Um filme em que a África e o Flamengo ocupam espaço nobre
Por Maria do Rosário Caetano, de São Miguel do Gostoso (RN)
Uma boa pedida para o feriado desta segunda-feira, 20 de novembro, dia de Zumbi dos Palmares e da Consciência Negra, é assistir ao filme “Gabriel e a Montanha”, de Fellipe Gamarano Barbosa, em cartaz em várias cidades brasileiras. Afinal, este road movie protagonizado por João Pedro Zappa, percorre quatro países da África (Quênia, Zâmbia, Tanzânia e Malawi), incluindo as míticas montanhas do Kilimandjaro e do Mulanje, cenários raríssimos no cinema brasileiro.
“Gabriel e a Montanha”, segundo longa ficcional de Barbosa (o primeiro, “Casa Grande”, também teve boa repercussão), foi exibido na noite inaugural da IV Mostra de Cinema de São Miguel do Gostoso, no Rio Grande do Norte, em imenso telão instalado, ao vento e sob as estrelas, na Praia do Maceió. O público recebeu o filme com aplausos calorosos. E dezenas de espectadores — em especial, integrantes do Coletivo Nós da Audiovisual, que mobiliza 50 jovens do município potiguar e adjacências — compareceu, no dia seguinte, ao auditório da Pousada Ponteiros, para discutir o filme com dois de seus artífices, o ator João Pedro Zappa, de 29 anos, e o distribuidor Bruno Beauchamp, da Pagu Filmes.
O jovem Zappa, que revive, com raro vigor, o economista brasileiro Gabriel Buchman, lembrou as etapas de sua preparação e o desafio de interpretar seu “primeiro personagem real”. Gabriel, carioca de família de classe média, formou-se em Economia pela PUC-Rio e preparava-se para realizar doutorado da UCLA — Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Antes de partir para os EUA, resolveu empreender longa viagem por diversos países da África. Como amava o montanhismo escalou, além do Kilimandjaro (Quênia/Tanzânia), o Monte Mulanje, no Malawi. Nesta última empreitada, perdeu a vida, aos 28 anos. Sem guia para orientá-lo e vítima de drástica mudança climática, Gabriel morreu sozinho, por hipotermia. Usava uma camisa de seu time de coração, o Flamengo.
Para contar esta história de final trágico, Zappa, que já atuou em oito longas-metragens, sendo o mais conhecido “Boa Sorte”, de Carolina Jabor, passou três meses na África e conviveu com moradores do Quênia, Zâmbia, Tanzânia e Malawi. Todos eles estiveram com Gabriel Buchman e foram convocados a representar a si mesmos. Para complementar sua preparação, Zappa leu os diários de Buchman, conversou com familiares dele (Dona Fátima, a mãe, e Nina, a irmã), com a namorada Cristina Reis, interpretada no filme por Carolina Abbas (em desempenho também notável) e com colegas do curso de Economia da PUC.
“Encontrei”— contou o ator no debate, em São Miguel do Gostoso — “depoimentos ricos e matizados sobre Gabriel”. Houve, claro, quem o visse como “uma pessoa amável, generosa, humilde”. Já outros o definiram como “teimoso, arrogante, intransigente”. Por isto, “pude, sob a direção de Fellipe Barbosa, que foi amigo desde a infância de Gabriel, recriá-lo como um ser humano complexo, com qualidades e defeitos”.
Em sua viagem pela África — que se estenderia ainda a Moçambique e África do Sul, se ele não tivesse morrido no Monte Mulanje — Gabriel fez questão de conviver com os povos visitados. Assim, dormia, muitas vezes na mesma cama, com quem o hospedava e alimentava. Economizava o que gastaria em pensões e restaurantes realocando os recursos nas mãos dos novos conhecidos. E gostava de vestir trajes típicos de cada país visitado.
João Pedro Zappa, que prepara-se agora para integrar o elenco do novo filme de Jorge Furtado (“Rasga Coração”, baseado na peça homônima de Oduvaldo Vianna Filho), orgulha-se dos fartos elogios dirigidos ao seu desempenho em “Gabriel e a Montanha”. Orgulha-se, também, de ter agradado a mãe e irmã do economista morto tão cedo. “Eu me preocupei muito, não vou negar, com o que elas achariam do filme, mesmo tratando-se de uma ficção. Fiquei muito feliz quando elas aprovaram o resultado, abraçaram o filme”. Mas do que Zappa, neto do embaixador progressista Italo Zappa, se orgulha, mesmo, é de ter realizado um filme que mostra os africanos como pessoas dignas e lutadoras. “’Gabriel e a Montanha’ foge dos clichês que dominam o cinema e a TV”. Em momento algum, “apresentamos os países africanos como territórios de violência”. Mesmo assim, em debate no Recife, durante o festival Janela de Cinema — contou o ator — “houve quem dissesse que fizemos mais um filme sobre um herói branco, que vai à África levando junto sua mentalidade de colonizador”.
Zappa discorda desta análise, primeiro, porque “Gabriel não é visto como um herói”, mas “como uma pessoa cheia de contradições”. Segundo, porque “ele aprende muito com os africanos com quem se realaciona”. O ator lembrou elogios ouvidos de amigos atuantes em movimentos de afirmação afro-brasileira. E citou o ator Sidnei Santiago. “Ele emocionou-se com o que viu e, em especial, com o respeito aos personagens negros”.
A quem citou, como referência para o longa brasileiro, o norte-americano “Na Natureza Selvagem”, de Sean Penn (2007), João Pedro Zappa esclareceu: “a referência mais cara a Fellipe Barbosa foi “Os Rejeitados” (“Sin Toi, Ni Loi”, de Agnès Varda/1985, protagonizado por Sandrine Bonnaire).
Sobre a onipresença de dois símbolos do Clube Regatas Flamengo no filme — oito aparições da camisa e cinco de um gorro de lã — chamou a atenção do público. Como é difícil conseguir o direito de uso de símbolos de poderosas marcas esportivas (como a rubro-negra, ou a corinthiana), o que fez a produção do filme para conseguir equacionar tais custos?
O distribuidor Bruno Beauchamp esclareceu: “a parceria com o Flamengo, que está nos créditos e logomarcas do filme, foi possível, porque a diretoria de marketing do Clube percebeu o imenso amor que Gabriel tinha pela agremiação rubro-negra”. Eles viram várias fotos de Gabriel com a camisa do Flamengo. Viram, inclusive, “a última imagem dele, no Monte Mulanje, com a camisa rubro-negra”. Mesmo que a viagem do economista carioca tenha tido final trágico, a área de marketing percebeu que o filme seria importante por enfatizar o amor de um de seus mais fervorosos torcedores. E, por isto, “autorizou o uso de sua marca”. E mais: “o diretor de marketing do Flamengo foi amigo pessoal de Gabriel Buckman e até o homenageou, depois de sua trágica morte, colocando o nome dele em seu filho”.
O marketing montado para divulgar “Gabriel e a Montanha” incluiu ações junto à imensa torcida rubro-negra: “embora grande parte da torcida não tenha o cinema entre suas opções de lazer, fizemos questão de projetar o trailer do filme, no estádio, no intervalo de um Flamengo x Vasco, em partida recente válida pelo Campeonato Brasileiro”, contou Beauchamp.
O filme de Fellipe Barbosa vendeu, na França, 50 mil ingressos. No Brasil, foram vendidos, em seus primeiros dez dias em cartaz, mais de 25 mil bilhetes (exatos 26.625).