Cinema da comunhão
Becca (Nicole Kidman) e Howie Corbett (Aaron Eckhart) são um casal perfeito. Bonitos, inteligentes e bem-empregados, vivem em uma enorme casa com jardim. Algo, no entanto, aconteceu. Não sabemos ainda muito bem o quê. Ela nega um convite feito por uma vizinha, parece nervosa, tensa, como se estivesse em um beco sem saída. Ele chega em casa do trabalho e se volta como um viciado aos vídeos caseiros gravados em um celular. Ambos conversam protocolarmente. Aos poucos, saberemos que o filho do casal morreu atropelado, em um trágico acidente. A estratégia conta-gotas da narrativa, revelando paulatinamente os contornos e detalhes que formam os personagens e os eventos que precedem o filme, nos joga desarmados para dentro da história, cara a cara com Becca, Howie e seus comportamentos.
Adaptado da peça homônima de teatro de David Lindsay-Abaire (um dos roteiristas do longa), “Reencontrando a Felicidade” é o terceiro longa de John Cameron Mitchell (“Shortbus” e “Hedwig”). Desta vez, ele é diretor contratado – entrou no projeto convidando por Nicole Kidman, que também assina como produtora. Mas o fato é que “Reencontrando a Felicidade” lembra em seu melhor os demais filmes de Mitchell. Como “Shortbus” e “Hedwig”, o cineasta filma com muita leveza, trabalhando seus personagens com elegante discrição. A câmera é quase invisível, sempre a serviço dos atores. Mitchell imprime, à sua maneira, um ritmo flutuante, com picos de intensidade dramática que surgem sem muito alarde. Em alguns momentos, o filme se torna surpreendentemente divertido, revelando um humor que nasce a partir de observações a respeito da natureza humana. Indicada ao Oscar, Nicole Kidman é outro ponto a favor do filme. Em uma interpretação exuberante, ela optou, astutamente, por sublinhar duas feições de Becca: sua raiva incontida e a consciência de que isso não a levará muito longe. A cada sequência vemos uma personagem que não tem ideia do que fazer, mas sabe que tem de fazer alguma coisa. “Reencontrando a Felicidade” afirma mais uma vez um certo cinema da comunhão de Mitchell. O cineasta gosta de personagens tristes, mas jamais niilistas ou cínicos. Eles estão sempre atrás de uma saída, em busca da vida. Um cinema marcado por tragédias, mas disposto a seguir adiante delas.
Talvez o maior problema deste filme, no entanto, seja a autoconsciência desse projeto de comunhão, um certo esquematismo que já dava as caras vez ou outra nos trabalhos de Mitchell e que agora ganhou a maioridade. “Reencontrando a Felicidade” é um filme bem-comportado, cristalino. A confusão de seus personagens é vista e encenada de maneira imperturbada. Em um longa sobre um casal reagindo à trágica morte de seu único filho, faltam emoções genuínas. A montagem vem embalada em cadeias explicativas. Becca e Howie encontram saídas no mesmo exato momento do filme. Mitchell acaba lidando com a perda num sentido mais abstrato. “Reencontrando a Felicidade” bate, por vezes, como uma autoajuda eficiente.
“Reencontrando a Felicidade” é um longa atraente, cuidadoso na caracterização dos personagens, receoso nas chantagens do melodrama, leve e sóbrio em sua mise-en-scène, e com Nicole Kidman à frente do elenco. Apesar de tudo isso, persiste um certo distanciamento, uma frieza um tanto calculista. Em determinados momentos, Mitchell mais parece um burocrata. E essa burocracia impede que “Reencontrando a Felicidade” seja o que pretende: um filme sobre a complexidade da vida, a inconstância das coisas a nossa volta, a memória e o tempo.
Por Julio Bezerra