente!”
Nomes de grande importância viriam somar-se ao genial criador de “Solaris” e “Stalker”, Andrei Tarkovski. Primeiro, o também genial Elem Klimov, autor de um filme que tem tudo a ver com o espírito bélico que tanto ensanguentou a terra russa e a das repúblicas que a cercam – “Vá e Veja” (1984), hoje considerado um dos maiores filmes de guerra de todos os tempos.
Lanari analisará “Vá e Veja”em capítulo empolgante: “A Escritura do Desastre” (a partir da página 159). Vale destacar um pequeno trecho: “As soluções que (Klimov) utiliza para imergir o espectador nessa barbárie são altamente eficazes e ousadas – um filme (quase) hático, ou seja, tátil, próprio para tocar e sensível ao tato. Háptico: correlato tátil da óptica (para o visual) e da acústica (para o auditivo). Nunca no cinema os efeitos da explosão de uma bomba – sonoros, epidérmicos, psíquicos – foram vivenciados com tal intensidade, sobretudo por aqueles que apreciam o espetáculo no conforto da poltrona, de preferência na sala de exibição”.
E mais: Em “Vá e Veja”, “surdez e desorientação tomam conta da experiência fílmica, fazendo com que os espectadores se sintam no interior das vibrações da guerra, do desastre. Ondas acústicas e transfigurações ópticas detonam a estabilidade do olhar”.
O livro prosseguirá com sua parte quatro (“Pós-Comunismo”), cinco (“Cinema em Zonas de Conflito”) e seis (“Guerras Culturais”) até encerrar-se com ricas Referências Bibliográficas e Índice Onomástico. Só faltou a Filmografia com todas as obras citadas, já que resultam precários, em língua portuguesa, verbetes de filmes russos (e ucranianos).
Ao chegar à página derradeira, a de número 328, o leitor terá empreendido rica viagem pelo cinema da URSS, da Rússia e da Ucrânia. Serão lembrados nomes (e grupos como que realizou o Projeto DAU), que construíram e continuam construindo o cinema eslavo contemporâneo (tão distante das telas brasileiras).
Vale citar os mais recorrentes – Aleksey German (pai e filho), os irmãos Nikita Mikhalkov e Andrey Konchalovsky (com bela análise de “Caros Camaradas – Trabalhadores em Luta”, de 2020), Gleb Panfilov (“Tema”), Alexandr Sokurov (“A Arca Russa”, “Fausto”, “Francofonia: Louvre sob Ocupação”, entre outros), Tengiz Abuladze (“Arrependimento sem Perdão”), Sergei Loznitza (“Donbass”, “Minha Felicidade”, “Na Neblina”, “Funeral de Estado”), o diretor mais estudado deste-neste livro; Vitali Mánski (“um documentarista ucraniano na terra de Putin”); Timur Betkambektov (“Perfil”) e Maksín Nakonétchni (“Visão de Borboleta”).
Andrei Zviáguintsev, diretor do apaixonante “Leviatã”, premiado (melhor roteiro) em Cannes 2014 e com o Globo de Ouro de filme em língua não-inglesa, além de encapar o livro de Lanari, faz jus a capítulo inteiro (“Zviáguintsev, o Cinema e a Guerra na Ucrânia”). A análise de “Leviatã” (“Ou a Serpente do Mar Contra o Patriarca Jó”) se desdobrará em “Leviatã ou a Economia Política da Cultura”.
Para Lanari, o filme foi “extremamente bem-sucedido em explorar fissuras do contrato social na Rússia pós-soviética, ou seja, anos de 1990 em diante. O Estado e seus aliados ideológicos são a fonte de instabilidade que ameaça seus próprios cidadãos – ao enunciar essa premissa, ‘Leviatã’ coloca em juízo autoridades, a forma como o poder é exercido e, no limite, os valores russos autênticos”.
Destaque ganhará, também, Kirill Serébrennikov, diretor de “A Esposa de Tchaikóvski’, que ousou mexer com a sexualidade de um dos maiores nomes da cultura eslava, o compositor de “O Lago do Cisne” e “O Quebra-Nozes”. Ao destacar a homoafetividade do grande artista, o cineasta desagradou a Vladimir Putin e à conservadora sociedade russa. O inquieto realizador de “Verão” acabou arrumando as malas e partindo, de vez, para o Ocidente. Hoje vive entre a Alemanha e a França.
Dois nomes femininos, ambos de primeira grandeza – Larissa Chepítko (“A Ascensão”, vencedor do Festival de Berlim em 1977) e Kira Morátova (“Síndrome Astênica”) — ganham o relevo merecido.
Uma curiosidade: no ano seguinte ao triunfo berlinense, Larissa regressou ao festival e integrou o júri ao lado da brasileira Ana Carolina (“Mar de Rosas”). Que relembra o convívio com a realizadora soviética em relato a Evaldo Mocarzel, na Coleção Aplauso (Imprensa Oficial de SP, 2010).
O livro de Lanari nos contará de duas mortes prematuras – a da própria Larissa Chepítko, companheira de Elem Klímov, e a do jovem ator Sergei Bodróv Jr, filho do diretor de “O Prisioneiro das Montanhas”, baseado em conto de Tolstoi, e da superprodução “O Guerreiro Gengis Khan”.
A morte de Bodróv Júnior é lembrada na página 30. Ele foi um dos três “Bs” do polêmico “Morfina”: um filme dirigido por Balabánov, baseado em Bulgákov (1891-1940), e protagonizado pelo jovem Bodróv. Em 2002, quando contava 30 anos, o ator, no auge do sucesso, foi esquiar. Uma avalanche de gelo e lama o vitimou. Para desespero do pai-cineasta, hoje com 77 anos.
Mikhail Bulgákov, autor da fonte literária que gerou “Morfina” (“Anotações de um Jovem Médico”, publicado em 1925-26), reuniu suas experiências como médico (viciado em morfina) no livro “Um Coração de Cachorro”.
Bodróv Jr, ator-fetiche de Balabánov, foi — além de protagonista do filme — o roteirista responsável pela adaptação das memórias do escritor russo, autor, também, de “O Mestre a Margarida”. Este clássico eslavo foi publicado, postumamente, em 1966. Obra referencial, de alma satírica, o livro recebeu várias adaptações para o cinema. A versão mais recente (lançada em 2024) traz a assinatura de Michael Lockshin, e causou furor e polêmica na Rússia.
A morte de Larissa Cheptiko (1938-1979) foi igualmente surpreendente. Ela buscava locações para um novo longa-metragem, passados menos de dois anos da conquista do Urso de Ouro. Um acidente de automóvel a vitimou aos 41 anos. O viúvo Klimov, que poucos anos depois (1984) dirigiria o épico “Vá e Veja”, dedicou a ela um poético curta-metragem. E mais: filmaria o roteiro — “Adeus”, baseado no livro “Adeus a Matiora” — idealizado pela esposa. Aquela partira de forma tão dolorosa e inesperada.
Rússia, Ucrânia e o Cinema em Tempos de Guerra
Autor: João Lanari Bo
Editora: Confraria do Tempo
Páginas: 328 (fartamente ilustradas)
Preço: R$149,00 (edição física)
Onde comprar: Confraria dos Ventos, Livraria Travessa e Amazon
MAIORES BILHETERIAS DA ERA SOVIÉTICA (em número de ingressos)
A URSS contava com 150 mil salas e 138 mil clubes de exibição
. “Yesenia, A Cigana”, de Alfredo Crevenna ……………………………. 91 milhões (México)
(*) Um filme soviético, para se pagar, na era socialista, necessitava vender acima de 17 milhões de ingressos
