Paisagem urbana em transformação

O que será que andam colocando na água dos cineastas pernambucanos? É do estado de Luís Gonzaga que têm vindo alguns dos grandes filmes do cinema brasileiro recente, e o lançamento de “Boa Sorte, meu Amor” só vem comprovar mais uma vez a força da produção audiovisual de Pernambuco.

O filme já diz a que vem logo nos primeiros minutos. Belíssimos planos de construções abandonadas ou semiabandonadas fotografadas num vigoroso e contrastado preto e branco, ao som de uma trilha estilisticamente solene, já sinalizam que “Boa Sorte, meu Amor” não percorrerá caminhos tradicionais.

Em seguida, um plano longo, centrado num único personagem, introduz um breve porém esclarecedor monólogo sobre os últimos 200 anos da vida brasileira. Duzentos anos de coronelismo, patriarcado, machismo, submissões, traições e de muita persistência. Está pavimentada a estrada para a história que o diretor estreante Daniel Aragão quer contar.

Num primeiro momento, numa leitura apressada, pode-se até pensar que o filme retomará o velho tema da menina pobre que se apaixona pelo rapaz rico. O casal em questão é formado por Dirceu (Vinícius Zinn), jovem vindo de uma família aristocrática decadente que atualmente mora em Recife, mas que já foi grande latifundiária no interior do estado. As terras “invadidas”, na visão do pai de Dirceu, foram abandonadas. Do outro lado da pirâmide social, está Maria (Christiana Ubach), uma garota simples, apaixonada por música, que sobrevive distribuindo folhetos e brindes promocionais pelas ruas da cidade grande.

O amor entre os dois simplesmente nasce. Simples assim. O abismo social entre ambos – que talvez nem seja tão grande, como se verá mais adiante – não é empecilho. Pelo menos, a princípio. Mas o DNA de classe dominante que corre no sangue de Dirceu é forte demais para ser contido, e pequenos gestos como chamar o amigo gay de Maria de “este tipo de gente” começam a minar a relação. Afinal, como funcionário de uma empresa de demolições, é o próprio Dirceu quem afirma: “Eu não tenho nada a ver com isso. Eu só destruo e limpo”.

A referência à empresa de demolições não é casual. A brutal deterioração da paisagem urbana do Recife, onde grotescos e gigantescos edifícios vêm se multiplicando, roubando sol e visão do mar, tem sido uma preocupação constante da classe pensante pernambucana. “Um Lugar ao Sol”, de Gabriel Mascaro, e “O Som ao Redor”, de Kleber Mendonça Filho, também abordam o problema, isso só para citar dois exemplos. Neste contexto, a afirmativa “eu só destruo e limpo” assume outros contornos.

Logo cai por terra a tese que o filme se aterá apenas ao romance. “Boa Sorte, meu Amor” vai bem mais além, ao abordar temas como a transposição do Rio São Francisco, a manipulação política das novas igrejas evangélicas e, principalmente, uma suposta nova ordem social de poder, onde os coronéis latifundiários do passado perdem força para os novos empreiteiros de um Brasil que se supunha crescer. Uma ordem que de nova nada tem, e que representa apenas a troca da mão que bate, já que o rosto que apanha permanece o mesmo.

A boa notícia é que “Boa Sorte, meu Amor” aborda tudo isso sem nenhum tipo de panfletarismo, destilando uma delicada sutileza e brindando esteticamente o espectador com a bela fotografia de Pedro Sotero e uma trilha sonora de inspiração quase kubrikiana.

O filme ganhou o prêmio de Melhor Direção em Brasília, no ano passado.

Confira o trailer aqui. E leia mais sobre a produção na reportagem da edição out/nov de 2012 da Revista de CINEMA.

 

Boa Sorte, meu Amor
Brasil, 95 min., 2013
Direção: Daniel Aragão
Distribuição: Cicatrix Filmes
Estreia: 23 de agosto

 

Por Celso Sabadin

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