Gramado mostra transexual indígena e longa que revigora o cinema social

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado

O jovem realizador matogrossense Rafael Irineu deu o tom político à terceira noite do Festival de Gramado ao anunciar curta-metragem de nome enigmático: “Majur”. Mas não o fez com palavras de ordem, nem citando nomes civis (ou militares). Referiu-se, primeiro, a um “candidato presidencial racista, machista e homofóbico”, para, em seguida, desconstruir slogan da bancada ruralista. Sereno, avisou: “o agronegócio mata, o agronegócio não é pop”.

Quando “Majur” bateu na imensa tela do Palácio dos Festivais, o público entendeu a quem se referia o documentário de Irineu. A um jovem indígena, de nome Gilmar, chefe de comunicação de uma aldeia matogrossense, bilíngue (bororo e português) e desenvolto no manuseio de redes sociais. Foi no facebook que Gilmar, homossexual assumido, encontrou amigos (e inimigos homófobos) e aceitou a sugestão de trocar seu nome para Majur. O que o potente curta matogrossense faz, com delicadeza e zero de sensacionalismo, é mostrar o processo de transição de Gilmar para Majur. Uma transformação libertadora, mas que enfrentou barreiras. Os pais do jovem só agora começam a aceitar a opção do filho. Durante todos o processo de filmagem, que foi longo e respeitoso, o cineasta teve que chamar Majur de Gilmar, sempre que estivesse diante de seus genitores.

O filme, muito aplaudido, dialogou de forma privilegiada com o outro curta da noite, a animação “Plantae”. Outro libelo em defesa da diversidade. Mas, no caso, da preservação de espécies do reino vegetal. Com um belo desenho, o diretor Guilherme Gehr conta história aparentemente simples. A natureza exuberante recebe a visita de madeireiro acompanhado de sua potente motosserra. O predador escolhe a árvore mais frondosa e altaneira para cortar. Só que, na metade do filme (de apenas dez minutos), há uma reversão de registro (do realismo para o mágico) e a Natureza reage em nome da vida.

Como parte da noite de domingo foi dedicada à entrega dos troféus aos melhores filmes do Gauchão (Mostra Competitiva Assembleia Legislativa de Curtas do Rio Grande do Sul), só um longa-metragem foi exibido: o instigante “Mormaço”, da cineasta, montadora e roteirista Marina Meliande, parceira de Felipe Bragança em projetos como “A Fuga da Mulher Gorila” e “Alegria”.

“Mormaço” traz, já em sua abertura, cena de rara potência sensorial. A defensora pública Ana (interpretada pela atriz Marina Provenzzano), protagonista absoluta do filme, desaparece sob densa e brutal poeira de cimento e cal vinda de demolição de obra civil. Cenas documentais nos mostrarão o tempo e o território que ambientam a narrativa: o Rio de Janeiro, cenário de dois mega-eventos (a Copa do Mundo e as Olimpíadas).

Ana atuará, especificamente, junto aos moradores de Vila Autódromo, comunidade carioca que reagiu com vigor ao processo de desocupação promovido pelo Estado e seus aliados (a especulação imobiliária e sua irmã siamesa, a construção de grandes empreendimentos de engenharia-e-arquitetura). Em 2013, Marina documentou a luta. A partir do rico acervo de imagens e depoimentos — e em parceria com Felipe Bragança — ela escreveria o roteiro de “Mormaço”.

Uma equipe de atores profissionais (vinda, em especial, do teatro e composta com Marina Provenzzano, Pedro Gracindo, Analu Prestes, Márcio Vito, Igor Angelkorte e Diego de Abreu) somou-se a “atores sociais” (liderados por Sandra Maria, que fizera teatro, anos antes, mas aparece no filme em seu papel real, o de liderança do movimento de resistência de Vila Autódromo).

O filme se realizou tendo, como principal locação, um edifício que deveria ser desocupado para dar lugar às obras de “modernização” do Rio. Alguns inquilinos, porém, optam pela resistência, negando-se a vender seus lares. Em especial, Dona Rosa (Analu Prestes). Confrontos de policiais com os moradores (inclusive famílias Sem-Teto, que buscarão abrigo, mesmo que temporário, nos apartamentos vagos) se darão, enquanto a defensora pública Ana vai somatizando em seu próprio corpo as dores daqueles que têm suas vidas transtornadas pelos poderes constituídos.

Elementos poéticos e fantasmagóricos irão ganhar espaço na narrativa. Feridas se multiplicarão pelo corpo de Ana e o filme acrescentará ao rico material documental — e ao processo de vida dos personagens, realizado em tom quase naturalista — bem medidas doses de horror. A mistura de registros tão díspares não desandará. Ao contrário, comporá um todo orgânico e perturbador. “Mormaço” dialoga, em alguma medida, com filmes recentes como “Era o Hotel Cambridge” e “Aquarius”. E intensificará sua proposta de origem, um drama político-social, com elementos do cinema de gênero. Com um quê de “Possessão”, do polonês Zulawski, e clássicos assemelhados. Sem dúvida, este é o melhor e mais consistente filme de Marina Meliande (e seu parceiro Felipe Bragança).

Durante o debate do filme, o produtor Leonardo Mecchi preferiu substituir a narrativa de histórias de bastidores por uma denúncia: o sucateamento das políticas públicas do audiovisual, mantidas pela Ancine, na última década. Tais políticas — assegurou — apostavam na diversidade e vinham gerando filmes de todos os tipos e em todas as regiões do país. Só que tais políticas estão sendo substituídas por postura concentracionista e surpreendente catalogação de realizadores por sua “produtividade comercial”. Mecchi narrou o que se passa neste exato momento: a Ancine (Agência Nacional do Cinema) acaba de dar nota a cineastas vivos (e mortos), priorizando critério unicamente comercial. Assim, quem vende muitos ingressos ganha nota máxima. Enquanto realizadores com filmes premiados em festivais e de empenho cultural-e-artístico ganham notas baixas. Para tornar tudo mais extravagante, dois cineastas (mortos ambos) foram avaliados e levaram nota baixa: Andrea Tonacci, diretor, de “Serra da Desordem“, levou dois (em dez pontos possíveis) e Rogério “Bandido da Luz Vermelha”, nota cinco. Já André Pelenz, do blockbuster “Minha Mãe é uma Peça, levou dez.

Vencedores do Gaúchão

A mostra competitiva de curtas gaúchos, que entrega os prêmios Assembleia Legislativa, consagrou dois filmes: o documentário “Um Corpo Feminino”, de Thaís Fernandes (melhor filme e melhor roteiro) e o ficcional “Sem Abrigo”, de Leonardo Remor (melhor atriz para Rejane Arruda, melhor fotografia para Marco Antônio Nunes, melhor som para Germano Oliveira e Prêmio da Crítica).

O prêmio de melhor ator foi dividido entre os craques Sirmar Antunes e Clemente Viscaíno (por “O Grito”, de Luiz Alberto Cassol). O melhor diretor foi Henrique Laude, por “Fè Mye Talè” (que soma a libertação dos escravos, no Haiti setecentista, com a vinda de imigrantes haitianos para o Brasil contemporâneo). A melhor trilha sonora, de Jonts Ferreira, foi a do filme “Nós da Montanha”, de Gabriel Motta. O melhor design de som premiou Guilherme Cássio (de “Abismo”). Rafael Duarte e Taísa Ennes foram escolhidos pela melhor produção, por “Mulher Ltda”, curta que teve, também, sua direção de arte (da mesma Taísa Ennes) premiada.

A simpática animação “A Formidável Fabriqueta de Sonhos da Menina Betina”, de Tiago Ribeiro, aluno da UFPel (Universidade Federal de Pelotas) ganhou menção especial do júri. O corpo de jurados poderia ter atribuído, também, um prêmio especial ao ensaio poético-documental “Antes do Lembrar”, de Luciana Mazeto e Vinícius Lopes. Neste filme, uma mulher indígena fala da cosmogonia de seu povo. Ela conta que, entre seus ancestrais, não havia restrição ao amor entre homem com homem e mulher com mulher. O que só enriquece a narrativa de “Majur”, o curta matogrossense, da competição nacional, que registrou a transição do indígena Gilmar para uma existência transexual. Quem semeou o preconceito entre as populações indígenas foram missionários brancos e religiosos (protestantes e católicos), a partir de catequese intensificada de forma brutal no século XX.

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