Subversão da alma
Durante a 35ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, era comum ouvir o público das filas comentando sobre um filme brasileiro muito “ruim”, por ser nojento e trazer o que de “pior” há no cinema brasileiro: sexo e nudez despudorados. O filme em questão era “O Homem que Não Dormia”, segundo longa-metragem do baiano Edgar Navarro. Esses comentários dizem mais respeito a esses espectadores do que ao filme propriamente. A começar, porque o longa de Navarro está longe de propor o choque, já que quase todos esses supostos excessos são intrínsecos à narrativa e à ambiência daquele universo retratado.
Navarro tem uma longa e notável carreira como cineasta experimental nos anos 1970 e 1980, filmando na bitola Super8, quando fez, de fato, obras muito mais chocantes, como “O Rei do Cagaço” (1977) e “Exposed” (1978), entre vários outros. Mas o diretor não faz nada para chocar, o que ele busca é um realismo muito próprio em termos de situações e provocar, isso sim, os espectadores a enfrentarem o que de desagradável existe no mundo – a começar por ele, como costuma dizer. Se em “O Homem que Não Dormia” ele opta por mostrar dois homens cegos masturbando um ao outro ou registrar várias cenas de pessoas urinando, é porque aquilo diz muito sobre aquela comunidade, seja do prazer solitário que encontra um espelho, seja da necessidade fisiológica de expurgar algo do corpo.
Navarro é sim um provocador, mas, antes de tudo, é um subversivo. Mas sua subversão está muito mais ligada ao próprio indivíduo e aos costumes da sociedade do que a questões governamentais. E é nisso que “O Homem que Não Dormia” se liga mais ao média-metragem “Superoutro” (1987/89). Seja na história de uma pequena cidade que começa a ter visões de um homem que não consegue dormir e que estaria se aproximando, seja na de um louco de rua que começa a fantasiar um destino muito particular, ambos os filmes retratam uma vontade muito grande de mudança. Algo como o não-conformismo com uma suposta predestinação: as pessoas são aquilo que querem ser e não aquilo que esperam dela. Mas o enfrentamento dessas barreiras moralizantes e a subversão disso não são processos fáceis. Esse parece ser o tema central dessas duas obras, e que as afastam um pouco do memorialista “Eu me Lembro” (2005), primeiro longa de Navarro, muito premiado e muito melhor recebido do que esse último, por exemplo.
Em “O Homem que Não Dormia”, essa subversão é metaforizada em diversos elementos, ora fantásticos e ligados à cultura popular, ora íntimos à alma. Não que se excluam, claro. Porque todos os elementos fantásticos são tratados no filme como realidade, já que todos, lá, crêem no lobisomem, na mula sem cabeça, em deuses e demônios, e isso interfere em suas vidas, assim como suas angústias pessoais refletem, exteriormente, nesse mundo fabular. É assim como o personagem-título do filme.
O tal homem que não dormia era, na verdade, uma espécie de lenda local, um barão (interpretado pelo próprio Navarro) que matou sua mulher na frente do filho, acusada de adultério, e viu seu filho, pouco depois, suicidar-se. Sentado em sua cadeira, à espera de algo que nunca chega, o barão fica acordado até o seu fim. Um peregrino (feito pelo cineasta Luiz Paulino dos Santos) que chega à cidade também é acometido pelo mesmo problema, não conseguir dormir. Vítima de pesadelos a respeito disso, a população vê nesse peregrino apenas o barão. Faz parte dele e de alguns moradores que sofrem do mesmo mal, parecerem e agirem como outros, reverter a situação, provar não serem aquilo a que são destinados.
Mas o principal acometido desse mal é o padre, interpretado por Bertrand Duarte, o louco de rua de “Superoutro”, que, descontente com seu sacerdócio, entra numa profunda crise reflexiva sobre seu papel. Navarro já havia denunciado, em sua carreira, o que considera os malefícios da religião, e, em “O Homem que Não Dormia”, vai além. Seu padre é tentado pela carne, mas luta contra isso. O que o incomoda, porém, é sua falta de honestidade para consigo mesmo e para com quem deseja. E não é que o diretor profere contra Deus, muito pelo contrário: ele acredita na plena iluminação do ser humano, só renega os caminhos utilizados pela religião como maneira de controlá-lo. Porque a subversão em Navarro é sempre na busca da liberdade do indivíduo. Nem que, para isso, precise lutar contra a gravidade.
O Homem que Não Dormia
(Brasil, 2011)
Direção: Edgar Navarro
Distribuição: Pandora Filmes
Assista ao trailer do filme aqui.
Por Gabriel Carneiro