Spcine disponibiliza documentário sobre os Novos Baianos
Por Maria do Rosário Caetano
A morte inesperada do cantor e compositor Moraes Moreira, vítima de enfarte, provocou comoção entre os fãs do mais conhecido dos integrantes do grupo Novos Baianos. A trupe hippie da MPB conheceu a fama na primeira metade da década de 1970, época da gravação de “Acabou Chorare”, seu elepê de maior repercussão e estima, presença garantida entre os cem maiores discos brasileiros de todos os tempos.
Moraes Moreira, baiano de Ituaçu, iniciou carreira solo em 1975, e obteve imensa repercussão já com seu primeiro elepê (foto abaixo: “Moraes Moreira”, Som Livre). O artista, que seguia ativo, vinha compondo, fazendo shows e animando festejos carnavalescos, morreu, sozinho, em sua casa na Zona Sul do Rio de Janeiro. Tinha 72 anos.
Quem quiser reencontrar a musicalidade do compositor baiano, ótimo instrumentista (seja na sanfona ou no violão) e cantor dos mais empolgantes (vide sua interpretação de “Pombo Correio”) disporá de diversos materiais audiovisuais. No cinema, os mais importantes são os longas-metragens “Filhos de João – Admirável Mundo Novo Baiano”, de Henrique Dantas, lançado em 2011 (e visto por 21 mil espectadores) e “Bahia de Todos os Sambas”, de Leon Hirszman e Paulo Cezar Saraceni (1984/96), além do média-metragem “Novos Baianos Futebol Clube”, do produtor Solano Ribeiro, nome de proa da era dos festivais. Na TV, as melhores opções são “Ensaio” (TV Cultura, 1973), de Fernando Faro, e “Acústico”, na MTV (1995).
“Filhos de João” está disponível, com acesso gratuito até o final deste mês, na Spcine Play (secção In-Edit, cuja vizualização se dá pela plataforma Looke). O primeiro longa-metragem de Henrique Dantas participou, em 2009, do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e, em 2011, sagrou-se o grande vencedor do In-Edit Brasil – Festival de Documentários Musicais, fruto de parceria paulistana com o In-Edit espanhol.
O filme, que deseja resgatar o “Admirável Novo Mundo Baiano”, aborda a influência de João Gilberto na música do coletivo Novos Baianos. Por isto, realiza saboroso e anárquico passeio pela carreira do bando, formado com cantores, compositores e instrumentistas que amavam música (em especial o rock) e o futebol. A trupe era imensa (chegava a mobilizar 20 pessoas), mas seus nomes de ponta foram (e são), além de Moraes, Baby Consuelo, Pepeu Gomes, Luiz Galvão e Paulinho Boca de Cantor.
Moraes Moreira era torcedor do “Bahêa”, o maior time de sua terra natal, e do Flamengo, que cultivou apaixonadamente desde que chegou ao Rio de Janeiro, em especial a um sítio, em Jacarepaguá, embalado com muitos sons, peladas boleiras, comida natural e muita maconha. Quando Zico, o galinho de Quintino, transferiu-se para a Udinese italiana, o compositor escreveu : “Agora como é que eu fico/ nas tardes de domingo/ sem Zico”.
João Gilberto não aparece em “Filhos de João”, nem em imagens de arquivo, nem com depoimento. Afinal, quando Henrique Dantas realizou seu longa de estreia, entre 2007 e 2009, João já estava recolhido em seu mundo, fechado dentro de um apartamento na Zona Sul carioca. E o acesso a materiais de arquivo com suas imagens e sons implicava em custos proibitivos para um filme de baixo orçamento. Mas sua presença imanta tudo que acontece na tela.
O ponto de virada na vida dos Novos Baianos se deu em um dia qualquer de 1971, quando João Gilberto (baiano de Juazeiro, como Luiz Galvão) resolveu visitar os conterrâneos. Eles viviam em um apartamento no bairro carioca de Botafogo e eram roqueiros empedernidos. Moraes mantinha, sim, profunda ligação com a música popular brasileira, com ijexás, frevos, baiões e assemelhados. Até porque tocara sanfona e vivia as alegrias dos folguedos de São João. Mas a vibe da moçada era o rock. Pepeu cultivava seu ídolo, Jimi Hendrix.
Quando o bossa-novista João Gilberto visitou o grupo (tema de conto que dá título ao livro “A Visita de João Gilberto aos Novos Baianos”, de Sérgio Rodrigues, Cia das Letras, 2019), para bater papo e apreciar uma erva, as conversas foram iluminadoras. Luiz Galvão conta tudo que aconteceu no livro “Anos 70 – Novos e Baianos”, editado por Tárik de Souza (Editora 34, 1997).
A moçada ficou louca por tudo que João falava. Impregnou-se de sua paixão pela grande música popular brasileira e engendrou “Acabou Chorare” (expressão de Bebel Gilberto, filha pequena do músico), disco seminal, fruto de rica soma de muitos Brasis, em diálogo com o rock e outras sonoridades. “Brasil Pandeiro”, clássico de Assis Valente gravado por Carmen Miranda, renasceu, então, na interpretação dos hippies cabeludos, que amavam e queriam agradar o mestre João Gilberto.
“Bahia de Todos os Sambas” tem Moraes Moreira como um de seus muitos personagens. Em agosto de 1983, Dorival Caymmi, Batatinha, João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, o Trio Elétrico de Dodô & Osmar, Gal Costa, Nana Caymmi, Paulinho Boca de Cantor, Walter Queiroz, Naná Vasconcelos (o único pernambucano infiltrado na trupe baiana) e, claro, Moraes Moreira, protagonizaram onze dias de shows no Circo Massimo, nas Termas de Caracala, em Roma. No total, eram 150 artistas. Tudo foi registrado pelos cineastas Leon Hirszman e Paulo Cezar Saraceni.
Diz o folclore que cerca a orgia musical baiano-romana, que Leon estava apaixonado por Gal Costa e resolveu homenageá-la com a câmera (de Dib Lutfi, Luiz Carlos Saldanha e Tonino Nardi). Resultado: o corpo de Gal, no auge da beleza e juventude, é percorrido com sensualidade pela trupe cinematográfica. Momento de êxtase. João Gilberto, claro, rouba a cena. Mas Moraes está lá, firme e forte, com os conterrâneos. O filme, produzido por Elio Rumma, Fiorella & Gianni Amico, dura 102 minutos e é obrigatório para todos os fãs da MPB.
Já o média-metragem “Novos Baianos Futebol Clube”, filmado no famoso sítio em Jacarepaguá, é uma curtição de Solando Ribeiro. Ele foi à residência coletiva dos baianos para conversar e jogar futebol com os boleiros hippies. Registrou este documento precioso, fundamental na pesquisa de imagens e sons que deram origem a “Os Filhos de João”.
Os dois principais documentários televisivos protagonizados por Moraes Moreira são o “Ensaio”, programa de ponta da história da TV Cultura, comandado por Fernando Faro, e o “Acústico”, da MTV Brasil. No “Ensaio”, o “Baixo” (assim os amigos chamavam Faro) conversava com o artista, descontraidamente, enquanto este cantava e era visto em closes de rosto, mãos, orelhas, pernas, pés. Por isto, carinhosamente, o programa recebeu o apelido de “feijoada musical”.
Na MTV dos anos 1990, Moraes Moreira gravou seu Acústico. É preciso lembrar que, na segunda metade do século XX, a MPB reinava soberana. Seus astros chegaram a ocupar 80% da programação de nossas rádios e eram exibidos em horário nobre da Rede Globo (vide Chico & Caetano, entre muitos outros programas da era Boni/Daniel Filho). Bons tempos.
FILMOGRAFIA DE HENRIQUE DANTAS
2009/2011 – “Filhos de João, Admirável Mundo Novo Baiano”
2013 – “Sinais de Cinza – A Peleja de Olney Contra o Dragão da Maldade”
2016 – “A Noite Escura da Alma”
2020 – “Dorivando Saravá – O Preto que Virou Mar”
Filhos de João, Admirável Mundo Novo Baiano
Acesso em streaming pela Spcine/Looke (secção In-Edit)