Mare Nostrum

O cineasta Ricardo Elias, lança, depois de intervalo de 12 anos, seu terceiro longa-metragem, “Mare Nostrum”, protagonizado por jornalista afro-brasileiro, interpretado por Sílvio Guindane, e por desenhista nissei, Ricardo Oshiro. E, com papeis de destaque para Lívia Santos, pré-adolescente black, e Carlos Meceni, na pele de corretor de imóveis dos mais divertidos e “virador” por natureza.

Os dois primeiros filmes do realizador paulistano – “De Passagem” (2003), com o mesmo Guindane e com Fábio Nepô, e “Os 12 Trabalhos” (de Hércules, 2006), com Sidney Santiago e Flávio Bauraqui – foram bem recebidos pela crítica e por festivais, que lhe atribuíram importantes prêmios. “De Passagem” venceu Gramado.

Apesar do reconhecimento e da condição de talento dos mais promissores, Ricardo Elias, nascido em 1968, formado pela ECA-USP e autor de três curtas (um deles, o tocante “Um Filme de Marcos Medeiros”), não encontrou caminhos tranquilos para sequenciar sua carreira. Mesmo assim, não se afastou, em momento algum, do audiovisual. Na TV Cultura, dirigiu vários trabalhos, um deles, “Terra Dois”, vencedor do Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de melhor programa de TV, em 2017.

O realizador lembra que “muitas mudanças se processaram no sistema de produção cinematográfica no Brasil, algumas boas e outras nem tanto”. Daí, que teve que enfrentar “certa dificuldade de adaptação”, indo trabalhar na TV. Veículo, registre-se, que o interessa muito e no qual pretende “dirigir séries”.

O argumento de “Mare Nostrum” – estreia desta quinta-feira, 4 de outubro – nasceu de experiência familiar. A venda de um terreno na praia foi o ponto de partida. Elias iniciou o processo de roteirização com Rinaldo Teixeira. Depois, com Eneas Carlos e Cláudio Yoshida, finalizou o roteiro que seria filmado (com locações em São Paulo e no litoral paulista, em especial na Praia Grande e em Santos).

Sua história é tocante. Um pai corintiano, João Viana (Ailton Graça, em participação especial), apaixonado por Sócrates, vai ao litoral, sob chuva e acompanhado do filho pequeno, para vender terreno a um nipo-brasileiro (Edson Kameda), também acompanhado de um filho menino. Negócio fechado, a vida segue e, passados 29 anos, chegamos ao presente. Já homens feitos, os garotos de outrora vivem situações difíceis. Beto (Silvio Guindane), jornalista esportivo, volta derrotado da Espanha. O mesmo acontece com o dekassegui Mitsuo (Ricardo Oshiro), escorraçado do Japão, depois que um tsunami o deixou desabrigado e sem nada.

Estes dois homens, um afro-brasileiro e um nipo-brasileiro, se reencontrarão, mais uma vez, por causa do terreno praiano. Quem conhece os filmes anteriores de Ricardo Elias, sabe que são humanistas, construídos em tom menor, com personagens comuns e sem reviravoltas mirabolantes. Estaria o realizador nadando contra a corrente? Há espaço, no mundo em que vivemos, marcado pela velocidade e pela violência, para a fruição de obra tão delicada?

O cineasta acredita que sim. E conta que, ao longo do processo de criação de “Mare Nostrum”, assistiu a “muitos filmes japoneses”, embora não saiba se “isso imprimiu”. Ou seja, se impregnou a narrativa de seu terceiro longa-metragem com a influência buscada em filmes de mestres nipônicos. Confessa que “o olhar cotiano do (diretor Yasujiro) Ozu” o interessava muito, assim como o olhar de cineastas contemporâneos como Hirokazu Kore-Eda e Naomi Kawase”. Ambos, afinal, “partem, em seus filmes, de situações corriqueiras”.

Quem for devoto da adrenalina presente em filmes como “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite” poderá se indispor com “Mare Nostrum”, já que – como admite o diretor – “o filme faz opção pela leveza, uma opção clara”. E mais: “certa vez, um escritor disse que a leveza é insustentável”. Talvez, “ele tenha razão”, mas, “em tempos tão pesados como estes que vivemos, talvez a leveza seja necessária em alguns momentos”.

Nos três longas de Ricardo Elias, personagens afro-brasileiros são fundamentais (Guindane e Nepô em “De Passagem”; Santiago e Bauraqui em “12 Trabalhos”, Guindane, outra vez, em “Mare Nostrum”).

O cineasta justifica sua opção: “a questão da representatividade no audiovisual me interessa muito, pois creio que temos dívidas enormes com a questão do negro no país”. Mais uma vez, ele deu tratamento especial ao tema.

Nos dois filmes anteriores, fugiu do estereótipo do negro como bandido. Agora, seguindo sua trajetória humanista, dá um passo adiante. Fez questão de ter a família negra postada na classe média, aquela que enfrenta dificuldades financeiras, mas vive em casa boa, viaja, pode, mesmo com muita dificuldade, manter filhos em escola privada. “Eu quis fugir” – pondera o diretor – “do estigma do negro pobre da periferia”.

Guindane é jornalista e escritor (tem pronto um livro inédito sobre um craque do futebol), o pai era um sambista mulherengo e muito querido pelos amigos, a mãe (a ótima Teka Romualdo) vive numa boa casa, muito bem cuidada. E o editor de publicação na qual Beto vai buscar trabalho, mesmo como free-lancer, é um negro lindo e elegante (o ator César Mello). O roteiro reserva a este personagem papel que matiza o filme, livrando-o da idealização ingênua.

O futebol tem presença discreta, mas constante, em “Mare Nostrum” (título que o espectador entenderá com clareza, no final). O pai de Beto era fã de Sócrates e da turma da Democracia Corintiana. Guardava camiseta autografada pelo “Doutor” (o Magrão) e ajudara o filho pequeno a montar o álbum dos grandes jogadores da Seleção Brasileira de 1982. Mas faltava justo a figurinha de Sócrates. Nas paredes da casa da família, os posters do astro corintiano (com Casagrande ou sozinho) se fazem notar.

Voltar a trabalhar com Sílvio Guindane foi um estímulo para Ricardo Elias. “Ele é um excelente ator, um ator criado no cinema”. Como o realizador gosta de receber contribuições de sua equipe artística e técnica, aceita sugestões de bom grado. “Se propõem algo melhor do que eu imaginei, por que não mudar, não aceitar as sugestões deles?”, indaga. Em “Mare Nostrum”, tanto Sílvio quanto os demais atores “foram fundamentais na construção da mise-en-scène e dos diálogos”.

O filme, que dura 100 minutos, é uma produção da Raiz Filmes, de Assunção Hernandez e Fernando Andrade, com distribuição da Imovision, trazendo no elenco, também, a hilária Vera Mancini (atriz que Carlão Reichenbach amava). Carlos Meceni, um dos protagonistas de “Ação entre Amigos” (Beto Brant/1998) – registre-se – é parceiro constante de Ricardo Elias. Esteve com ele nos três filmes. Neste “Mare Nostrum”, em papel de grande importância. Prestem atenção nas frases feitas (e engraçadas) que ele profere sempre que entra em cena.

 

Por Maria do Rosário Caetano

One thought on “Mare Nostrum

  • 8 de outubro de 2018 em 23:11
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    Maria do Rosário, parabéns pelo belo artigo e nele ter trazido o Ricardo Elias e cinema ao qual ele se dedica (bem como Claudio Yoshida que está com ele nos três filmes) pois é exatamente como você escreveu que vejo o cinema dele. Eu que tenho uma visão religiosa da humanidade, vejo na obra de cineastas como Elias a devida atenção a esta humanidade. O tempo passa e a gente nem percebe. 12 anos para nos dar um filme novo. Como se diz: antes tarde do que nunca. Que venham outros.

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