Gramado acertou nos Kikitos principais e errou no excesso de troféus e premiação de intermináveis quatro horas
Foto: Premiados do 50º Festival de Cinema de Gramado © Edison Vara/Agência Pressphoto
Por Maria do Rosário Caetano
Os júris do Festival de Cinema de Gramado — evento que realizou sua quinquagésima edição ao longo dos últimos dez dias na Serra Gaúcha — acumularam mais acertos, bem mais, que erros. Já a festa de premiação resultou em maratona de quatro horas e quinze minutos de duração, repetindo absurdo que se verificara na “Noite dos Otelos”, prêmio da Academia Brasileira de Cinema e Artes Visuais.
Se houvesse divulgação de dados de audiência precisos, saberíamos quantas pessoas aguentaram ver a cerimônia pela TV (Canal Brasil e Educativa gaúcha) ou internet até o fim. Quantas resistiram acordadas até a madrugada, para ver vários (e desconhecidos) integrantes de equipe de curta-metragem agradecendo com discursos sem nenhuma síntese ou ideia original, pelo Kikito conquistado. Houve até quem enumerou, em modelo lista telefônica, os colaboradores de seu filme, aqueles que entram nos créditos finais. Haja paciência.
O comando de Gramado pecou pela permissividade. Em tempos de inclusão, deixou correr solto. Não limitou tempo, nem número de “agradecedores”. Se sobem três, cinco ou dez integrantes da equipe ao palco, que um fale pelo conjunto. Televisão exige síntese, senão o espectador muda de canal, pois dispõe de centenas de opções.
Gramado pecou também pelo excesso de prêmios: 49 (incluindo menções honrosas). Um parâmetro: a Academia de Hollywood entrega 23 estatuetas na “Noite do Oscar”. Houve ano, delirante e demagógico, em que o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o mais antigo do país (criado por Paulo Emilio Salles Gomes em 1965, e que em novembro realiza sua edição 55) entregou quase 70 estatuetas (o Troféu Candango e o Prêmio Câmara Distrital) numa única cerimônia. Algo inacreditável.
Se festivais da importância de Gramado e Brasília não valorizarem seus Kikitos e Candangos, chegará a hora em que a banalidade se instalará. Serão tantos os troféus entregues, que conquistá-lo parecerá algo fácil demais, rotineiro, feijão com arroz.
Uma questão se impõe: se os prêmios já eram tantos (inclusive com Especial do Júri etc.) por que atribuir menção honrosa?
Para — claro — saciar a “reforma agrária” de láureas, tão presente em nossa cultura. O Brasil se nega a distribuir suas riquezas, concentrado-as no cume da pirâmide. Se nega a fazer uma verdadeira reforma agrária camponesa. Mas quando o que está em questão é distribuição de prêmios, láureas e outros agrados, aí a generosidade se multiplica.
Que Gramado aja como Cannes, Veneza e Berlim, contidos em sua repartição de Palmas de Ouro, Leões e Ursos, idem. Trazer um destes troféus para casa não é fácil, pois eles são modicamente distribuídos a cada ano (nunca chegam à dezena).
Feitas estas observações, é chegada a hora de avaliar a distributivista “Noite dos Kikitos”. O júri oficial de longas brasileiros preteriu o favorito: “Marte Um”, do mineiro Gabriel Martins, o Gabito. Um filme black em cada poro: direção, histórias, elenco (só o ex-jogador argentino Sorín, em participação especial, não tem melanina acentuada). Roteiro de fina ourivesaria e raro senso de humor. Capacidade singular de observar o cotidiano da gente brasileira de classe média baixa. Ritmo e trilha sonora empolgantes. Elenco afinado (destaque para Rejane Farias e Carlos Francisco).
Produção da Filmes de Plástico, de Contagem, na Grande BH, o longa de Gabito (estreia desta quinta-feira, 25 de agosto) causou sensação. Foi aplaudido com fervor pelo público (em igual medida a “Pacarrete”, de Alan Deberton, três anos atrás), gerou debate caloroso e inteligente.
Os jurados, porém, optaram por “Noites Alienígenas”, de Sérgio de Carvalho, um “ovni amazônico” que pousou na Serra Gaúcha para causar furor. E causou. Segundo título mais comentado nas rodas cinéfilas, a produção acriana encantou por seus frescor, pulsão de vida, revelação de história desconhecida e rostos novos (exceção para o veterano Chico Diaz). E não podemos esquecer a relação de diálogo estabelecida entre a floresta e as periferias urbanas.
O filme acriano, recriação atualizada de livro de mesmo nome escrito pelo diretor, revela o crescimento da criminalidade depois que grupos organizados (tipo PCC) instalaram-se no extremo norte do Brasil. Adolescentes (muitos de origem indígena), envolvidos com o tráfico de drogas, acabaram mortos, inclusive em brigas de gangues.
Ao optar por produção de baixo orçamento, vinda de um pequeno estado da Amazônia, o júri apostou no risco. O que é muito bom. Vide a repercussão do prêmio, presente em portais como o Mídia Ninja e o Amazônia Livre, mais ocupados com coberturas político-ecológico-sociais, que artísticas. Até o candidato Luiz Inácio Lula da Silva cumprimentou a trupe acriana por sua façanha. E por falar em Lula, vale registrar: Gramado teve noite de premiação realmente longa, mas das mais engajadas. No palco, a equipe acriana ostentou a cor vermelha. Outros, a maioria dos premiados, fizeram o “L” com dois dedos ou gritaram “13”. Nos discursos, ênfase na esperança de que “tudo mude a partir do dia dois de outubro”, primeiro turno da eleição presidencial.
Claro que havia bolsonaristas no imenso Palácio dos Festivais. E quando as manifestações pró-Lula começaram a crescer no palco, no fundo da plateia uma voz ou outra pronunciava o mantra “Lula ladrão!”. Mas, desta vez, ao contrário de 2019, os apoiadores de Bolsonaro eram minoria absoluta.
No primeiro ano da gestão do atual presidente, o pau quebrou na Serra Gaúcha. No Tapete Vermelho, imenso corredor cercado de bares e restaurantes caros, se fizeram notar dezenas de bolsonaristas, que arremessaram restos de comida e pedras de gelo nos artistas (incluindo o astro argentino Leonardo Sbaraglia). E, dentro da sala, pelo menos metade de ruidosa plateia, mostrava-se orgulhosa por ter eleito “o mito”.
O único cineasta a notar o protesto contido de admiradores de Bolsonaro foi Bruno Gularte Barreto, grande vencedor da competição de longas gaúchos (com “5 Casas”). Ao receber o primeiro de seus Kikitos, ele registrou: “quem está chamando Lula de ladrão é gente que veio atrás da badalação da festa de prêmios, mas que nem gosta de cinema brasileiro, nem assiste a nossos filmes”. Encerrou sua primeira fala clamando pelo restabelecimento pleno da democracia.
Os premiados que subiram ao palco, antes e depois de Gularte, só fizeram festejar as políticas públicas de apoio ao audiovisual, desenvolvidas nos governos Lula e Dilma. Karla Martins, produtora de “Noites Alienígenas” e o diretor Sérgio de Carvalho, ambos muito articulados, deram seus testemunhos. Sérgio narrou, no debate, sua opção em tornar-se um acriano adotivo, vinte anos atrás, por encontrar no estado efervescência estimulante, proporcionada por gestões dos irmãos Viana, do PT. “Nosso filme é produto de políticas públicas daquelas gestões estaduais e federais”.
Karla, acriana raiz, ponderou que o Festival de Gramado abria, naquele instante em que entregava seu principal Kikito a filme oriundo de um pequeno estado do Norte, “uma porta” e “reconhecia algo que não tem volta nesse País. A gente é fruto de dinheiro descentralizado, é fruto de política que chega lá na ponta, na borda, nas beiras desse País que achou, durante muito tempo, que só uma parte dele produzia conteúdo”. A trupe acriana estava ali para provar o contrário.
A cerimônia de premiação de Gramado cometeu erro similar ao do Festival de Brasília, no ano em que “Martírio”, de Vincent Carelli, era um dos francos favoritos ao Troféu Candango. Já no primeiro instante revelou-se que o épico carelliano ganhara o Prêmio Especial do Júri. Ou seja, estava fora da competição pelo prêmio principal. Uma poderosa ducha de água fria foi despejada sobre quem torcia pelo longa pernambucano. Em Gramado, o anúncio do Prêmio Especial do Júri para “Marte Um” aconteceu um pouco mais tarde, mas acabou, do mesmo jeito, com o suspense.
O filme mineiro ganharia o Prêmio do Júri Popular, mostrando a empatia que mantivera com a plateia. Já tinha obtido reconhecimento para seu delicioso roteiro e para sua adrenalinada trilha sonora.
No Brasil, infelizmente, cerimonialistas não aprendem. Para eles, o Prêmio Especial do Júri, ao contrário do que acontece em Cannes, não significa que o filme disputou com outro o prêmio principal. Um venceu (Kikito “de Ouro”) e o outro ficou com láurea especial, espécie de “Kikito de Prata”.
Um registro importante: o júri laureou apenas quatro dos sete concorrentes ficcionais. Atribuiu melhor direção e atriz para “A Mãe”, de Cristiano Burlan, protagonizado pela paraibana Marcélia Cartaxo (ela bisou o Kikito três anos depois de “Pacarrete”). E deu prêmios técnicos a “Tinnitus”, de Gregório Graziosi. Mas não fez média com os três outros concorrentes, todos de construção narrativa mais convencional (“O Pastor e o Guerrilheiro”, “O Clube dos Anjos” e “A Porta ao Lado”).
Na premiação de curtas-metragens brasileiros, a vitória de musical proletário (“Fantasma Neón”, de Leonardo Martinelli, registro das dores de entregadores de aplicativo, nosso precariado urbano) foi acachapante: melhor filme do Júri oficial, da Crítica e do Júri do Canal Brasil. Era o franco favorito, o mais elaborado, o que mais tinha a dizer e soube como fazê-lo, promovendo instigante mistura de gêneros (ficção, documentário, musical).
No segmento dedicado ao cinema ibero-americano, o júri premiou o uruguaio “9” (Nueve), da dupla Martín Barrenechea e Nicolás Branca, um filme sobre os conflitos de um craque de futebol, camisa nove. A produção platina teve premiado, também, seu protagonista, o jovem Enzo Vogrincic. E “9” conquistou também o troféu da Crítica (Accirs e Abraccine).
A atriz mexicana Anajosé Aldrete, que carrega o drama “O Caminho de Sol” nas costas, com interpretação matizada e comovente, foi, com toda justiça, escolhida por seu desempenho.
O thriller aquático “Imersão”, do chileno Nicolás Postglione, que se passa em iate que navega por imenso e soturno lago, teve seu roteiro e fotografia laureados. Merecia.
Ao drama argentino “Quando Escurece”, de Néstor Mazzini, sobre pai (Cesar Troncoso) que sequestra a própria filha de seis anos, coube o Kikito de melhor direção. Para o drama “La Pampa”, do Peru, coube prêmio especial por sua direção de arte.
Para “O Último Animal”, favela movie do lusitano Leonel Vieira, coube o “olvido”. Agiu bem o júri, pois o filme é um genérico (apelativo e pouco inspirado) de “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”.
A escolha do longa “Um Par para Chamar de meu”, de Kelly Spinelli, cativou o público feminino. Exibido para todo o território brasileiro, pelo Canal Brasil, o filme conquistou o Kikito de melhor documentário e, por isso, foi apresentado em sessão nobre no Palácio dos Festivais. Com este segmento, Gramado manteve seu diálogo on-line com o público de todo o país. Mas a maratona gramadense fez com que dezenas de profissionais da imprensa, obrigados por ofício a assistir a todos os filmes, lamentassem não poder provar uma “fondue de queijos” que fosse (iguaria que a Serra Gaúcha oferece como poucos). Não tinham como fazê-lo, pois entravam no Palácio dos Festivais às seis da tarde e saíam à meia-noite. Os restaurantes de Gramado cerram, teimosamente, suas portas às 23h. Custe o que custar. Fato incompreensível numa cidade que profissionalizou sua vocação turística com eficiência invejável.
A consagração de “5 Casas”, de Bruno Gularte, foi inevitável. O filme iniciou sua bem-sucedida carreira no IDFA (o poderoso Festival de Documentários de Amsterdã), venceu o Cine Ceará (a mostra de longas gaúchos não exige ineditismo) e agora foi reconhecido em casa. O júri reconheceu, também, “Casa Vazia”, com cinco Kikitos, e a ficção infantil “Despedida”, de Luciana Madero e Vinícius Lopes, com três.
A data de Gramado 2023, ano 51, já está definida: 11 a 19 de agosto. Tomara que o comando do mais conhecido, festejado e badalado festival do país abandone o “laissez-faire” desta edição (de número 50), cumprindo com rigor os horários (e eliminando os gigantescos intervalos entre sessões), diminuindo o número de prêmios e, claro, a inacreditável duração da Noite dos Kikitos. Menos é mais.