Mostra SP exibe filme sobre Vera Holtz e suas irmãs de Tatuí

Vera e suas irmãs Teresa, Rosa e Regina são celebridades em Tatuí, cidade de 100 mil habitantes, situada no interior caipira de São Paulo. Aquele que puxa o “r” ao falar. Nacionalmente, só uma das quatro irmãs é famosa, a atriz Vera Holtz, protagonista de dezenas de novelas, peças de teatro (incluindo “Pérola”, de Mauro Rasi, um dos maiores sucessos de sua carreira) e filmes (como a deliciosa comédia “Bendito Fruto”).

Quando menina, Vera sonhava em ser estrela de cinema. Realizou seu desejo e, agora, transforma, com ajuda de Evaldo Mocarzel, Teresa, Rosa e Regina em personagens de “As Quatro Irmãs”, vigésimo-segundo longa-metragem do realizador e professor nascido em Niterói e radicado em São Paulo.

O filme terá sua pré-estreia na 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, nesta sexta-feira, 19 de outubro, às 21h15, no Espaço Itaú Augusta. A sessão será apresentada (e debatida) pelas irmãs Vera, Rosa, Regina e por Evaldo Mocarzel (com reprises no sábado, às 15h45, no Belas Artes, e segunda-feira, às 16h00, no Cinearte).

“A quarta irmã, Teresa, não estará conosco” – lamenta o cineasta –, “pois faleceu depois de participar ativamente do filme, com imensa generosidade”. Ela viu “o longa montado, pois fizemos uma sessão para as quatro irmãs em Tatuí”. Mas “não viu o filme finalizado, uma tristeza muito grande já que, das quatro irmãs, era aquela com mais qualidade de presença, pois não atuava, simplesmente era ela mesma diante da câmera”. Mesmo assim – admite – “brigamos muito, pois Teresa me achava ‘insaciável’”. O que não impediu que “nos transformássemos em grandes amigos. Ela não tinha truques, ao contrário das outras três, sobretudo Vera, atriz, truqueira de carteirinha e que adora fazer palhaçada”.

Evaldo Mocarzel, de 58 anos, formou-se na UFF (Universidade Federal Fluminense), estudou Cinema em Nova York (onde dirigiu seu primeiro curta-metragem, “Retratos do Parque”), foi editor de Cultura do Estadão, escreveu diversas peças teatrais e mergulhou no audiovisual, para valer, depois do imenso sucesso de seu segundo curta-metragem, “À Margem da Imagem” (2002). O filme participou de dezenas de festivais e acumulou prêmios em muitos deles. O reconhecimento foi tão grande, que se propôs a realizar tetralogia sobre os que viviam à margem (não só da imagem, mas também do lixo, do concreto e do consumo).

Na verdade, realizou trilogia, iniciada com a versão longa de “À Margem da Imagem” e sequenciada com “À Margem do Concreto” (sobre a luta dos Sem-Teto por moradia) e “À Margem do Lixo” (sobre os que vivem de restos colhidos em lixões urbanos e da reciclagem).

O segundo maior sucesso de Mocarzel foi “Do Luto à Luta”, documentário sobre portadores de síndrome de Down, incluindo sua filha Joana (que participaria da novela “Páginas da Vida”, de Manoel Carlos, na Globo) e de Ariel Goldenberg e Rita Pokk, que protagonizariam, depois, o longa ficcional “Colegas”, de Marcelo Galvão. “Do Luto à Luta” causou sensação em vários festivais e colecionou muitos prêmios.

Trabalhador incansável, Evaldo Mocarzel seguiu sua trajetória no audiovisual realizando dezenas de curtas, longas e programas de TV. Tornou-se professor de Cinema (na Unespar – Universidade Estadual do Paraná) e fez doutorado na USP. Nunca separou a reflexão sobre a imagem de seu ofício prático.

Depois de fase em que temas sociais (além da exclusão, o mundo do trabalho) receberam ênfase especial, ele diversificou as motivações de seus filmes. Fez do teatro, uma de suas paixões, razão de ser de muitos de seus documentários (“BR 3”, do Teatro da Vertigem, se somou a realizações de outras importantes companhias cênicas paulistanas). E abordou a diversidade sexual, caso de “Dizer e Não Pedir Segredo” e “Cuba Libre”, este sobre o regresso da transexual Phedra de Córdoba ao seu país natal.

Os dois últimos documentários de Mocarzel são fruto de suas parcerias com dois grandes nomes da arte da representação teatral: o ator e diretor Nelson Baskerville (no ainda inédito “Até o Próximo Domingo”) e, agora, com Vera Fraletti-Holtz .

A “Pérola”, de Mauro Rasi, dirigia, com Guilherme Leme, a peça teatral “Um Pai” (Puzlle), protagonizada por Ana Beatriz Nogueira. Mocarzel fizera a adaptação dramatúrgica do livro de Sybille Lacan, sobre o pai, o famoso psicanalista francês. Um dia, ele foi assistir a um dos ensaios. “A empatia com Vera Holtz” – relembra – “foi imediata e conversamos muito sobre teatro, cinema e artes em geral”. Ali, nasceu a primeira semente de “As Quatro Irmãs”.

Diretor e atriz resolveram realizar um filme cujo ponto de partida fosse “o resgate da memória da família Fraletti-Holtz, centrada em um casarão, em Tatuí, no qual pais e filhas residiram por muitos e muitos anos”. Um casarão centenário, que continuava, depois da morte dos pais, aos cuidados das Fraletti-Holtz.

Para estruturar o filme, Mocarzel realizou uma série de entrevistas com Vera. Buscou suas memórias sobre o pai, a mãe, os tios e as tias, as três irmãs e sobre sua trajetória rebelde, pois deixara o lar paterno para ser atriz e, para o assombro de muitos, nunca quisera ter filhos. Ao contrário das três irmãs, que deram muitos netos aos Fraletti-Holtz (mãe de origem italiana e pai de origem alemã).

Os depoimentos de Vera foram transformados, por Mocarzel, em monólogos que eram devolvidos a ela. “De algum modo” – pondera o diretor – “estes monólogos foram escritos por ela mesma através de mim”.

Cinéfilo obsessivo, o realizador começou a buscar, em um cinema mais confessional, suas referências e diálogos. Bergman, claro, foi a matriz mais fertilizadora e assumida. “Recriei planos emblemáticos da história do cinema” – confessa –, “nesse exercício de autoficção realizado por uma atriz do interior paulista”.

“Primeiro” – pondera –, “escolhemos um título tchecoviano, ‘As Quatro Irmãs’”. E, na construção do filme, veio a forte inspiração em “Persona”, do qual “dois planos foram para-sequenciados”. Num deles, Vera acaricia a imagem da mãe e aparece, com uma faca, ‘acariciando’ a imagem do pai”.

“Mais que referência, o que fiz foi a recriação do plano do menino acariciando a imagem da mulher/mãe (o jovem Bergman?) em ‘Persona’, assim como os vários planos de Vera dormindo enquanto as irmãs saem ao fundo (em preto-e-branco e, também, em cores) por detrás de cortinas enevoadas”. Outra referência/recriação se dá “com o plano do sonho de Liv Ulman e Bibi Andersson (no mesmo ‘Persona’)”.

Há mais Bergman (e por extensão Truffaut e Godard) em “As Quatro Irmãs”. O cineasta detalha: “a prolongada olhadela para a câmera que Vera Holtz mantém evoca Harriet Andersson, em “Monika e o Desejo”. E, por extensão, “o olhar do ator Jean-Pierre Léaud, menino na praia (que recriamos em Mongaguá), e ainda a virada de cabeça de Jean Seberg no final do godardiano ‘Acossado’”.

Mocarzel lembra que as citações a “Persona” fazem parte orgânica do conceito de “As Quatro Irmãs” por razão muito clara: “no filme do Bergman, a Liv Ulman é uma atriz que perde a voz, a fala. No nosso filme, Vera é uma atriz que está enfrentando lapsos de memória. Ela encara a câmera para fazer da máquina um veículo de resgate dessa memória esquecida da infância e da adolescência. Um dispositivo lúdico, com o qual tentei fugir de um filme doméstico sobre o casarão de Tatuí”.

Além do cinema, as Artes Plásticas têm presença das mais significativas em “As Quatro Irmãs”. Isto porque Vera é apaixonada por performance, pintura, escultura e história em quadrinho. São famosas suas bem-humoradas “performances” plásticas disponibilizadas no espaço digital.

Mocarzel lembra que “As Quatro Irmãs” foi rodado nas três casas de Vera: em São Paulo, Rio de Janeiro e Tatuí. “O apartamento paulistano dela parece o MoMA de Nova York, com obras de arte espalhadas por todos os cômodos”. Este é “o universo dela, uma atriz que se formou em Design e que coleciona obras e objetos artísticos”.

“A personagem Pé Vermelho” (de grande importância no filme) – prossegue o cineasta – “é uma criação da própria Vera, que fez do casarão da família o estúdio lúdico sempre sonhado”. Para o filme, “pintamos as paredes, fizemos um estúdio todo preto, enfim, filmamos a memória da casa, depois, ela subverteu tudo e, agora, a o casarão foi totalmente reformado depois que sua memória foi eternizada no cinema”.

“As Quatro Irmãs” é, na verdade, um híbrido de documentário, ficção e ensaio. Na banda sonora, traz música original de Marcus Siqueira, parceiro de Mocarzel em “BR-3”, “Quebradeiras”, “São Paulo Companhia de Dança” e “Antártica”. O compositor está morando na Itália e lá criou os sons musicais do filme.

O cineasta lembra que algumas canções são interpretadas, ao longo da narrativa, pelas quatro irmãs e foram buscadas no repertório que elas evocam desde a infância, como, por exemplo, a versão em português para a canção de “Meu Tio”, do filme de Jacques Tati.

 

FILMOGRAFIA DE EVALDO MOCARZEL

2003 – “À Margem da Imagem”
2004 – “Mensageiras da Luz, Parteiras da Amazônia”
2005 – “Do Luto à Luta”
2006 – “Jardim Ângela” e “Navegar Amazônia” (parceria com Jorge Bodanzky)
2007 – “Brigada Para-Quedista” e “O Cinema dos Meus Olhos”
2008 – “Sentidos à Flor da Pele”
2009 – “Quebradeiras”, “BR-3, a Peça” e “BR 3, O DOC”
2010 – “Cinema de Guerrilha”
2011 – “Cuba Libre”
2012 – “São Paulo Companhia de Dança”, “Hysteria” e “A Última Palavra é a Penúltima”
2013 – “Antártica” e “Dizer Não é Pedir Segredo”
2015 – “Homem Cavalo & Sociedade Anônima”
2017 – “Até o Próximo Domingo”
2018 – “As Quatro Irmãs”

 

Por Maria do Rosário Caetano

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