“O Truque da Galinha” chega com louvores da crítica, mas só é indicado aos fortes
Por Maria do Rosário Caetano
“O Truque da Galinha” (Omar El Zohairy, Egito, 2021) estreia no Brasil, nesta quinta-feira, 23 de junho. “Não Matarás” (Kieslowski, Polônia, 1988) estreou no Brasil, décadas atrás.
Por que aproximar estes dois filmes distantes no tempo, no espaço geográfico e, até, no estilo?
Primeiro, evoquemos breve história. Quando foi lançado “Não Matarás”, um dos filmes de série que Kieslowski realizou, inspirado nos Dez Mandamentos, para a TV polonesa, o crítico Luiz Zanin Oricchio publicou, no Estadão, análise das mais elogiosas ao longa dedicado à quinta ordem divina transmitida a Moisés.
Um leitor do jornal, advogado de sólida formação jurídica, enviou ao crítico carta educada, mas dura. Contou que, motivado pela crítica ao referido filme, fôra ao cinema com a esposa e vivenciara um dos piores domingos de sua vida. O que viram tela, ele não desejava a ninguém.
Quem for assistir ao “O Truque da Galinha”, nome inocente e fabular (o título em francês e em inglês refere-se apenas a “Plumas”), poderá, se desavisado, ter reação semelhante à do leitor-jurista do Estadão. Afinal, o longa egípcio, embora parta da ação de um mágico, nada tem de lúdico.
A trama parece bem simples. Na festa de aniversário de uma criança de quatro anos, o truque de um mágico (ou feiticeiro?) dá errado. O autoritário pai de família, que controla a vida da esposa e dos filhos com rigor draconiano, é transformado em uma galinha. Dali em diante, uma sucessão de coincidências absurdas recairá sobre todos. A mãe, que vivia sob o jugo do marido, tem que assumir o controle da casa e arrumar dinheiro, já que são muito pobres. Moram, de aluguel, num bairro operário miserável e poluído como só se vê numa nação do terceiro mundo. Os filhos se ressentem pela ausência do pai e a desesperada mãe se desdobra fibra por fibra para arrumar comida para os filhos. E, para agravar, além de curandeiros capazes, quem sabe de reverter a transformação do cônjuge, pagar veterinário e remédios para a galinha, gravemente enferma. A mulher vive, enfim, via-crucis inimaginável.
O produtor de Federico Fellini costumava pedir ao genial cineasta italiano que ofertasse “um raiozinho de sol” ao público, ao menos no final do filme, para que ele saísse satisfeito do cinema. Nelson Rodrigues gostava de ironizar o colega José Ramos Tinhorão, que tinha fama de mal-humorado. Dizia que ele “pulava na piscina e não via o azul da água”.
Assistir ao filme de Omar El Zohairy nos faz ansiar por um “raiozinho de sol” ou pelo “azul da piscina”. Mas, ao cineasta egípcio, só interessava realizar um filme radical. Sua protagonista absoluta (Demyana Nassar) não encontra um cartão postal que seja em seu caminho. Uma margem fértil do Nilo, uma pirâmide, um vale, uma palmeira. Só fumaça, dívida, podridão, homens que querem se aproveitar sexualmente dela, empregadores que exploram seu labor (o dela e o de um filho menor de dez anos, que vai trabalhar na fábrica para pagar dívida deixada pelo pai que virou galinha). Um pesadelo.
“Plumas” estreou no Festival de Cannes e conquistou o prêmio da Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). E ganhou cinco estrelas da incontentável Cahiers du Cinéma. E também do Libération e da Bande à Part. As revistas Positif e Les Inrock e o jornal Le Monde lhe atribuíram “quatre étoiles”.
Mas, afinal, vale a pena sair de casa, em tempos tão sombrios, para ver uma mulher egípcia passar por tanto sofrimento?
Vale. “O Truque da Galinha” é um filme doloroso, realmente difícil de ser visto, mas transformador. Daqueles que, depois de vistos, seguem nos perturbando. Voltam para nos fazer refletir. E a solução final é, além de corajosa e transgressora, das mais inesperadas.
O Truque da Galinha
Egito, em parceria com França, Grécia e Holanda, 1h52’, 2021
Drama social-cômico-fantástico
Direção: Omar El Zohairy
Elenco: Demyana Nassar, Samy Bassouny, Fady Mina Fawzy
Distribuição: Imovision