“Vazante” chega aos cinemas após polêmica no Festival de Brasília

Cercado de polêmicas que envolvem as escolhas da diretora Daniela Thomas na feitura do roteiro, “Vazante” chega ao circuito exibidor nesta quinta-feira (9 de novembro), em aproximadamente 40 salas. Os embates começaram durante o Festival de Brasília, em setembro deste ano, quando o filme foi acusado, por uma parte da crítica, de reforçar o protagonismo da elite branca sobre os escravos negros, sem questionar e revisitar de forma mais holística e depurada a história colonial brasileira. Tais discussões continuam reverberando nos debates públicos, especialmente nas redes sociais. Aos olhos da diretora, no entanto, o filme vai muito além da discussão sobre o racismo e alcança o trabalho escravo, o poder que poucas pessoas exercem sobre as outras – especialmente os homens sobre as mulheres –, comportamento que ainda se reflete nas relações atuais e é aceito como “natural”.

Filmado em preto e branco, “Vazante” projeta pouca luz à história de uma família que viveu no começo do século XIX, em 1821, na serra Diamantina, em Minas Gerais. No enredo, o português Antonio (interpretado por Adriano Carvalho) é o proprietário de uma fazenda em uma região inóspita e quase improdutiva. Ao voltar de uma das suas longas viagens em busca de mantimentos, escravos e gado, descobre que a esposa e o filho morreram durante o trabalho de parto. Pouco tempo depois, acaba se casando com a sobrinha Beatriz (Luana Nastas), que nem havia entrado na puberdade e ainda brincava com as crianças negras, filhas dos escravos. Tal proximidade desencadeia uma reviravolta trágica, jogando tintas pesadas na tela.

Originalmente, a ideia do filme surgiu em 1997, dois anos depois do lançamento de “Terra Estrangeira”, que Daniela codirigiu ao lado Walter Salles, por meio da produção da Videofilmes em coprodução com António da Cunha Telles, um dos nomes mais conhecidos de Portugal. A Videofilmes chegou a “bancar” a primeira pesquisa do que seria o embrião de “Vazante”, mas Daniela conta que estava “insegura com o roteiro” e não o levou adiante naquele momento. Foi somente depois de “Insolação” – que ela codirigiu com Felipe Hirsch, em 2009 –, que o produtor Beto Amaral insistiu para produzir o primeiro filme solo da diretora.

“O Beto foi quem tirou o roteiro da gaveta. Eu continuava insegura, mas ele disse: ‘Eu escrevo com você’. E aí me convenceu a fazer o filme”, relata ela. Em um primeiro momento, a dupla chegou a pensar em levar o projeto de volta para a Videofilmes, mas a produtora carioca “não estava pegando uma produção deste tamanho”. E como Daniela e Amaral tinham acabado de fazer “Insolação” em parceria com a paulistana Dezenove Som e Imagens, da gaúcha Sara Silveira, o produtor resolveu apresentar a ideia à produtora, que “pegou na hora”.

Assim como a Videofilmes tem uma larga experiência em coprodução internacional, Sara é uma das produtoras brasileiras que melhor circula nos mercados e festivais de cinema estrangeiros, especialmente os da Europa, desde o final dos anos 1980. E como Daniela queria fazer um filme internacional desde o começo, a parceria logo se estendeu aos europeus. Na cabeça da diretora, o protagonista de “Vazante” seria um ator português desde o primeiro argumento, já que o filme deveria mostrar “essas diásporas loucas” do Brasil, onde “todo mundo, na verdade, é um pouco estrangeiro”, a seu ver.

Em meados de 2013, o roteiro foi apresentado à portuguesa Pandora da Cunha Telles, filha do coprodutor de “Terra Estrangeira”. Hoje, ela comanda a Ukbar Filmes ao lado de Pablo Iraola, e ele destaca a aproximação com a produtora brasileira desde a sua colaboração minoritária no longa-metragem “América” (2010), de João Nuno Pinto.

“Estabelecemos, desde então, uma relação próxima com Sara Silveira, que nos desafiou a participar neste projeto. Apaixonamo-nos de imediato por este ‘Vazante’ e resolvemos abraçá-lo desde logo”, conta Iraola, em entrevista por e-mail.

A Ukbar também está envolvida na coprodução luso-brasileira de “Joaquim”, de Marcelo Gomes, filme que tem uma pequena participação financeira, mas principalmente “afetiva”, de Sara.

Tanto “Vazante” quanto “Joaquim”, inclusive, foram selecionados para o Festival de Berlim deste ano. O primeiro, para a mostra Panorama, o segundo, para a Competição Oficial, levados pelas mãos do mesmo agente de vendas internacional: a Films Boutique. Daniela entrega também que Gomes chegou a contribuir com o roteiro do seu filme: “Ele foi doctor. Não escreveu nada, mas lembro que ele foi essencial, propondo desafios e perguntando por que os personagens estavam aqui ou ali”.

Filmagens em Minas Gerais

Ao encabeçar esse conglomerado de produtores nacionais e internacionais, Sara já prefere dar mais ênfase ao esforço que a produção demandou aqui dentro do Brasil.

Orçado em R$ 6 milhões (sendo R$ 5 milhões de investimento brasileiro e apenas R$ 1 milhão de Portugal), “Vazante” necessitou de quase 17 semanas de base mineira, entre dez de pré-produção e sete de filmagens. A equipe ficou hospedada na cidade de Serro, em Minas Gerais. Do aeroporto de Confins, na grande Belo Horizonte, a viagem levava entre quatro e cinco horas, rodando algo em torno de 270 quilômetros. E da base até a fazenda-locação, eram mais 35 quilômetros de distância, percorridos diariamente por estradas de chão batido, segundo o relato de Sara.

Além da equipe das duas produtoras de São Paulo (Dezenove Som e Imagens e Cisma Produções), as filmagens contaram com o apoio da comunidade local, desde bordadeiras, costureiras, até uma parte do elenco que foi buscado nas regiões quilombolas mineiras e cuja aproximação foi realizada pela historiadora Cida Reis. A atriz Sandra Coverloni, que interpreta o papel de Dona Ondina (mãe da menina que se casa com o fazendeiro português), também atuou como uma espécie de preparadora de elenco, ajudando a escolher os não atores quilombolas, ao lado de Cida e da diretora, inserindo o pequeno grupo no dia a dia das filmagens.

Beto Amaral também conta que Daniela “não queria usar nada tecnológico” na rodagem do filme. Na prática, isso resultou na confecção de todo o figurino à mão, trabalho realizado por mais de 20 costureiras e bordadeiras. A iluminação também foi artesanal, somente à luz de velas, sem refletores. “Compramos muitos lotes de velas e levamos de São Paulo para Minas. Mas quando elas acabaram no meio das filmagens, tivemos que buscá-las até nos cemitérios e funerárias da região”, relembra ele. É por isso também que “Vazante” apresenta muito mais cenas diurnas do que noturnas.

“Esse filme tem uma produção e uma logística raras. Foi com esse conhecimento local, fazendo networking com os quilombolas e toda a comunidade mineira, entre negros, brancos, pardos, de todas as cores e de todos os gêneros. Fizemos todo esse trabalho para trazer a comunidade para trabalhar com a gente e essa carga que Minas trazia para o filme. Uma produção desse porte poderia ter custado o triplo, não fosse o cuidado que se teve com tudo isso”, ressalta Sara.

Ademais da estreia no Brasil, o filme já foi vendido para os Estados Unidos e deve estrear por lá em breve. Em Portugal, a Ukbar está negociando a data com o distribuidor local e o lançamento está previsto para o primeiro trimestre de 2018.

Veja o trailer do filme aqui.

 

Por Belisa Figueiró

One thought on ““Vazante” chega aos cinemas após polêmica no Festival de Brasília

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.