Demônios Domésticos
Eduardo chega em casa e descobre que Julia, sua esposa, tentou se matar. Ela deixou o marido e os dois filhos, sem explicações. Tempos depois, ela volta para casa. Eduardo tenta recolocá-la nos eixos, mas a impossibilidade de conhecê-la por inteiro o aflige. Os desdobramentos da tentativa de suicídio assombram a família. Eduardo insiste em desvendar sua mulher, mas um ciúme crescente e a descoberta de um passado insuspeito passam a torturá-lo, obcecando-o. Os dramas domésticos de Eduardo e Julia são o mote de “Voltando para Casa”, estreia em longa-metragem de ficção de Gustavo Rosa de Moura, diretor dos documentários “Cildo” (2008) e “Consideração do Poema” (2011).
Em fase de finalização, feito com R$ 1,2 milhão conseguidos do edital de baixo orçamento do MinC, “Voltando para Casa” é a tentativa do cineasta de expressar algumas sensações que observou durante seus quase 40 anos de vida. “O suicídio sempre foi para mim um assunto muito instigante, muito forte, que merece muita reflexão. Mas é importante dizer que não é um filme sobre o suicídio e suas implicações. O suicídio está presente, sim, mas mais como um fantasma do que como ato em si. E há também outras coisas em jogo. Temas como depressão, perda, pulsão sexual, controle, descontrole, paranoia e amor”, pontua o diretor, que assina o roteiro ao lado do sócio e parceiro nos demais projetos, Leonardo Levis.
Rosa de Moura tenta recuperar uma certa tradição do cinema paulista. Interessa-lhe as questões existenciais. Muito por conta disso, busca trabalhar mais sensações e sentimentos do que uma narrativa propriamente, ainda que haja uma. Nesse sentido, tenta evocar a sinestesia de seus personagens e versar sobre suas pequenas paranoias e obsessões cotidianas. “É menos uma questão de tratar das obsessões e mais de tentar visitá-las; trazer à baila certos sentimentos, certas sensações, sem conseguir muito explicar ou resolver nada. Não acho que seja um filme que tire conclusões, faça julgamentos ou aponte soluções. Nesse aspecto, acho que é um filme escuro, duro, com um certo peso”, explica o cineasta, que rodou o longa em quatro semanas, durante a Copa do Mundo de futebol, entre junho e julho de 2014.
As artes plásticas e o cinema
Gustavo Rosa de Moura formou-se em arquitetura, na FAU/USP. No Rio de Janeiro, em 2003, começou a trabalhar com audiovisual. Além da arquitetura, Rosa de Moura sempre foi bastante ligado ao universo das artes plásticas, fazendo documentários para museus, entre outros, além de sua estreia em longas ser sobre Cildo Meirelles. No cinema, trabalhou mais com documentários. No seu currículo, de ficção apenas o curta “Acho que Chovia” (2012). Segundo o cineasta, “Voltando para Casa” não tem nada de documental, mas tem muito de arquitetura e de artes plásticas. “Não me considero um documentarista. No fundo, o que me interessa é o cinema, para além das classificações de documentário ou ficção. E acho que estou hoje muito mais próximo do modo ficcional de fazer cinema do que do modo documental. Minha relação com artes plásticas e arquitetura é muito forte e influencia quase tudo que eu faço”, conta o cineasta que fundou sua própria produtora em 2011 com mais um bocado de gente, a Mira Filmes.
A relação com as artes plásticas permeia todo seu trabalho no longa. A começar pelo trabalho estético do filme. “A grande maioria das escolhas estéticas veio da observação de pinturas, fotografias e esculturas”, afirma. Rosa de Moura observou e analisou longamente artistas como Diego Velázquez, Michaël Borremans, Oswaldo Goeldi, Duane Michals, Alberto Giacometti e Tatiana Blass, que colaborou pessoalmente com o filme. Viram também alguns filmes chave de cineastas como John Cassavetes, Gus Van Sant, Maurice Pialat e James Gray, cujo “Caminho sem Volta” (2000) foi importante referência na fotografia. “O resultado é um filme escuro, de imagem densa – quase pastosa –, pouco descritivo, com decupagem econômica e muito baseado na atuação e no adensamento da essência de cada cena”, explica.
A ligação com as artes plásticas também o levaram à direção de arte do filme. “Senti necessidade de fazer a arte pessoalmente, para encontrar a cara do filme. Como sou arquiteto e gosto de desenhar, isso acabou sendo natural em muitos aspectos. Mas é muito importante dizer que fiz a direção de arte junto com a Joana Brasiliano”, comenta.
O mundo das artes também dá as caras nos personagens. Julia dança, Eduardo escreve. “A dança acaba sendo uma forma de expressão não verbal muito importante para a personagem. A Julia não é uma pessoa das palavras, da formulação verbal. E isso intriga e fascina o Eduardo, que é o oposto. Eduardo trabalha com palavras, com textos, com formulações essencialmente verbais. E sua grande paixão, sua grande obsessão na vida, é uma pessoa que se comunica mais com o corpo do que com palavras, e que escapa a qualquer tentativa de interpretação e de controle”, pontua.
Lidar com atores foi uma aprendizado
“’Voltando para Casa’ é um filme de sensações, de sentimentos, ou seja, de atuação. Um tipo de filme que exige um contato muito íntimo e intenso com os atores, com a magia da interpretação. Foi um enorme aprendizado, que me transformou completamente como diretor de cinema”, analisa Rosa de Moura.
Para dar o tom do filme, o cineasta contou com a também sua esposa Marina Person no papel de Julia e com João Miguel como Eduardo. Completam o elenco Francisco Miguez, Estela Hodge, Marat Descartes, Poliana Pieratti e Paulo Guarnieri. “Queria trabalhar com bons atores e com pessoas próximas, com quem pudesse estabelecer relações de parceria, troca e entrega. Queria pessoas cujos demônios me interessassem, me instigassem, e que topassem o jogo intenso que o filme pedia”, justifica. Foram quase dois de meses de preparação, que envolveu ensaios, leituras, muitas conversas, sessões de filmes, exercícios corporais e reescritas de roteiro.
“Voltando para Casa” deverá estrear no Brasil apenas em 2016. Rosa de Moura pretende fazer de 2015 um ano para circular nos festivais internacionais. Além deste longa, o cineasta prepara três adaptações: “O Desaparecido” (adaptação do livro homônimo de Franz Kafka); “Desde que o Samba é Samba” (adaptação do livro homônimo de Paulo Lins) e “Antonio” (adaptação do livro homônimo de Beatriz Bracher). “Não sei ainda dizer qual virá primeiro”, conclui.
Por Gabriel Carneiro