O Tempo Não Existe no Lugar em que Estamos

Por Humberto Pereira da Silva, de Tiradentes

Do ponto de vista pessoal, uma grata surpresa na 18ª Mostra de Cinema de Tiradentes foi descobrir o cineasta Dellani Lima – ou ser reapresentado a ele, pois já o havia visto como ator em Os Residentes, de Tiago Mata Machado. E sobre ele o que de mais notável observei é que se trata de figura peculiar na cena cultural recente: ator, cineasta, músico, poeta, escritor, performista, artista multimídia extremamente sintonizado em tudo o que se passa no mundo das artes e da intervenção cultural, merece atenção ao exibir seu longa-metragem O Tempo Não Existe no Lugar em que Estamos.

Aos 39 anos, dono de produção incrível e praticamente desconhecida, Dellani sai de Tiradentes com saldo bem positivo: com um filme que, creio, tem tudo para se constituir tanto numa síntese de suas amplas realizações quanto num ponto de inflexão em seu trajeto. O Tempo Não Existe…, que se beneficia enormemente da atuação do ator/intelectual André Gatti, é um filme a ser pensado pelas questões que evoca, ou que sugere, tanto quanto pelo que traz de singular ao debate de certa filmografia “irrelevante” no cinema brasileiro dos últimos anos.

As questões suscitadas são de níveis diversos, com camadas que se sobrepõem e se interpõem num jogo constante em que destaco duas matrizes principais: o sentido escorregadio e traiçoeiro da ideia de tempo na imagem fotográfica; o sentido impreciso entre real, ficcional, falseamento e verdade num mundo em transição, onde o significado das coisas parece ao mesmo “tempo” tangível e intangível.

Gatti/Aldo, fotógrafo, professor universitário, perdeu o emprego, lida com questões domésticas – a filha grávida e separada que volta à casa do pai, um casamento terno, mas conveniente… – e com um passado retido em imagens fotográficas que conflitam com o mundo presente. A narrativa exibe esse personagem em dois contextos: por meio de uma entrevista em que ele fala de sua vida, de suas realizações, frustrações e impasses; e por meio de encenações que exibem seu estado de ânimo, suas relações familiares, seus fetiches e objetos de trabalho.

O que há de notável na escolha narrativa que adota é que Dellani, a partir do sentido ontológico da imagem fotográfica, propõe jogar com o conceito de tempo naquilo que ele tem de mais palpável e simultaneamente fugidio. Ora, a experiência humana mostra a qualquer um que o tempo é aquilo que é sentido como duração; ou seja, ele é no mesmo instante em que deixa de ser, pois um segundo depois o que é torna-se passado.  Mas nisso o desconcerto da imagem fotográfica: nela o tempo se cristaliza, com isso deixa de existir enquanto tal, e assim torna presente o que não mais existe como realidade essencial.

A maneira como Dellani concebeu a narrativa, de fato, dá a O Tempo Não Existe… uma densidade filosófica extraordinária. Como diria o filósofo patrístico Santo Agostinho, o tempo é aquilo sobre o qual todos sabem e experienciam o que é, mas cuja definição nos escapa completamente. O filme de Dellani parece recolocar essa questão, e assim trazer à tona o quanto a imagem fotográfica, devidamente considerada na perspectiva do tempo, é traiçoeira e ambivalente: ela significa porque efetivamente mostra o ausente, o que não existe.

Assim, Gatti/Aldo se mostra o tempo todo em planos que, como numa imagem fotográfica, revelam o que não é: a entrevista, um belo momento de falseamento da vida – tomada por verdade vivida, nada é senão discurso, linguagem, ou como diria Hamlet, palavras, palavras, palavras; na ficção, por sua vez, um parto real do neto que, como revelado por Dellani, não é o da ficção, mas um nascimento cronologicamente anterior à criança, digamos, da trama. O real se torna falso pelo artifício da montagem; ou seja, tudo tão verdadeiro e simultaneamente tão falso.

Suscitadas essas questões – e tantas outras que poderiam ser evocadas ou derivadas destas – O Tempo Não Existe… é obra que bem se insere no que no cinema brasileiro recente se pode denominar “irrelevante”. Quer dizer, um filme que provavelmente será exibido apenas no circuito de festivais, para um público restrito, com poucas possibilidades, portanto, de ser conhecido para além de aficionados. Dellani, não ignoro, está ciente disso, e justamente por isso louvo sua coragem de, com esse filme singular, manter o espírito de inovação artística e de assumir os inevitáveis riscos da experimentação e da criação.

“Irrelevante”, O Tempo Não Existe…, assim espero, deve ser um passo relevante para a confirmação de Dellani Lima como uma dos mais instigantes artistas da cena cultural brasileira atual. De minha parte, porque o descobri como criador profícuo, a expectativa de novas, ousadas e desafiadoras realizações. Se for uma pena que seja visto por poucos, deixo para concluir, não sem ambiguidade…, essa máxima de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: “O binômio de Newton é tão belo quanto a Vênus de Milo, o que há é pouca gente para dar por isso…”

One thought on “O Tempo Não Existe no Lugar em que Estamos

  • 4 de fevereiro de 2015 em 23:46
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    Bela crítica! =] achei bem interessante as colocações!
    um filmão! devia rodar mais! =/

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